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EDITORIAL

As eleições britânicas vistas de dentro: lições e perspectivas

Foto: Panfleto da campanha de Corbyn: NEM UM DIA A MAIS
#ForaTories / Chega de austeridade

Por Marcio Musse, Londres, Inglaterra

 

As eleições gerais ocorridas aqui no Reino Unido, no útimo dia 08, alterou significativamente a conjuntura do país. O resultado terá um impacto internacional, tanto pelo peso da economia britânica, quanto pela importância do Brexit na geo-política atual. Soma-se a isso o súbito crescimento da campanha de Jeremy Corbyn, que mobilizou milhões de jovens, trabalhadores e comunidades. Um fenômeno importante, principalmente se considerarmos que o programa apresentado foi de esquerda, ainda que não socialista.

Participei ativamente da campanha “for the many, not the few”, com a corrente/movimento Momentum. Acho muito importante que esta experiência seja compartilhada. Aqui, mais uma vez, fica a prova que até nos países centrais do capitalismo mundial as contradições sociais se agudizam e que a saída pela esquerda é a única que tem condições de mobilizar a (maioria da) sociedade para sua superação.

A conjuntura pré-eleitoral

O Reino Unido, assim como a maioria dos países, vem sofrendo há anos os impactos dos planos de “austeridade” e “ajustes fiscais”, que transferem recursos de investimentos sociais para garantir a taxa de lucros dos grandes grupos econômicos. Isso se intensificou após a grande crise do final da década passada, onde os Estados despejaram trilhões para salvar o mercado financeiro, deixando para que os trabalhadores e a maioria da população estão pagando a conta. O resultado é mais privatizações, precarização de relações trabalhistas e retrocessos em direitos sociais, conquistados há décadas pelos trabalhadores britânicos. O trágico incêndio de Grenfell Tower, que tirou dezenas de vidas em um conjunto habitacional e foi fruto do sucatemanto da política habitacional do governo, é mais um exemplo nessa estatística.

Recentemente, a revolta da maioria da população contra esta realidade vinha sendo capitalizada pela extrema-direita. Com um discurso racista, xenófobo e ultra-reacionário, um setor “secundário” da burguesia, dizia para os trabalhadores que a responsabilidade por esta situação era de imigrantes e minorias étnicas. Apresentaram um discurso de segregação, vendendo um programa de “como não há recursos para todos, que os brancos não-imgrantes tenham acesso aos benefícios”, aumentando a exploração e reduzindo espaço para os demais. Além disso, defendem uma economia mais fechada (o que favorece seus interesses comerciais), a desregulação de leis trabalhistas e o retorno a conceitos mais antigos de sociedade.

Há cerca de um ano atrás, o Referendo do Brexit – que definiu pela saída do Reino Unido da União Européia – surpreendeu o mundo e que colocou o país politicamente de cabeça para baixo. Em uma votação bastante apertada, com vantagem nas áreas longe dos grandes centros e mais empobrecidas pelas políticas de austeridade, o eleitorado britânico votou por sair da UE. Mesmo sendo um resultado contra o governo e o establishment, foi uma vitória daquele setor mais à direita, apoiado no discurso reacionário e racista. Assim, o Brexit não pode ser encarado como se fosse na Grécia ou Portugal. Aqui ele é regressivo porque não são os “de baixo” querendo se livrar da ingerência alemã ou francesa, mas os “de cima” querendo tudo para si e “não ter de sustentar as economias mais frágeis e a imigração”. Meses depois, a vitória de Trump nos EUA mostrava que estávamos diante de uma tendência mundial e não um fato isolado deste país.

O UKIP (Partido pela Independência do Reino Unido), um dos pioneiros da campanha pelo Brexit, passou a ser considerado o terceiro maior partido do país. Com um discurso carregado de xenofobia e reacionarismo, obteve crescimentos significativos em áreas tradicionalmente de forte influência de partidos de esquerda, principalmente o Trabalhista (Labour Party). Alguns analistas diziam que em pouco tempo superariam o próprio Labour. Com este último completamente adaptado ao establishment e suas políticas de austeridade, especialmente após o governo de Tony Blair (final dos anos 90), a extrema-direita capitalizou o desgaste e ocupou muito deste espaço. Era perceptível um ambiente mais hostil a refugiados, comunidades e imigrantes, principalmente muçulmanos e do Leste-Europeu.

Logo após o resultado do Referendo, o governo de Cameron renunciou. Haviam ocorrido eleições gerais há apenas um ano antes, na qual os Conservadores conquistaram maioria absoluta. Após a renúncia, o Partido Conservador não convocou novas eleições. Com base em um acordão interno indicou Theresa May como nova líder, tornando-a, automaticamente, Primeira Ministra. Desde então, o que passou a ser discutido era se o país viveria um soft Brexit – uma versão mais branda onde o Reino Unido continuaria no mercado comum e com sólidos laços sociais e comerciais ao restante da Europa – ou um hard Brexit.

No início de seu mandato, May reorientou o governo rumo a essa última tendência. Para isso reformulou seu ministério, colocando representantes dos setores da burguesia alinhados com uma política mais dura. No plano internacional, foi a primeira chefe de governo a se encontrar com Trump, onde este a definiu como “sua Maggie” – em referência ao relacionamento Reagan/Thatcher nos anos 80.

Assim, no começo do ano, May anunciou um projeto de hard Brexit, colocando restrições à imigração no centro de sua política e não dando qualquer garantia aos europeus residentes no país. Em maio, acionou o Artigo 50 – iniciando formalmente a retirada britânica do Bloco. Apostou em um crescimento deste populismo de direita na Europa e no restante do mundo de forma a que isso viesse a facilitar um acordo com os governos europeus. Esta seria a primeira, mas não a única aposta errada que May faria em seu governo.

A reorganização na esquerda

Ao longo de todo esse processo de redefinições políticas, a esquerda britânica passou a viver um profundo – talvez o mais profundo em décadas – processo de reorganização. O país vinha em um período de baixa de lutas sociais – menor índice de greves em anos -, e as organizações de esquerda não conseguiram qualquer destaque no referendo do Brexit. Houve correntes que chamaram o voto no FICAR, SAIR e no NULO (abstenção), mas nenhuma delas conseguiu imprimir sua política nestas campanhas.

Após as Eleições Gerais de 2015, somadas à renúncia do então líder Ed Milliband, o Labour Party abriu o processo de escolha de uma nova liderança. Teria tudo para ser “mais do mesmo”, mas um setor ultraminoritário da esquerda do partido lançou o nome de um parlamentar sem muito destaque de um distrito do norte de Londres, Jeremy Corbyn.

Cabe observar, que o processo de eleição do líder no Labour Party é diferente dos demais partidos socialdemocratas europeus. Ele ainda é essencialmente democrático, embora isso não se aplica às demais instâncias. Nele votam todos os membros e trabalhadores sindicalizados, independente de sua fidelidade partidária. Criou-se um movimento social em torno ao mesmo e, apesar de toda a máquina partidária e pressões da mídia, Corbyn foi eleito líder do LP.

Isso criou uma dinâmica de retorno de sindicatos e ativistas que haviam se afastado do Labour nos últimos anos. Começou a se dar um fenômeno semelhante à candidatura de Bernie Sanders nos EUA, onde este se fortaleceu contra toda estrutura oficial do Partido Democrata. Aqui foi criado o Momentum, uma organização grassroots (pela base) híbrido entre corrente e movimento em torno à campanha de Corbyn para líder do Labour.

No início, suas plenárias eram abertas e super democráticas. Foram construídas seções do Momentum com bastante autonomia na maioria dos bairros e cidades do país. A reorganização política da esquerda que parecia adormecida há bastante tempo, voltava a fervilhar a partir da campanha para o Labour Party ter um líder e potencial candidato a PM, como Jeremy Corbyn.

Após o referendo do Brexit e todas as renúncias no establishment a ele subsequentes, a pressão da direção oficial do Labour pela renúncia de Corbyn cresceu vertiginosamente. Mas isso não arrefeceu – ao contrário, potencializou – a ebulição pró-Corbyn. O Momentum rapidamente passou a ter 20 mil membros e o Labour Party viu o maior crescimento de filiações de sua história.

Ao mesmo tempo, as lutas da classe trabalhadora começavam a voltar à cena. As greves nacionais dos médicos, professores e transportes (trens e metrô) começavam a polarizar o país. Na posse de Trump, junto com as manifestações em várias cidades do mundo, Londres teve uma marcha com mais de 100 mil pessoas. Em março, defendendo o NHS (Sistema Público de Saúde) e denunciando os cortes e privatizações, ocorreu outra ainda maior, com forte presença da classe trabalhadora, seus sindicatos e organizações. As greves de transportes, mesmo impactando a jornada de milhões de pessoas, tinham apoio cada vez maior da população.

Frente o crescimento da campanha de Corbyn, a direção do Labour exigiu um novo processo de escolha de líder, entrando na Justiça, sem sucesso, para impedir sua candidatura. O resultado da escolha foi acachapante: Corbyn foi reeleito com cerca de 70% dos votos, em uma campanha de massas com envolvimento nacional e comícios em várias cidades do país. Assim, ao abrir o processo da escolha do líder, a direção do Labor terminou criando um movimento gigante, tardando para perceber que não tinham o menor controle sobre ele.

 

A aposta de Theresa May e a “guerra civil” no Labour Party

Mesmo tendo inciado o Artigo 50, estava claro que Theresa May não tinha um projeto claro de Brexit. Sua aposta de que a “onda Trump” varreria a Europa não se confirmou, especialmente após a vitória de Macron na França. Internamente, diversos setores da burguesia imperialista britânica davam sinais de descontentamento com a condução do Brexit. Começava a se preparar um novo referendo de independência na Escócia e aumentavam as tensões na Irlanda do Norte. May tinha maioria absoluta no Parlamento, mas por uma margem estreita que poderia não lhe dar a segurança necessária para encarar o processo de negociação com a UE.

Do lado da oposição, tudo parecia paralisado. A principal estratégia da direção do Labour Party parecia ser a de derrotar Jeremy Corbyn, mesmo que para isso deixasse o espaço aberto para os Conservadores. Muitos parlamentares comentavam publicamente que Corbyn era “fraco”, “ultrapassado”, “inelegível”. Em eleições locais ocorridas em algumas regiões, o Labor não teve um bom resultado. Muitos já selavam o fim da era Corbyn e apontavam para a construção de um novo perfil de liderança – mais alinhado com setores da burguesia – para se apresentar como alternativa a May e ao Partido Conservador.

Theresa May, de forma surpreendente, aproveitou esse momento para anunciar a antecipação das Eleições Gerais poucos dias após ter garantido que não o faria. No dia 18 de abril, as eleições foram chamadas para um prazo de menos de sete semanas. O governo e a grande maioria da imprensa e analistas políticos apostavam em uma arrasadora vitória de May e uma significativa ampliação de sua base parlamentar. A maioria dos partidos, inclusive Corbyn e o Labour, concordaram com a antecipação das Eleições e a data foi aprovada sem qualquer dificuldade.

Nas primeiras semanas, tudo andou muito devagar. Era preciso criar um clima de campanha, definir os candidatos de cada distrito, lançar um manifesto e virar o jogo. Todas as principais organizações de esquerda estavam unificadas na campanha para derrotar os Tories e garantir uma vitória do Labour sob a liderança de Jeremy Corbyn. Mas o Labour Party não parecia ajudar.

No parlamentarismo britânico, cada um dos 650 distritos elege um MP (Parlamentar) e o Primeiro Ministro (PM) é aquele que tiver apoio da maioria (326 ou mais). Em vários distritos, ativistas locais reclamavam que os nomes escolhidos pelas instâncias locais do Labor não eram os que melhor representavam as lutas locais ou mesmo com mais chance de vitória. Muitos candidatos Trabalhistas começavam suas campanhas focadas apenas em temas locais, escondendo a eleição nacional ou qualquer associação a Corbyn. A campanha de rua e os canvassing – campanha de porta em porta – estavam apenas começando, em ritmo ainda lento. Tudo parecia caminhar para um desfecho conforme o previsto por May, sem a manifestação de um fenômeno de massas, independente e pela esquerda que pudesse alterá-lo. Isso foi assim até o lançamento (ou “vazamento”) dos manifestos.

O manifesto “for the many, not the few” e a campanha em movimento

A cada Eleição, os partidos britânicos lançam seu Manifesto. Ele é o programa a ser defendido pelo partido naquela legislatura e será adotado caso este venha a obter a maioria e, consequentemente, nomear o PM e seu Gabinete.

Theresa May e o Partido Conservador lançaram seu manifesto no dia 18 de maio. Nele, além da manutenção do programa de austeridade – explicitando alguns benefícios a serem cortados como uma bolsa para idosos e portadores de deficiências – tinham pontos que visavam marcar uma posição conservadora e retrógrada, como a volta da liberação da caça às raposas. Seu principal slogan era “Forte e Estável” (Strong and Stable), apresentando-se como opção necessária para a condução de duras negociações com Bruxelas sobre o Brexit. Além disso, explorava a crise no Labour e batia na imagem de Corbyn como “fraco”.

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Entretanto, em 10 de maio, uma cópia do manifesto – preparada por Corbyn e seus aliados – que seria apresentado na Comissão Nacional do Labour “vazou” para a imprensa. Seu nome é “For the many, not the few” (“Para os muitos, não para os poucos” em tradução livre). Este manifesto não é um programa socialista e possui limitações importantes, mas foi o mais avançado em décadas lançado pelo partido e inclui pontos como:

  • Reestatização de empresas privatizadas, Transportes e Correios
  • Criação de Companhias nacionais de Energia – Estatais
  • Fim das taxas cobradas em Universidades
  • Fim dos cortes na saúde, habitação e demais áreas sociais – Defesa do NHS e Criação de um NES (Educação)
  • Abolição do “Contrato Zero Horas”, uma precarização nas relações trabalhistas no país
  • Aumento significativo de impostos para os mais ricos
  • Diferença salarial máxima de 20:1 nas empresas
  • Revisão da política externa que promove guerras
  • Fim de limite máximo de imigração. Garantia imediata aos cidadãos da UE residentes no país. Brexit centrado em direitos sociais e acordos alfandegários, não em controle migratório.

Houve bastante ruído pelo manifesto ter vazado para a imprensa antes de sua aprovação final pelas instâncias do Labour Party. O governo do País de Gales, por exemplo, que é controlado pela direita laborista e não aplica nenhum daqueles pontos, falou de pronto que não iria adotá-lo. Inicialmente, setores da imprensa e o governo o trataram como “radical” e “inexequível”. George Osborne, ex número 2 do antigo PM David Cameron e atual editor chefe de um tablóide de grande circulação, noticiou o Manifesto de Corbyn com a manchete em tom debochado de: “Camarada Corbyn ergue a bandeira vermelha”.

Sua aceitação popular, no entato, foi excepcional. Com o passar dos dias, logo a campanha foi ganhando volume e receptividade nas ruas. Pesquisas de opinião mostravam índices de aceitação ao manifesto na ordem de 70%. As pessoas começavam a entender que aquelas propostas eram totalmente factíveis: era apenas o caso de colocar os ricos e os grandes grupos econômicos para pagar a conta da crise – e não mais os trabalhadores.

A campanha disparou, crescendo vertiginosamente. Todos os relatos, de todas as regiões, eram de aceitação e apoio explícito crescente. As atividades mais simples, como panfletagens e postagens em redes socias atraíam cada vez mais pessoas. Havia reuniões e oficinas convocadas pelas redes sociais para organizar as atividades e orientar novos ativistas como fazer sua primeira campanha. Participei de uma dessas oficinas do Momentum em Londres, com americanos que haviam participado da campanha de Sanders nos EUA, que reuniu mais de 100 pessoas.

Mais de 1 milhão de pessoas – em sua grande maioria jovens – se registraram para votar desde o anúncio das eleições (o voto não é obrigatório no Reino Unido). O Momentum lançou um aplicativo que organizava caronas para o distrito “marginal” mais próximo – locais onde a última eleição havia sido decidida por uma pequena margem de votos. A campanha movimentou jovens, aposentados, trabalhadores de diversas categorias, enfim, uma composição bastante variada – e popular – estava se envolvendo nesta “maré vermelha”. Não me recordo de ter vivenciado no Brasil nenhuma campanha com tamanha movimentação e participação. Talvez a que mais se aproxime seja a campanha de Lula em 89.

Comícios de Corbyn aglutinavam milhares ou dezenas de milhares de pessoas em bairros e cidades por todo o país. Theresa May se recusava a participar dos debates de TV, o que colocou os Tories ainda mais na defensiva. No debate da BBC, nos dias finais de campanha, os Conservadores enviaram uma Ministra de May, Amber Rudd, que foi massacrada pelos oponentes. A curva de intenção de votos no Labour crescia nas pesquisas, enquanto a dos Tories estagnou e, depois, entrou em queda livre. Mesmo os ataques terroristas em Manchester e Londres, que geralmente geram reações favoráveis aos discursos mais xenófobos e conservadores, não frearam ou reverteram esta tendência. A dúvida era se essa alteração se refletiria nas urnas. Em boa medida isso dependia do comparecimento nas urnas – especialmente dos jovens – e até que ponto se alteraria a composição de cadeiras no Parlamento.
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O resultado eleitoral

De certa forma o resultado das eleições refletiu essa alteração. O Partido Conservador ainda conseguiu ser o mais votado com 42% dos votos contra 40% do Labour. As previsões na época do anúncio das eleições apontavam para uma vitória de May de cerca de 50% a 25%. Os Conservadores obtiveram 317 cadeiras, 13 a menos do que tinham antes das Eleições e 9 a menos que a maioria absoluta. O Labour conquistou 262 cadeiras, 30 a mais que a legislatura anterior.

Estimativas no início do processo eleitorial apontavam que May ampliaria sua maioria para cerca de 410 cadeiras, contra cerca de 160 de um derrotado Labour Party. A verdade é que Theresa May apostou errado mais uma vez e, ao invés de conquistar a maioria ampla que precisava para implementar seus projetos de austeridade e o Brexit, perdeu sua governabilidade e, provavelmente, em um futuro próximo, seu cargo.

O Partido Conservador – os Tories – e sua principal figura, Theresa May, terminaram sendo os maiores derrotados deste processo. May está completamente desmoralizada. O próprio George Osbourne, disse após a eleição que May é uma “morta-viva no governo”.

Para atingir maioria, May costurou um acordo com o DUP (Partido Democrático Unionista), da Irlanda do Norte. Essa é uma organização de extrema-direita caricata que defende bandeiras fundamentalistas evangélicas como o criacionismo e ataca liberdades civis e individuais como o direito ao aborto (legal no país desde 1967, exceto na Irlanda do Norte, onde até hoje é proibido) e os direitos/casamento dos LGBT. Esse acordo é amplamente visto como uma grande desmoralização e, justiça seja feita, é mais uma política desesperada dos Tories em juntar votos para atingir a maioria e manter Theresa May do que uma opção de coalizão com esta bizarra corrente, a única que se propôs a isso. O bloco Tories-DUP recebeu o apelido de “Coalizão do Caos”. Para a viabilização do acordo, os Conservadores destinaram mais de 1 Bilhão de Libras para projetos do DUP, gerando questionamentos sobre prioridade e a contradição desta medida com a política de cortes e austeridade no restante do país. Em face ao desgaste, teve de aceitar (evitando colocar em votação) uma emenda do Labour permitindo que o NHS (Sistema de Saúde) cubra procedimentos de aborto para mulheres da Irlanda do Norte, em outras partes do Reino Unido.

Corbyn e, apesar de tudo, o próprio Labour Party saíram como os maiores vitoriosos destas eleições. Após o resultado – e frente à possibilidade de coalizão dos Tories com o DUP – Corbyn tem mantido a política de questionar a legitimidade de um novo governo May face à derrota eleitoral, exigindo novas Eleições Gerais. Ela se propôs a encabeçar um governo de minoria, caso os demais partidos concordassem com o manifesto apresentado, o que nunca irá ocorrer.

No trágico incêndio de Grenfell Tower, que recentemente matou dezenas de pessoas em um conjunto habitacional de Londres, Corbyn foi o primeiro a responsabilizar o governo e suas políticas de austeridade pelos cortes na segurança dessas habitações e exigir que os desabrigados fossem realocados para os imóveis de luxo vazios da região.

Assim, após as eleições, Corbyn parece não ter recuado de seu perfil e pontos programáticos. Entretanto, ele acena com uma perigosa repactuação com os caciques do Labour que vinham tentando puxar seu tapete. Tom Watson, que organizou a tentativa de derrubá-lo e sempre foi um de seus mais duros detratores, disse em uma Rádio da BBC que “Corbyn o mostrou que era o líder que o partido precisava, e inspirou milhões”. Owen Smith, candidato de quase todo o Partido contra ele – o mesmo que foi fragorosamente derrotado nas eleições internas – foi reconduzido à linha de frente da bancada. Esse é um processo contraditório, dado que Corbyn tirou alguns deputados da bancada frontal pelo fato de estes votarem uma emenda sobre o Brexit que não era a do manifesto. Essa reaproximação não significa que a estrutura tradicional do Labour Party redefiniu sua estratégia e adota um rumo progressivo à esquerda, mas uma nova tática para derrotar ou cooptar o movimento que sustenta Corbyn, cuja dinâmica é avançar ainda mais. Basta ver que no distrito em que vivo, que nem era considerado como “marginal”, e onde os Conservadores detinham a cadeira há 12 anos, o candidato do Labour venceu a eleição.

O SNP (Partido Nacionalista Escocês), que crescera na última década ocupando um espaço à esquerda (ou à centro-esquerda) do Labour e com um discurso pró-independência, teve um resultado abaixo do esperado. Diminuiu sua bancada em 21 cadeiras, contando com 35 nesta legislatura. Perdeu para o Labour, que com Corbyn voltou a ocupar seu espaço, e também para os Conservadores. Uma de suas bandeiras centrais é um novo referendo de independência – no caso, para a Escócia deixar o Reino Unido e se tornar um país da EU -, especialmente como resposta a um hard Brexit. Este referendo já estava indicativamente agendado pelo governo escocês para 2019, mas fica muito improvável que venha a ocorrer com esse resultado do SNP.

Vale destacar que a única região onde os Conservadores cresceram foi na Escócia. Mas lá esse partido tem um perfil bastante distinto do atual governo. Sua líder, Ruth Davidson, é mais alinhada com o governo anterior, de Cameron e Osbourne. Ela defende o soft Brexit e foi uma das principais figuras dos Tories no Referendo, contra a saída da EU. Também considera “intolerável” a aliança com o DUP e qualquer recuo em relação às liberdades individuais. A própria Davidson tem casamento publicamente marcado, com sua namorada, para o início do ano que vem.

O UKIP, com o Brexit em andamento e o espaço do hard Brexit ocupado pelos Conservadores, focou seu manifesto em uma agenda xenófoba clássica, com propostas como “banir a burka”, “aumentar a vigilância em bairros muçulmanos” e coisas do tipo. Ao final, teve um resultado desmoralizante. Não conquistou nenhuma cadeira e viu sua margem de votos cair significativamente em todo o país. Perdeu basicamente para o Labour, num deslocamento interessante de votos da extrema-direita para uma plataforma de esquerda. Perdeu espaço também para os Conservadores, que ocuparam esse espaço mais à direita sem a verborragia tão claramente racista e xenófoba. Não vão fazer falta.

A Irlanda do Norte é um espaço aonde o tensionamento vem crescendo nos últimos meses, acentuado após a aprovação do Brexit que pode impactar diretamente sua relação com a Irlanda. A montagem do governo local já vinha em crise. Os acordos entre comunidades e partidos definidos pelo “Tratado da Semana Santa” no processo de paz do país não vinham conseguindo se sustentar. Nestas Eleições, o DUP cresceu 3 cadeiras – foi para 10 – e o Sinn Fein (originalmente ligado ao IRA – Exército Republicano Irlandês) cresceu duas – foi para 7 –  em cima de partidos mais “moderados”, o UUP e SDLP, respectivamente. A ida do DUP para o governo central, mesmo nessas circunstâncias, é vista como um combustível para potencializar significativamente essa escalada.

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Desdobramentos: Fora May! Novas Eleições Já – Corbyn PM!!!

A impressão que se tem nas ruas é que o crescimento de Corbyn e a queda de May continuam mesmo após as eleições. No incêndio de Grenfell, por exemplo, enquanto Corbyn visitou os sobreviventes e obteve apoio destes (e da opinião pública) às suas exigências, Theresa May foi expulsa aos gritos de “covarde” de uma missa no local.

Theresa May é hoje um defunto político. As negociações formais com Bruxelas (sede da UE) sobre o Brexit começaram e era visível a falta de autoridade política do negociador britânico David Davis. O site de humor Daily Mash, espécie de “Sensacionalista” local, publicou que Davis deixou a primeira reunião com o Bloco “sem as calças”. No “Discurso da Rainha”, formalidade onde a monarca “anuncia” o novo governo após um novo parlamento, ficou clara a fragilidade da nova coalizão, cujo acordo sequer conseguiu ser firmado a tempo.

May abriu mão de diversos pontos de seu manifesto e entregou à Rainha um discurso genérico de “negociar um bom acordo de Brexit” e “seguir o ajuste fiscal”. Ironicamente, ao invés da tradicional “coroa imperial”, a rainha trajava um vestido azul com um chapéu que, além do gosto duvidoso, lembrava bastante a bandeira da União Européia. Muitos viram aí mais um sinal do sepultavamento da política de hard Brexit levada a cabo por May e que seria referendada pela ampliação da maioria parlamentar que ela falhou em alcançar. Corbyn, no mesmo evento, manteve a linha de denunciar a “colizão do caos” como ilegítima, apontar que as urnas não deram esse mandato a May e exigindo a convocação de novas eleições.

De fato, é pouco provável que os Conservadores e seus aliados convoquem novas eleições. Não por sua estratégia ser a preservação de May, mas pelo receio – muito justificável – de que isso signifique uma maioria Trabalhista e um governo Jeremy Corbyn. Sua estratégia deve ser a de costurar um acordo mais amplo e sólido, provavelmente com os LibDems e setores da prórpia direita do Labour, para construir um gabinete mais ao centro, orientado ao soft Brexit e agradando o principal setor da burguesia imperialista e financeira. O nome natural seria o de Davidson, mas essa enfrentaria dificuldades com a parte importante da base Conservadora por ser da Escócia e, principalmente, homossexual. Outra opção seria George Osbourne, mas ele não está nessa legislatura e precisaria que algum parlamentar renunciasse para que possa disputar – e vencer – a eleição. Enfim, não parece algo simples e que possa ser implementado em curto prazo. Ainda tentarão manter May respirando enquanto for possível.

Não é porque o governo está fraco, com legitimidade questionada e existem diferenças entre os setores burgueses sobre se seguirão ou não implementando seu projeto central de cortes e austeridade. Evidentemente, o governo terá mais dificuldade para implementar suas políticas, mas seu programa seguirá em curso. Além disso, enquanto estiver comandando as negociaçoes do Brexit, mesmo que seja obrigado a deslocar seu centro de hard para soft, o fará pressionado pelos interesses dos grandes grupos econômicos e não os da maioria da população e dos trabalhadores. Portanto, a tarefa de todas as correntes de esquerda e movimentos sociais no país é a de exigir a saída deste governo e a convocação de novas eleições. Por um governo Corbyn, sem representantes dos grandes grupos econômicos e financeiros, que reverta a austeridade, aplique os pontos de seu manifesto e avance ainda mais rumo à transformação de uma sociedade mais justa e igualitária, enfim, uma sociedade verdadeiramente socialista.

Para que isso aconteça é preciso se apoiar no movimento dos trabalhadores. Envolver as diversas categorias e setores populares e unificar suas lutas nessa direção. Levar novamente a juventude e a população às ruas. No dia 01 de julho, haverá um grande ato em Londres por “Nem mais um dia com Theresa May”. Se essa manifestação repetir a participação e a força dos atos do início do ano, possivelmente colocará o desgaste de May e a luta por um novo governo em novo patamar.

A importância da unidade das lutas contra a austeridade, o racismo e a direita. A necessidade de um governo dos trabalhadores!

Recentemente, vem crescendo o debate sobre como combater os governos neoliberais clássicos e seus projetos de austeridade e, ao mesmo tempo, a extrema-direita racista e xenófoba. Estas correntes de extrema-direita conquistaram um espaço em setores da classe trabalhadora, capitalizando o desgaste dos governos neoliberais e o canalizando para saídas nacionalistas e reacionárias.

O processo eleitoral no Reino Unido – um dos países onde a extrema direita surpreendeu no Referendo do Brexit – apontou o caminho ao mostrar que é possível recuperar este espaço e avançar ainda mais.

Existem setores da esquerda com um discurso de que é preciso “ir mais ao centro” para deter o avanço da extrema direita. Seja no terreno eleitoral ou na luta social do cotidiano. A experiência britânica nos mostrou o contrário. Somente combinando a intervenção nos processos eleitorais com os movimentos e as lutas socias, apresentando alternativas de esquerda com um programa que apresente saídas para a maioria da população que a classe trabalhadora conseguirá impor sua dinâmica. Não é se agarrando a projetos de conciliação como o Lulismo no Brasil ou a “Geringonças” em Portugal que os trabalhadores encontrarão seu caminho.

A saída é a unidade dos trabalhadores e da esquerda socialista em torno a um projeto de independência de classe contra os governos neoliberais e a extrema direita. A defesa de um programa claramente anti-austeridade e anti-capitalista que negue a saída de conciliação de classes que até hoje só trouxe desmoralização à classe trabalhadora e que prepare um terreno ainda mais fértil para deter a reação. E mesmo que, eleitoral ou socialmente, a princípio esta saída pareça minoritária e fadada ao fracasso, a força da política pode fazê-la crescer e ganhar espaço rapidamente. Essa é a lição que o processo brtânico reafirmou, aqui e agora: a saída, com certeza, é pela esquerda!

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Corby / May / reino unido