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Os portugueses estão bem ?

Por Raquel Varela, Colunista do Esquerda Online, direto de Lisboa, Portugal

As notícias da economia, digo-o sem retórica, não são boas. E pior é o unanimismo. Esse é o maior dos problemas, implica que os homens nada mais têm a inventar, é o novo pensamento único, todos discordam a partir de uma premissa com que todos concordam. Fazer da política um jogo de simpatias e afectos é infantilizar a população portuguesa. Quando temos 10 anos decidimos tudo em função dos amigos que partilham a bola, em adultos temos obrigação de distinguir as palavras bonitas das acções reais, ser menos susceptíveis – imunes nunca seremos – à manipulação emocional e à sedução. A creio mais de 90% dos portugueses se hoje lhes fosse perguntado o que é a dívida pública, o défice e o custo unitário do trabalho não saberiam dizer, muitos mesmo com o ensino superior – os estudos da literacia económica assim o indicam. Os partidos, e os media, deveriam ter este papel, que a educação não colmata. Viver na parte da economia que está bem já é estar entre os eleitos, saber de economia é infelizmente um privilégio.

O país institucional está inebriado pelo nacionalismo paroquial, e sobretudo pela ausência de oposição estruturada. A unanimidade de todos os partidos sobre o défice – “é uma boa notícia” do BE ao PSD, embora, sublinhem, por razões distintas – é um problema agravado porque não é difícil encontrar no mundo economistas e cientistas sociais que explicam, demonstram, que a subida do PIB e a queda do défice não significam, no modelo em que vivemos, boas notícias para a maioria das pessoas, a menos que estejamos todos dispostos a acreditar que a população em geral beneficia quando no fim do ano os donos das empresas anunciam distribuição de dividendos, embora o salário delas não tenha nem mais um euro, pelo contrário. Deixo alguns dados e por questões de tempo pessoal não posso quebrá-los em subvariáveis, o que tem a vantagem de poupar a mais uma dose de tristeza, em tempo de afectos:

1) A população activa passou de 5.060.000 para 4.560.000, ou seja, meio milhão saiu do mercado de trabalho e foi produzir riqueza noutro lugar do mundo – saíram pessoas que produzem bens vitais à sociedade e com eles saíram formadores altamente qualificados, que não estão aqui a ensinar os que ficam a trabalhar.

2) Mas há dados mais graves, a sempre anunciada reindustrialização do país está mais uma vez adiada, a capacidade instalada (máquinas, etc) não é usada na totalidade e sobretudo está a envelhecer, porque não há investimento em nova tecnologia e inovação.

3) De onde decorre a terceira conclusão. Se não há investimento, caiu o custo unitário do trabalho, cai a produtividade, de onde vem a riqueza que produzimos e que permite o aumento do PIB e a queda do défice? Da exaustão de quem trabalha e dos cortes nos seus salários, directos e indirectos. Mais de 600 mil ganham o salário mínimo, 3 milhões são pobres segundo dados oficiais, 500 mil trabalham mas necessitam de subsídios assistenciais porque os salários são tão baixos que não conseguem – literalmente – comer ou pagar uma renda. Menos de 20% dos portugueses ganha acima de pagar contas de subsistência, casa, filhos, alimentação, transportes. Foi a incorporação de mais trabalhadores e mais horas e mais intensidade (tarefas de 2 passaram para 1), o que está a deixar as pessoas “mortas”, sem vida própria, que fez subir o PIB e também fez cair o défice, pago com o sub emprego e o recurso cada vez maior a horas não pagas trabalhadas.

4) O PIB subiu também pelo mercado imobiliário, gerando uma venda de propriedades no mercado estrangeiro, o que desloca as populações locais para a extrema periferia – os meus alunos passaram de Benfica para o Seixal, de Alvalade para Mem Martins, pagando com o corpo – o cansaço – em transportes e dinheiro, a valorização da propriedade de quem a comprou.

5) A quebra de financiamento do défice levou à desnatização do SNS – 1/3 dos médicos em funções são internos, ou seja, estão e devem estar a aprender, mas aprender com quem? Não há especialistas suficientes no SNS para formar novos médicos que substituam os que saíram.

6) Das escolas abstenho-me de falar muito. Sou defensora da escola pública mas hoje no estado em que está a escola pública ela não serve para nada a não ser para reproduzir socialmente a origem social de quem lá entra – ninguém que entre lá sendo filho de pais sem qualificação e tempo vai a lado nenhum que não seja acabar no ponto de partida onde começou. Em toda a administração pública os serviços são cada vez piores porque se reformaram, sem reposição, administrativos e afins, colocando nos quadros superiores a acumulação de funções científicas e de secretariado.

7) A mim o nacionalismo não me assiste, adoro Portugal pelas pessoas, a nação é algo que só tem significado – e nisso tem muito – na mesa com amigos e no mercado de peixe, mas, a quem toca pergunto: o país não tem bancos, telecomunicações, não controla entradas e saídas em portos e aeroportos, isto não é historicamente um processo de semi-colonização? São os bancos espanhóis que vão decidir quantas máquinas de TAC precisamos para o Hospital de Santa Maria? Como se faz um país daqui a 5, 10, 15, 20 anos sem controlar estas empresas?

8) – Os Juros e encargos da dívida pública eram em 2014, 7572.9 milhões ; são hoje 8285.2 milhões. A dívida era em 2014, 212 mil milhões, é hoje 240 mil milhões.

Não falei de tudo o que isto vai significar a curto prazo, a decadência da quebra geral de serviços e bens de consumo a curto prazo. Nem falei do que já significa hoje na vida real das pessoas – como comem os portugueses, quanto tempo estão num transporte, como vivem metade do mês, como gerem a ansiedade de não ter como pagar contas, passeiam? quando e como fazem amor? qual é o estado dos seus filhos crianças, como vêem os netos crescer pelo skype (isso sim é não ter afectos) – embora devesse ter começado por aí, que é o mais importante. Porque a pergunta que todos temos que fazer não é se somos bons alunos na Europa, se temos um PIB robusto, se temos um défice em queda, é como se mede o bem-estar de uma sociedade.

Os portugueses, na sua larga maioria, estão bem?

Não, não estão.