OPINIÃO | Get Out (Corra!): uma análise-crítica sobre racismo a partir da primeira obra de Jordan Peele (com SPOILER)

Por: Felipe Sales, Maceió, Alagoas*

Tive muitas dúvidas se deveria, ou não, escrever este texto. Não me encontro na posição social daqueles que sofrem cotidianamente as fustigações das opressões. Obviamente que isso não seria de todo um impeditivo para que eu escrevesse, não seria essa a expressão de minha preocupação. Minha dúvida dava-se, na verdade, sobre o fato de não saber se conseguiria ter, ou não, a sensibilidade de enxergar e captar as nuances do excelente filme feito pelo satisfatório estreante Jordan Peele. Mas, por sorte (ou seria azar), resolvi arriscar.

Get Out (Corra!) é um filme com um roteiro simples. Sua simplicidade, no entanto, não deve ser entendida como algo menor, que não necessita de reflexão em busca de um entendimento mais particular. Como todo bom filme, “Corra!” tem camadas de interpretações que garante um bom entretenimento àqueles que assistem um filme sem necessariamente buscar grandes explicações filosóficas-existenciais-sociológicas, e uma excelente discussão àqueles que se arriscam a mergulhar um pouco mais.

Poderia dizer até que, de certo modo, a mensagem do filme também é relativamente simples: discutir o racismo de modo geral e o racismo estadunidense de forma particular. Agora, é na forma dessa discussão que se encontra a verdadeira magia e a riqueza desta produção.

Peele, embora comediante, escolheu o terror, um thriller psicológico, para contar sua história. Chris (Daniel Kaluuya), um bom e jovem fotógrafo negro,vive um estável e romântico relacionamento com Rose (Allison Williams), uma jovem mulher branca descendentes de alemães. Quando convidado a conhecer num evento especial a abastada família de classe média alta de sua namorada, Chris pergunta: “Eles sabem que eu sou negro? ”Essa é a interrogativa que irá estabelecer a trama do filme.

A experiência fílmica de “Corra!” começa com um elegante plano sequência que nos mostra um bairro bem estruturado, com boa iluminação e com excelentes casas. Lentamente vai surgindo e indo ao centro da cena um homem negro ao telefone que logo descobrimos estar perdido e assustado tentando encontrar um endereço. O Clima torna-se angustiante quando um luxuoso carro branco (não seria mera casualidade a cor do automóvel!) passa a perseguir lentamente o rapaz.

Percebam já de cara, Peele estabelece uma relação aparentemente invertida do que seria o imaginário social do senso comum. Não é o subúrbio e nem um homem branco sendo perseguido. É um negro assustado sendo perseguido por um carro branco em um bairro de classe média alta. Essa cena, penso eu, é uma metáfora para exprimir o sentimento e a sensação de um negro ao chegar em lugares que “não seriam seus”, seja através de sua simples presença transitória em um bairro ou, principalmente, pela conquista de uma posição social de mais destaque. Os olhares e a onipresença dos costumes e elementos culturais fundamentalmente brancos criam um ambiente absurdamente hostil em sua desfaçatez e opressivo para quem tem de encarar o cotidiano dessa realidade sem abrir mão de suas raízes. É também uma clara mensagem de que a violência da estratificação social, não só simbólica como física, é uma realidade tanto das classes baixas como das mais altas.

A cena termina com o negro desmaiado sendo arrastado para a mala do carro ao som da música “RunRabbitRun” de Flanaganand Allen. E em sincronia com o fechar da porta, a música para e dá lugar ao som das cordas de um angustiante violino dissonante. O carro sai. A cena corta. E entram o título e os créditos iniciais. É um começo de filme e tanto!

Em seguida pode se ver a partir de um automóvel em movimento a passagem das árvores de uma floresta. Associada com a presença do cervo, essa imagem poderia representar a liberdade, ou a busca dela. Todavia, assim como o animal, essa liberdade acabaria sendo mediada pelas necessidades de se correr dos constantes olhares e perseguições.

O cervo é um animal comumente associado à caça. Não é raro, por exemplo, encontrar filmes em que caçadores estão prestes a atirar no animal. Mas sobre a perspectiva da produção de Peele, e em um contexto de discussão político-social (ainda mais quando se verifica um aumento da violência policial contra os negros nos EUA), esta cena acaba tomando outra dimensão. Uma dimensão, em minha opinião, de inferência à realidade dos negros enquanto grupo social marginalizado e constantemente observado sob a mira de um “caçador”. Em “Corra!” há ao menos quatro passagens desta natureza.

Por exemplo, quando Chris congela seu olhar ao observar o animal agonizando após ter sido atropelado acidentalmente por sua namorada, há um sentimento por traz de seu olhar maior do que a simples compaixão pelo animal. Descobrimos depois que na verdade era uma fagulha de lembrança da morte de sua mãe, que, assim como o cervo, sem ninguém prestar atendimento ou sentir sua falta, agoniza até a morte. A fala do pai de Rose também seria emblemática neste sentido. Ao saber da morte do cervo, o Sr. Armitagere age de forma positiva, pois considera o animal como uma praga e enxerga em sua morte a possibilidade de um novo recomeço.

A simbologia trabalhada por trás da cena em que Chris acorrentado defronta-se com o cervo pendurado na parede é reveladora. A mudança do foco que depois de um movimento de câmera que sai da parte de trás da cadeira onde Chris está acorrentado e sobe até encontrar num segundo plano o cervo na parede pendurado, tem o objetivo de estabelecer certa correspondência de posições na “hierarquia social” entre Chris e o cervo. E, além de revelar que Chris, assim como o animal, estaria prestes a ser “empalhado”, representaria também a ideia de uma dominação branca sobre uma “inferioridade” negra. Evidenciando assim a alusão entre o cervo/negro, caçador/branco.

Um outro aspecto desta produção seriam as metáforas sobre as novas formas de dominação. Enquanto no passado a dominação se dava a partir das mais brutais formas de violência, e sob um discurso de animalidade, ou seja, de negação da humanidade negra,hoje essa dominação, além de se estabelecer sobre uma superestimação das qualidades biológicas (o avô de Rose não teria perdido de Jesse Owens nas eliminatórias das olimpíadas de Berlin em 1936, por exemplo, mas sim perdido para a “super qualidade genética” de Owens. Ou as constantes perguntas sobre as predisposições genéticas de Chris) incorporaria também elementos mais sutis como o da assimilação ideológica. O discurso, portanto, adquiriria aspectos hipnóticos para a dominação.

Não me parece fortuito que a “mise em scène” em que Chris é hipnotizado se estabeleça a partir da mãe de Rose rodando uma colher de prata numa xícara de porcelana sob a área mais iluminada da cena e com livros ao fundo. Enquanto Chris está sentado numa cadeira de couro lembrando-se, em um quarto apertado e iluminado apenas pela difusa imagem de uma televisão, do momento da morte de sua mãe. A colher de prata, a xícara de porcelana e os livros – elementos reluzentes caracterizados pela brancura ou transparência além da identificação de alguma forma de poder – poderiam ser a representação simbólica da dominação da consciência a partir do discurso sedutor e hipnótico do “embranquecimento” ou da meritocracia. Na sequência da hipnose, inclusive, quando Chris pergunta o porquê de não conseguir se mexer, a Sr.ª Armitage afirma que ele está paralisado, assim como no dia da morte de sua mãe em que ele não fez nada. Como se a mera vontade individual, sozinha, independentemente de qualquer situação, fosse o suficientemente forte para as mais extravagantes superações.

Esta interpretação poderia ser comprovada pela reflexão do uso da palavra que garante o sucesso da hipnose: o “sunkenplace” – “esquecimento”. Não seria mera casualidade que a dominação completa dos corpos dos negros se dessem pelo “esquecimento” de sua identidade, de sua cultura, de sua história. A adaptação da consciência ao modelo da “branquitude” ou ao discurso da meritocracia, nesse sentido, acarretaria num distanciamento do eu-histórico negro semelhante à morte. A incorporação das ideias dominantes em que se relativizaria a posição e a história de um grupo social historicamente marginalizado seria como o preenchimento de um conteúdo completamente distinto das marcas da violência física, simbólica e psicológica impressa em sua materialidade corpórea. Representaria o vazio plasmado num afundamento profundo. Ou seja, seriam ideias que não representariam a real necessidade do ser-histórico negro.

Tanto é assim que a superação do estado hipnótico de Chris se dá a partir do reconhecimento e afirmação de sua história. É simbolicamente belo como que a angustia da lembrança da morte da mãe fez com que Chris rasgasse a poltrona em que estava acorrentado e que fosse o algodão, produto-símbolo da escravidão estadunidense, o escudo contra a “sedução” auditiva de adaptação e perda da identidade. Nesse momento, a passividade do personagem é transformada em ação. E aí não há mais vacilações. Diferentemente de outras produções do gênero em que as reações das vítimas são abobalhadas, em “Corra!” o protagonista sabe muito bem o que deve fazer, e faz. A utilização do cervo como arma para matar o pai de Roseseria é outro elemento simbólico da afirmação de sua identidade e o resgate de sua história como antídoto contra o “esquecimento” e afundamento do seu ser.

Por fim, depois de uma construção das expectativas e sensações muito bem trabalhadas, quando tudo parecia caminhar para uma resolução sem mais sobressaltos, acontece o que poderia ser o momento de maior identificação com o personagem, pois Peele coloca o expectador num lugar onde seria impossível não se realizar um exercício de alteridade e ao mesmo tempo de reflexão social. A sensação de incredulidade, decepção, medo ou raiva que o momento final da película pode provocar, só é possível e faz sentido porque sabemos que diante da cena em que Chris, cercado por corpos e em luta contra Rose, vê a polícia chegar,não teria a remota chance de ser considerado inocente. “Corra!”, nesse momento,nos coloca numa posição de confirmação categórica, irrefutável a partir de nossas próprias sensações, da violência física e simbólica não só policial, mas, acima de tudo, social. É a revelação brutal de olhar e nos darmos conta de para onde nossa mira está apontada.

*O texto reflete a opinião dos autores e não necessariamente do Esquerda Online.