Por: Ítalo Coelho de Alencar, graduando em Direito e pesquisador de políticas sobre Drogas – IBEPS
O chamado “combate às drogas” nunca saiu dos noticiários. Aliás, a cada dia se torna mais importante nos programas sensacionalistas, que têm pautas dedicadas ao elogio à barbárie. Nos últimos dias, mas não de maneira inédita, o personagem mais assustador ganhou novamente as telas: o crack. Ou melhor, a dita “cracolândia”.
O novo garoto propaganda da burguesia paulista, o prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), resolveu voltar os holofotes e canos de escopetas aos moradores das ruas daquela região. A capital paulista, assim como as demais grandes cidades do país, abriga milhares de pessoas em situação de rua. Os motivos para elas estarem passando por esta situação de vulnerabilidade, miséria e mendicância são os mais diversos possíveis, que vão desde problemas familiares, psiquiátricos e, ou, em outros casos, ao uso problemático de drogas, seja álcool, cigarros, “cola de sapateiro”, solventes inaláveis, cocaína, crack, entre outros.
Nos últimos anos, aumentou o consumo de crack, uma variante barata e de pior qualidade da cocaína. Em que pese o sensacionalismo que o envolve, com a mídia repetindo o mantra da “epidemia”, sendo esta uma droga que transformaria pessoas em ‘zumbis’, os governos se apressam em transferir para esta as mazelas sociais das grandes – e pequenas – cidades , como a falta de moradias, emprego, serviços de saúde, assistência social, educação. Obviamente, não se pode negar os perigos do consumo desta substâncias, tendo reconhecido potencial de adicção, mas convém dizer que é um mito a ideia de que “fumou a primeira vez se torna viciado”, assim como outras.
Entenda o caso
No caso de São Paulo, criou-se o título de “cracolândia” para a região central que tem maiores concentrações destas pessoas. Estas, além de sofrerem com todas as suas agruras, são constantemente vítimas das políticas de repressão e “higienização” promovidas pelo poder público. Para conter os abusos das abordagens policiais a estas pessoas, o Ministério Público de São Paulo ingressou em 2012 com a Ação Civil Pública em face do Governo do Estado, para fazer cessar ações que procuravam evitar a aglomeração dessas pessoas, ou seu trânsito naquela região, pois estas possuem os mesmos direitos que as demais, ao menos em tese.
No dia 21 de maio, a Procuradoria do Município, a mando do prefeito João Dória (PSDB), entrou com um pedido de suspensão do programa “Braços abertos”, implementado pela gestão do ex-prefeito Haddad (PT), que buscava mudar a abordagem a estas pessoas, sendo destinada uma assistência multidisciplinar, na perspectiva da redução de danos, além de projetos de criação de empregos e previsão de hotéis e pousadas para lhes abrigar.
Não obstante as críticas ao projeto, como falta de verbas suficientes para atender a demanda, este programa se mostrou bastante progressivo em relação às demais abordagens já implementadas.
A ideia do prefeito é resgatar o “Projeto Recomeço”, do governo Alckmin (PSDB), que prevê a internação forçada dos usuários em comunidades terapêuticas – entidades privadas, geralmente de caráter religioso – já anunciando um projeto futuro com o irônico nome de “Redenção”. A atual legislação permite a internação compulsória apenas quando esgotados os demais métodos de tratamento, além de ser aplicada caso a caso, e não de maneira generalizada, como querem o prefeito e governador.
Em uma ação extremamente violenta e espetaculosa, o prefeito lá esteve com as tropas da PM e Guarda Civil para “limpar” aquela área central da cidade dos indesejáveis “crackudos”. As imagens impressionam pela covardia e desproporcionalidade, além da total falta de diálogo, e geraram a revolta de diversas entidade ligadas ao direitos humanos, como o Conselho Federal de Psicologia e o próprio Ministério Público.
Com liminar concedida indevidamente pela Justiça, o prefeito começou a demolir os prédios de hotéis e pousadas usados no “Braços abertos”, inclusive com pessoas dentro. Esta liminar foi cassada neste dia 30/05 pela 13ª Câmara de direito público do TJ/SP, uma vez que a prefeitura não tem legitimidade para ingressar na referida Ação Civil Pública.
“Higienização” e “revitalização”, apesar das pessoas
Em mais um espetáculo midiático, o prefeito chegou a afirmar que seria “o fim da cracolândia”. Ao contrário disto, o Conselho Nacional de Direitos Humanos denunciou que os habitantes daquela região migraram para outras regiões do Centro.
O que a imprensa não diz é o real objetivo do ‘Prefeito Gestor’, que é promover um novo projeto urbanístico para aquela área. O arquiteto responsável pelo trabalho será Jaime Lerner, que participou da elaboração do Nova Luz – concessão urbanística projetada pela gestão Serra-Kassab que não deu certo. Lançado em 2005, o projeto delegava ao setor privado o direito de desapropriação, regra questionável do ponto de vista jurídico.
Deste modo, mais uma vez, o governo pretende “vender a cidade” (SIC), tirando do caminho não “só” as pessoas em situação de rua, mas também os comerciantes e trabalhadores daquela região, para privilegiar e maximizar os lucros dos empresários do ramo da construção civil que financiaram suas campanhas, através das famigeradas parcerias público-privadas.
É preciso dar um basta
Diversos movimentos sociais que atuam naquela região, como “A Craco Resiste”, lutam para que se mude de vez a forma de lidar com estas pessoas, tendo no respeito aos direitos humanos individuais e coletivos o centro da atenção.
Mas é preciso ir além. O crack, assim como as demais drogas, precisa de um severo controle sobre a produção, comércio e consumo. A política da proibição já se mostrou falida, pois a cada dia cresce o número de usuários, dentre eles os problemáticos (que não é a maioria). Além do problema de não saberem o que estão consumindo, os níveis de impurezas, entre outros fatores, que geram mais danos à saúde individual do usuário e onera a rede pública. Como fruto disto, além do estigma que recai sobre os usuários, outro problema é que por medo de serem presas ou discriminadas, as pessoas não têm a iniciativa de buscar ajuda.
Acreditamos que é preciso legalizar para regulamentar a produção, comércio e consumo das substâncias ilícitas, dentre elas o crack, para que seja possível financiar com o dinheiro deste ramo comercial, formas de tratamento eficazes, além de investir massivamente em campanhas de prevenção e redução de danos de seus efeitos. O exemplo do cigarro, com a proibição de propagandas, fez com que o consumo diminuísse drasticamente nos últimos anos. O mesmo deveria ser adotado com o álcool, que é a droga que mais mata, seja por complicações orgânicas, ou indiretamente por acidentes de trânsito, brigas, entre outros fatores.
Para isso, é preciso tratar o tema com a seriedade que ele demanda. É urgente tirar o manto moralista deste debate, tratando os usuários com o respeito e assistência psicológica, social aos usuários e suas famílias, com políticas contundentes de criação de emprego, etc. A miséria é o pior dos problemas e não é com polícia ou prisões que iremos combatê-la.
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