Por: Euclides de Agrela, de Fortaleza-CE
“Convoco uma Constituinte cidadã, não uma Constituinte de partidos nem de elites, uma constituinte cidadã, operária, comunal, camponesa, uma constituinte feminista, da juventude, dos estudantes, uma constituinte indígena, sobretudo, irmãos, uma constituinte profundamente operária, decisivamente operária, profundamente comunal. Convoco aos ‘comuneros’, às ‘misiones’”.
Com essas palavras retumbantes, reivindicando as bases da Constituição de 1999, promulgada durante o primeiro governo de Hugo Chávez, o atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, assinou, na noite de 1º de Maio, o decreto de convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo de reorganizar o país diante da grave crise política e da debacle econômica e social.
No dia 23, Maduro anunciou, através de um novo decreto presidencial, o formato definitivo das bases eleitorais para a convocação da Assembleia Constituinte. A Constituinte contará com 545 deputados. Destes, 364 serão eleitos territorialmente: um deputado constituinte para cada município do país com um número proporcional em cada estado. Os outros deputados constituintes serão eleitos setorialmente: 79 trabalhadores, 28 aposentados, 24 pelos conselhos comunais e comunas, 24 estudantes, 08 camponeses e pescadores, 08 indígenas, 05 empresários e 04 portadores de deficiência, num total de 181 constituintes.
Em 04 de junho, a presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Tibisay Lucena, notificou que, para as eleições territoriais, se inscreveram cerca de 20 mil candidatos. Por outro lado, para as eleições setoriais, apesar de estas elegerem menos deputados constituintes, o número de candidatos inscritos foi de mais de 35 mil.
No dia 05 de junho, os candidatos territoriais e setoriais começaram a recolher assinaturas, com o objetivo de formalizar sua inscrição junto ao CNE. Todas as candidaturas tiveram que arrecadar assinaturas para legalizar sua inscrição, na medida em que, para participar do novo processo constituinte, não bastava estar filiado e ser indicado por um determinado partido político reconhecido legalmente pelo CNE.
A apresentação das assinaturas com o objetivo de oficializar as candidaturas à Assembleia Constituinte, prevista inicialmente para o dia 10 de junho, foi prorrogada até a meia-noite do dia 12. Aqueles candidatos que se postularam às eleições territoriais deveriam apresentar o correspondente a 3% de assinaturas dos eleitores do seu respectivo município. Já os candidatos setoriais deveriam apresentar 1000 assinaturas, no caso dos trabalhadores e estudantes, e 500 assinaturas para camponeses, pescadores, aposentados, empresários e pessoas com deficiência. Por fim, quem se postulasse pelos conselhos comunais e comunas não recolheria assinaturas, mas apenas solicitaria uma Certificação Eleitoral junto ao respectivo Conselho Comunal ou Comuna.
Entre 11 e 15 de junho ocorreu o processo de verificação das assinaturas necessárias para oficializar os candidatos que concorrerão às eleições constituintes. Essa verificação ficou a cargo das juntas eleitorais municipais, cabendo à Junta Nacional Eleitoral publicar a admissão ou rechaço dos candidatos postulastes. Até o fechamento deste artigo, não havia nenhuma publicação oficial com o número de candidatos reconhecidos oficialmente pelo CNE.
De 09 a 27 de julho ocorrerá a campanha eleitoral para os deputados constituintes. E no dia 30 de julho ocorrerão simultaneamente tanto as eleições territoriais quanto as setoriais para a Assembleia Nacional Constituinte por meio de voto universal, direto e secreto.
Por que Maduro Convoca uma nova Constituinte?
Diante da grave crise econômica e social pela qual passa o país, bem como, após o adiamento das eleições regionais e a suspensão dos poderes legislativos da atual Assembleia Nacional, composta majoritariamente pela oposição de direita, a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte aparece como um desmentido à oposição de direita de que Maduro preparava uma espécie de autogolpe militar. Ao mesmo tempo, procura aparecer também como um apelo aos trabalhadores e ao povo pobre para que participem das decisões sobre o futuro do país.
Assim, segundo o governo, dentre os objetivos da nova Constituinte estariam: construir um sistema econômico pós-petrolífero, preparando o cenário para um novo modelo econômico; construir um Estado de Bem-Estar Social a partir das chamadas “misiones”, dando a este status constitucional; impulsionar novas formas de democracia participativa e protagonista, dando também status constitucional aos Conselhos Comunais e Comunas; garantir uma política exterior de soberania nacional.
Entretanto, depois de quase 20 anos da chamada Revolução Bolivariana, a verdade é que Venezuela continuou sendo um Estado capitalista que se manteve completamente dependente da exportação de petróleo e da renda petrolífera, importando praticamente tudo de que necessitava, desde alimentos até papel higiênico. Não por acaso, diante da queda dos preços do petróleo no mercado mundial, a economia do país entrou em colapso.
Assim, apesar de suas limitações e inúmeras manobras burocráticas ocorridas já no próprio curso das inscrições dos candidatos, a nova Assembleia Nacional Constituinte convocada em meio a uma aguda crise política e econômica que beira à guerra civil, não deixa de ser uma oportunidade para se debater o caráter do Estado venezuelano e apresentar uma saída socialista que mude completamente a estrutura do poder e a matriz econômica do país.
A esquerda socialista e a Assembleia Constituinte
A complexidade da situação venezuelana exige dos revolucionários uma firme posição de princípios e uma precisa tática política. A luta de classes no país hoje está cruzada pela disputa da renda petrolífera entre duas frações da burguesia. De um lado, a velha burguesia pró-imperialista subordinada aos interesses dos Estados Unidos. Do outro lado, a boliburguesia, ou seja, a burguesia bolivariana, formada a partir de empresários chavistas e de outros setores burgueses aliados do governo Maduro.
A oposição de direita busca seu apoio, sobretudo, na pequena burguesia e nas chamadas classes médias. Cabe destacar que a crescente perda de apoio do governo Maduro entre os trabalhadores e o povo não se traduz direta e imediatamente numa adesão à oposição de direita. Ainda que tenha vencido a última eleição para a Assembleia Nacional, onde a Mesa de Unidade Democrática (MUD) conquistou a maioria dos deputados, isso não significou a adesão da população ao seu programa pró-imperialista, mas um voto castigo contra o chavismo por suas promessas não cumpridas.
O governo Maduro busca ganhar essa disputa apoiando-se nos trabalhadores assalariados e no povo pobre, inclusive mobilizando-os através de organismos como os Conselhos Comunais, Comunas e Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAPs). As favelas não desceram dos morros em uma nova insurreição popular contra seu governo como ocorreu no “Caracazo” em 1989, em grande medida porque o governo tem priorizado a distribuição de alimentos subsidiados a baixo custo para os bairros pobres de Caracas e as principais cidades do país.
Nesta luta, entre a velha burguesia pró-imperialista e a boliburguesia, travestida na disputa do Poder Executivo, representado pelo presidente Nicolas Maduro, com o Poder Legislativo, que tem como representante a MUD, desgraçadamente, os trabalhadores e o povo pobre da Venezuela não possuem uma alternativa política, de classe e de massas.
Mas essa tamanha polarização política não deixa de colocar, de maneira dramática, a questão do poder. Pelo contrário, a exacerba. Nas atuais condições da luta de classes, a queda de Nicolás Maduro se dará pela mão da oposição de direita. Não serão os trabalhadores mobilizados como classe em seus próprios organismos, dirigidos por um partido revolucionário com influência de massas, que tomarão o poder. Tampouco chegará ao poder, através de eleições livres, uma fração da burguesia que esteja disposta a respeitar as liberdades democráticas, realizar uma política de conciliação de classes e de concessões econômicas e sociais aos trabalhadores e ao povo pobre. O setor opositor é a velha burguesia subordinada diretamente ao imperialismo estadunidense que, apesar de ter renovado seu discurso e parte de seus representantes políticos, trata-se da mesma fração burguesa golpista de 2002.
É nesse marco que se coloca o problema da convocação da nova Assembleia Nacional Constituinte. É verdade que a nova Constituinte não é nenhuma garantia de conquistas efetivas para os trabalhadores e o povo venezuelanos, da mesma forma que qualquer eleição no marco do Estado capitalista também não é nem nunca foi. Também é verdade que tanto a inscrição dos candidatos quanto o resultado das eleições podem ser fraudados, na medida em que a presidência da República tem em suas mãos as rédeas do CNE e das juntas eleitorais territoriais e setoriais. Somos conscientes de todos os limites, contradições e riscos do significado de tal processo constituinte controlado pelo chavismo.
Entretanto, gostemos ou não, queiramos ou não, a nova Assembleia Nacional Constituinte é um fato. Este fato, ainda que distorcido e controlado pelo poder Executivo, coloca na ordem do dia para todo o país o debate, não apenas sobre novas eleições presidenciais e parlamentares, mas sobre a questão do poder: quem, como, em que condições e com que programa deve governar o país.
Diante disso, só há duas alternativas táticas possíveis: boicote ou participação. Neste momento, boicotar a Constituinte sem dúvida significa unir-se à oposição de direita em defesa da convocatória de eleições gerais, sem que isso coloque em xeque as bases políticas, sociais e econômicas do país através da redefinição de sua Constituição. Isso seria um grave erro político.
Assim, a tática mais adequada não pode ser outra senão a participação na nova Assembleia Nacional Constituinte venezuelana. Isso não significa defender o governo Maduro e seu regime político. Pelo contrário, seria aproveitar o espaço aberto pelas eleições e os debates constituintes para lutar por um programa de ruptura com o capitalismo que o próprio Maduro tem se negado a realizar.
Um programa de transição ao socialismo
A participação dos candidatos que representem os trabalhadores e movimentos populares críticos e independentes do chavismo nas eleições constituintes, deve fazer destas um importante palanque para se colocarem à esquerda e em oposição ao governo.
No seio das eleições e nos debates da própria Assembleia Nacional Constituinte, caberia à esquerda socialista defender um programa que apontasse uma saída para a crise e reorganizasse o país sobre novas bases econômico-sociais.
A esquerda socialista deve dizer que para combater a presente catástrofe econômica e social é necessário, em primeiro lugar, romper com o imperialismo estadunidense e o FMI, deixar de pagar a dívida externa e interna aos bancos e especuladores privados, estatizar o sistema financeiro. Com os recursos antes destinados ao pagamento da dívida e os provenientes da renda petroleira, o governo deve colocar em marcha um Plano de Emergência para reerguer a economia nacional e colocá-la a serviço dos trabalhadores e do povo.
Em segundo lugar, que é necessário de uma vez por todas que a PDVSA seja 100% estatal, pondo fim a todas as empresas mistas com transnacionais petrolíferas estadunidenses, chinesas, russas ou de qualquer outro país. A PDVSA deve ter toda a sua burocracia corrupta destituída e eleger um conselho gestor entre seus próprios trabalhadores com mandatos revogáveis que preste contas publicamente a toda sociedade sobre a administração da empresa. Também é necessário expropriar sem indenização as empresas privadas que sabotem a economia do país fazendo coro ao boicote imperialista.
Em terceiro lugar, é necessário um plano econômico de emergência que garanta investimentos maciços para ampliar e diversificar a produção industrial e agrícola do país, rompendo com a matriz econômica baseada na exportação de commodities. Industrializar o país rompendo a dependência externa e garantir a soberania alimentar é central. Um primeiro passo neste sentido é estatizar sem indenização toda a indústria de alimentos e construir um grande complexo agroindustrial nacional que produza alimentos de qualidade e baratos para todo o povo. Para combater o mercado negro, deve-se estatizar ainda as redes privadas de supermercados e criar um sistema de distribuição de alimentos controlado desde baixo pelos próprios trabalhadores.
Em quarto lugar, como parte deste plano, com o objetivo de gerar empregos e recuperar o poder aquisitivo da população, deve-se reduzir a jornada de trabalho, repor todas as perdas inflacionárias e garantir o aumento geral dos salários para que alcancem o atendimento pleno das necessidades de moradia, alimentação, saúde, educação, vestimenta, transporte e lazer das famílias dos trabalhadores.
Em quinto lugar, a Venezuela precisa de um plano maciço de obras públicas que ponha fim ao déficit habitacional, construa escolas, hospitais, garanta o abastecimento de água e saneamento básico. Através desse plano se reduziria também drasticamente o desemprego.
Em sexto lugar, a estatização da saúde e da educação privadas e a universalização da saúde e da educação públicas e gratuitas para todos e em todos os níveis.
Em sétimo lugar, mas não menos importante, a garantia das mais amplas liberdades democráticas para os trabalhadores e o povo possam organizar independentemente do governo e do aparato estatal seus partidos, sindicatos, associações, manifestações e greves.
Por um governo dos trabalhadores sem capitalistas e burocratas corruptos
A esquerda socialista na Venezuela tampouco deve se limitar a propor a reorganização do país sobre novas bases econômicas e sociais, como apontamos acima, mas também deve propor novas bases políticas e institucionais. Para isso será necessário:
1) Concentrar os poderes Executivo e Legislativo numa Assembleia Unicameral, pondo fim à presidência da República, fonte de medidas autoritárias. Entregar o poder aos representantes do povo eleitos nos locais de trabalho e nos bairros populares com mandatos revogáveis a qualquer momento;
2) Instituir uma autêntica revogabilidade de mandatos e reduzir os salários de todos aqueles que exerçam funções de administração, fiscalização e controle no aparato estatal ao salário médio de um trabalhador especializado;
3) Acabar com a intervenção da FANB na vida civil e econômica do país e extinguir suas funções repressivas contra o povo. Deve-se constituir uma Segurança Pública que tenha um caráter civil, centralmente comunitária, investigativa e preventiva a serviço da população e não um caráter militar repressivo. As forças armadas, por sua vez, devem ser constituídas sobre a base de milícias populares colocados a serviço da defesa do país e dos trabalhadores.
Com base nas medidas acima, a esquerda socialista deve centrar seus esforços no sentido do impulso da mobilização dos explorados e oprimidos, estimulando a construção de organizações independentes do governo Maduro e da oposição de direita. A estratégia deve ser alcançar um Governo dos Trabalhadores e do Povo, sem capitalistas e burocratas corruptos, que tome em suas mãos os destinos do país e que tenha como objetivo a construção do autêntico socialismo, colocando um fim à propriedade privada e à exploração.
Referências:
- Esquerda Online, 06 de abril de 2017. A esquerda socialista e o agravamento da crise na Venezuela. Fonte: http://esquerdaonline.com.br.br/2017/04/06/a-esquerdaa-socialista-e-o-agravamento-da-crise-na-venezuela/
- BBC Mundo, 2 mayo 2017. El presidente Nicolás Maduro convoca a una Asamblea Nacional Constituyente en Venezuela. Fonte: http://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-39774863
- Presidencia de la República Bolivariana de Venezuela. Proceso Constituyente en el país abordará nueve puntos en específicos. Prensa Mppdpsgg (Yuneidi González/01.05.17). Fonte: http://www.presidencia.gob.ve/Site/Web/Principal/paginas/classMostrarEvento3.php?id_evento=4837
- VTV Venezuela. Fonte: http://vtvadminweb.vtv.gob.ve/app/uploads/2017/05/Gaceta-Oficial-Extraordinaria-N%C2%B0-6.295.pdf
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