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BRASIL

OPINIÃO | Por um tratamento mental dos estudantes: contra medicalização da loucura e privatizações do SUS

Por: Isabela Leoni*, do Rio de Janeiro, RJ

No Brasil, com a abertura democrática iniciada no final da ditadura do grande capital, abriu-se espaço para que os movimentos sociais, que lutaram muito para que este acontecimento ocorresse, pudessem estar mais organizados e, desse modo, conquistassem uma boa participação na constituinte de 1988. A Constituição de 1988, conhecida como constituição cidadã, abarca muitas demandas na área da proteção social, garantindo, assim, a seguridade social no país. Houve uma tendência à universalização da educação e da saúde. Porém, isto foi apenas uma tendência. O avanço neoliberal imposto pelos países centrais aos periféricos chegou com tudo nos anos 1990, impedindo a plena implementação da seguridade escrita na constituição. As medidas de financeirização, desregulamentação e os desmontes das políticas sociais foi o cenário desse período.

O movimento de reforma psiquiátrica no Brasil emerge de forma mais explícita no final da ditadura militar, em 1978, quando os vários movimentos sociais conquistaram a possibilidade de se organizar e se manifestar sem a repressão aberta dos anos anteriores. Também nos anos 1970 Foucault visita o país algumas vezes, influenciando assim, o campo das ciências humanas da saúde mental e os militantes da reforma psiquiátrica. A principal luta deste movimento social era a desinstitucionalização dos pacientes manicomiais e por um tratamento que fosse mais humanizado, recuperando os laços do paciente com a sociedade e a família. A psicanálise também influenciou muito esse processo. Conquistas reais foram implementadas na área da saúde como um todo, como o Sistema Único de Saúde e o fim dos manicômios.

Entretanto, como já pontuado acima estamos num processo de avanço neoliberal desde os anos 1990 até os dias atuais no país. Nesse cenário em que as políticas sociais estão cada vez mais focalizadas, setoriais e privatizadas, além da flexibilização dos contratos de trabalho, terceirização e precarização desses, a tendência é uma crise mental generalizada na classe trabalhadora e inclusive nos estudantes que não estão de fora desta classe. o capitalismo neoliberal provoca crise econômica, privatização, focalização, subfinanciamento e sucateamento das políticas sociais; precarização dos vínculos de trabalho; perda de direitos substantivos e da qualidade dos serviços públicos; desigualdade social; desemprego e trabalho informal; aumento da pobreza, violência social e abuso de drogas, com fortes implicações no campo da saúde mental.

“Esse contexto tem dimensões psicossociais dramáticas para as classes populares, induzindo a quadros de:

a) desamparo e depressão, particularmente após vários meses de ausência ou de buscas infrutíferas de trabalho, ou mesmo condições muito precárias de trabalho;

b) desarticulação da perspectiva de futuro através da dedicação ao trabalho e à carreira pessoal, e da esperança dos filhos terem uma vida melhor por meio do investimento em longo prazo na educação e na formação para o trabalho. Essa desarticulação é complementada, em sua outra ponta, pelo baixo investimento e qualidade precária do ensino público, com altas taxas de evasão escolar, impedindo-o de servir como um dos poucos mecanismos de mobilidade social disponíveis para as classes populares, e portanto, de também ajudar a sustentar essa perspectiva de futuro;

c) a desesperança e a desarticulação da perspectiva de um futuro melhor abre o caminho, particularmente entre jovens homens, desempregados de favelas e bairros periféricos de cidades

médias e grandes, para sua atração e mobilização pelo crime e pelo narcotráfico. Isso gera um aumento vertiginoso nos indicadores de violência e de mortes violentas e prematuras neste grupo etário. A entrada e difusão mais incisiva do crack na última década, em todo o território brasileiro, vem deteriorando ainda mais esta situação;

d) a violência física e o justiçamento passaram a constituir formas usuais de se resolver conflitos interpessoais corriqueiros dentro dessas comunidades, inclusive, nas escolas públicas. Os espaços públicos urbanos são cada vez mais vividos como perigosos, restringindo a troca social e o lazer;

e) aumento significativo da incidência de quadros pós-traumáticos, psicossomáticos, de ansiedade e fobia social, decorrentes da exposição a situações de violência, o que, por sua vez, tem um enorme impacto na demanda dos programas públicos de saúde mental.”

“No Brasil, apesar de suas particularidades, o impacto dessa conjuntura neoliberal sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e, consequentemente, também no campo da saúde mental, é significativo.

a) O sucateamento das políticas sociais gera:

• subfinanciamento, terceirização e privatização de serviços e de sua gestão em parte do sistema;

• redução dos espaços de participação popular e de controle social;

• taxas elevadas de desigualdade social, desemprego e trabalho informal;

• precarização dos vínculos de trabalho, com alta rotatividade, mobilizando novos contingentes de gestores e trabalhadores sem qualquer contato com a história e a experiência política anterior. Isso atinge, em cheio, o campo da saúde mental.

b) A deterioração das condições de trabalho e a competição com a organização crescente das demais categorias profissionais da área da saúde estimulou iniciativas estritamente corporativistas dos médicos, como por exemplo, o projeto de lei do Ato Médico.

c) Os novos avanços tecnológicos e farmacológicos vêm reforçando a legitimidade da psiquiatria biomédica na sociedade, estimulando suas demandas corporativas. Isso levou suas entidades (como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e suas lideranças a se articularem politicamente em outro patamar, a ocuparem espaços significativos junto à grande mídia, ao Congresso, ao Judiciário, aos executivos estaduais e municipais etc. Esse setor vem fazendo uma campanha contra os principais valores e conquistas da reforma psiquiátrica brasileira, tentando se articular para obter melhor acesso ao aparelho de governo federal, particularmente no Ministério da Saúde e na Secretaria Nacional Antidrogas. Essa organização é mais expressiva em São Paulo, mediante forte aliança com os governos e com os partidos dominantes no Estado (PSDB, DEM e o novo PSD), mas essa articulação se difunde para os demais estados e, particularmente, nas instâncias legislativas e executivas em Brasília (DF).

d) A atual difusão epidêmica do crack no País, com efeitos avassaladores, em curtíssimo prazo, sobre a saúde física, psíquica e cognitiva, particularmente entre as crianças e adolescentes, vem agudizando o drama dos usuários e de suas famílias, com alta visibilidade social e na mídia. Isso tem levado a uma política de apoio a comunidades terapêuticas e à ênfase na internação compulsória em massa e de longa duração, com significativo apoio do lobby da psiquiatria biomédica, de parte significativa de parlamentares e das próprias instâncias centrais do

Governo Dilma. Esse tem evitado se confrontar com as forças políticas mais conservadoras, assumindo claramente posições conciliadoras ou mesmo retrógadas quando o tema não constitui sua prioridade política e econômica. Isso aconteceu na campanha política em relação ao aborto, nas medidas de terceirização, privatização e subfinanciamento do SUS, e agora em relação ao enfrentamento do crack.”

Novos desafios da Luta antimanicomial
Depois de todas essas observações é de extrema importância pontuar os novos desafios da Luta antimanicomial nesta conjuntura. Em tempos em que a Questão Social está cada vez mais psicologizada, isto é, há uma culpabilização do indivíduo pela situação social, econômica e psíquica em que esse se encontra. A tendência ao adoecimento mental está aumentando gradativamente e dentro da ideologia dominante isso é culpa apenas do indivíduo que não se esforçou o suficiente para sair de tal situação. Observa-se que a psiquiatria tradicional está ganhando cada vez mais espaço, substituindo, assim, o antigo manicômio pela medicalização excessiva das doenças mentais. O que esses médicos estão preocupados é em acabar com os sintomas e não descobrir as causas dos distúrbios mentais, numa visão de totalidade da vida do sujeito.

Trata-se a doença mental como se fosse uma doença física, em que para cada sintoma há um remédio, não indo no cerne do problema. Esta visão imediatista está em congruência com o sistema capitalista, pois esse quer que os problemas sejam resolvidos de imediato para que os trabalhadores apenas possam voltar a vender sua força de trabalho, sem questionamentos. Por trás dessa medicalização há também uma indústria farmacêutica que lucra estrondosamente com a venda de remédios controlados.

Há também toda uma ideologia de que a pessoa deve ser feliz a todo momento e essa felicidade é conquistada através do consumo. “Consumo, logo sou feliz.”. As pessoas que não possuem capacidade de consumo então seriam eternamente infelizes e estariam nessa situação apenas porque não se esforçou para conseguir consumir. Temos todo um padrão de vida normatizador para nos encaixarmos e quando não conseguimos somos considerados loucos, desviantes da norma.

Como então, seguir na luta nessa conjuntura? O que nós da luta antimanicomial devemos fazer? Esses questionamentos são pertinentes. Ultimamente tivemos o caso em que o prefeito de São Paulo João Dória tomou medidas repressivas usando a polícia para a internação compulsória de usuários de crack sem medidas legais para tal. A internação compulsória deve ter avaliação médica para que ocorra, ou seja o que Dória está fazendo nem é internação compulsória, é algo mais retrógrado ainda. É algo que fere completamente os direitos humanos dos usuários e regride até antes da constituição de 1988, remetendo essas ações a medidas manicomiais.

Somos contra essas ações de Dória, assim como somos contra a medicalização da loucura!

Por políticas estudantis que abarquem a saúde mental dos estudantes
Nas universidades, temos visto o adoecimento mental dos estudantes nos últimos anos. Isso ocorre devido à conjuntura já explicitada e também por que as Universidades que temos são lugares propícios ao adoecimento psíquico. Este espaço é ainda muito elitista, branco, lgbtfóbico e machista. Nossa permanência nessas instituições depende não apenas de bolsas auxílios, mas também de medidas mais amplas como alojamento para todos, bandejão, serviço de saúde, incluindo saúde mental, etc

Bibliografia:

VASCONCELOS, Eduardo Mourão; Crise mundial, conjuntura política e social no Brasil, e os novos impasses teóricos na análise da reforma psiquiátrica no país, Artigo de Opinião

*O texto foi originalmente publicado como contribuição da tese Pra Virar o Jogo para o Conune 2017

Foto: Two Green Points | 1935 | Paris, Centre Georges Pompidou | Kandinsky