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EDITORIAL

Há 28 anos, o Massacre de Tiananmen

Por Waldo Mermelstein, São Paulo/SP

Hoje se completou mais um ano do terrível massacre da Praça Tiananmen. Reproduzo o artigo escrito para o Esquerda.net no ano passado, a pedido do amigo Luís Leiria. Ainda abafado pelo governo chinês com mão de ferro, o massacre que terá vitimado milhares de pessoas não pode ser apagado da história. Neste artigo, presto minha homenagem às vítimas e reitero a convicção de que as lições desse combate serão lembradas, em particular pelos milhões de trabalhadores, camponeses e jovens chineses que lutam por seus direitos.

Momento mais simbólico da resistência ao massacre.
Momento mais simbólico da resistência ao massacre.

Há 28 anos, um fato tremendo prendeu a atenção do mundo: as centenas de milhares de pessoas que ocupavam a imensa praça Tiananmen em Beijing eram violentamente escorraçadas de lá por milhares de soldados e tanques de guerra. Na sequência, um implacável massacre ocorreu nas ruas e avenidas próximas da Praça e em muitas cidades do país, um número que pode chegar a várias milhares de pessoas morreu em todo o país.

A comoção foi abafada pelo governo chinês com mão de ferro e até hoje as vítimas são caluniadas, censuradas, ignoradas. Os familiares lutam bravamente para saber o destino de seus entes queridos. Mas a memória de um evento dessa magnitude não pode ser apagada da história. Na diáspora chinesa, o facto é recordado e em Hong Kong é uma tradição anual evocá-lo.

República popular da amnésia

Um interessante livro da jornalista Louisa Lim, recentemente publicado, chamado “A república popular da amnésia: Tiananmen revisitada” (The People’s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited) traz depoimentos de personagens do massacre. Dirigentes estudantis que permaneceram no país perseguidos pelo sistema. O soldado que estava num dos batalhões deslocados para a repressão e que conta como incontáveis multidões de habitantes de Beijing impediram as tropas de se deslocar para a praça, por repetidas vezes. Até que uma estratégia inédita foi utilizada pelos comandantes: todos os soldados deviam ir em roupas civis, disfarçados em meios de transporte público até o prédio da Assembleia Nacional, em Tiananmen, onde receberam uniformes e armas. O depoimento de duas mães de estudantes assassinados que fundaram o grupo das Mães da Praça Tiananmen e que lutam para saber o que ocorreu com os seus filhos. Podemos ver um mundo nas sombras, fora dos grandes monumentos e obras da capital chinesa e que não foi apagado.

Quando estive em Beijing pela primeira vez, tive o privilégio de ouvir uma palestra e conversar com uma antiga operária e ativista do movimento da época, Lijia Zhang, hoje infelizmente convertida ao credo neoliberal, que trabalhava numa fábrica em Nanjing (antiga capital no tempo dos nacionalistas) e participou e ajudou a organizar manifestações multitudinárias na cidade em solidariedade aos estudantes. Ela é autora do livro de memórias, “Socialism Is Great!”: A Worker’s Memoir of the New China, que adquiri quando estava em Beijing. Em tempo: a palestra foi em inglês e o livro foi também publicado em inglês, o que escapava das garras afiadas da censura chinesa.

Ponto de inflexão

Vinte e set8 anos depois, quem serão os vingadores da Tiananmen trágica?

O massacre foi um ponto de inflexão decisivo para a restauração capitalista na China, cujo processo vinha de antes, mas que só a brutal repressão e a unificação da liderança do Partido Comunista chinês permitiram implementar com grande sucesso. De lá para cá, cerca de 200 milhões de camponeses emigraram para as cidades e se tornaram os operários do “atelier do mundo” em que se transformou a China.

Trabalhadores migrantes à espera de transporte para o interior, em 2009. Foto de Waldo Mermelstein.
Trabalhadores migrantes à espera de transporte para o interior, em 2009. Foto feita na estação férrea de Beijing, pelo autor.

Em 2009, tive uma pequena imagem das contradições de um país que fora atingido pela crise e obrigou 20 milhões de trabalhadores migrantes a voltar para o interior do país. Na estação ferroviária de Beijing pude ver a dimensão do drama: milhares esperavam nos imensos salões de espera da estação, sentados ou deitados no chão, comendo, fumando, jogando cartas. Não pude tirar boas fotos porque não me senti com o direito de fazê-lo com o cuidado necessário: a desgraça humana era demasiada. Foi uma das três vezes em que isso aconteceu. As outras duas foram no Museu das vítimas dos bombardeios americanos no Vietname e no Memorial das vítimas de Hiroshima.

Homenagem

Rendo a minha homenagem aos que lutaram, aos que foram assassinados, aos que procuram silenciosamente manter a memória viva do que aconteceu. Mas mais do que nada, olhamos com esperança as ações quotidianas da classe trabalhadora chinesa, que contabiliza muitas milhares de greves e mobilizações por ano contra as condições de extrema exploração pelo capital internacional e chinês, que alegremente se unem neste novo Eldorado. As greves ainda são atomizadas, sem coordenação e com pouco ou nenhum saldo organizativo, coisa que o regime procura ciosamente evitar. Não é por acaso que o orçamento de segurança interna é ainda maior que o dedicado às Forças Armadas. Quando irrompem mobilizações, uma rotina é que os serviços de segurança ofereçam o pagamento de uma parte das exigências dos trabalhadores, tolerando as mobilizações, desde que não haja unificação, organismos novos e manifestações públicas muito ostensivas.

É claro que este esquema só pode funcionar por um tempo. A queda no ritmo de crescimento do país, a mudança de modelo de crescimento em direção à produção de bens mais sofisticados encerrou a acumulação capitalista alucinante que consumia milhões de toneladas de matérias-primas e grãos e dificilmente haverá um crescimento económico das proporções das últimas duas décadas e que pode absorver tantos milhões nas cidades. Quanto tempo demorará para que vejamos fenómenos como o da Revolução dos Guarda-chuvas de Hong Kong se transmitirem ao continente?

Mártires serão reivindicados

Quanto tempo levará para que haja o salto na organização desta classe trabalhadora gigantesca? Esta será a hora em que os mártires do Movimento 4 de Junho serão reivindicados e as lições desse grande combate serão lembradas, pois por mais que o regime tente eliminar a memória, uma comoção daquela magnitude não foi nem poderá ser esquecida. A foto no começo deste artigo é um clássico simbólico da resistência, ainda que tenha sido no dia posterior ao 4 de Junho.

Ao centro, Chen Du Xiu, linguista, dirigente fundador do PC chinês em 1919 e que posteriormente aderiria ao movimento pela IV Internacional dirigido por Leon Trotsky.
Esta outra foto tirei em 2009, no memorial em homenagem à fundação do PC chinês, em Shangai, quando visitei a China. Nela está Chen Du Xiu (ao centro), linguista, dirigente fundador do PC chinês em 1919 e que posteriormente aderiria ao movimento pela IV Internacional dirigido por Leon Trotsky, cuja memória não pôde ser totalmente apagada pelo regime maoísta e os que o sucederam.