Por: Carlos Zacarias, colunista do Esquerda Online
O cataclismo que atingiu o cenário político do Brasil no dia de ontem não devia causar tanta surpresa. Mergulhado em uma combinação explosiva de crises que vão da crise econômica à crise política, passando pela crise social de grandes proporções, o país que há um ano assistiu o impeachment não devia ficar tão estupefato ante as denúncias que agora ameaçam por abaixo o governo mais impopular da história, o governo do golpista Michel Temer. Todavia, uma coisa chamou a atenção de muita gente e provocou a desconfiança generalizada em relação aos interesses que moveram os denunciantes e a emissora que primeiro noticiou o escândalo: qual seria o interesse da Globo em embaralhar o jogo e ameaçar a estabilidade alcançada por Temer nos altos escalões? Seria um movimento planejado, uma espécie de segundo round do golpe? Estaria a Globo interessada em derrubar Temer para emplacar alguma alternativa?
As perguntas devem ser feitas e toda desconfiança é válida diante do furo de reportagem trazido por uma emissora que apoiou o golpe há um ano e seguiu trabalhando em benefício das políticas desenvolvidas por Temer até o momento. Não obstante, parece ingênuo imaginar que há sempre um plano muito bem concebido e o total controle dos destinos e das ações dos indivíduos da parte das classes dominantes e suas frações que atuam nos grandes meios de comunicação. É verdade que a Globo é movida por interesses materiais e pode estar calculando muito bem os passos que vai dar, as notícias e denúncias que serão trazidas a público e os alvos preferenciais que serão postos na beira do precipício. Talvez não tenhamos clareza suficiente para inferir sobre muitas das questões que serão reveladas no futuro. De momento, contudo, apenas podemos especular sobre o tema, mas tomando cuidados para não transformar a saudável desconfiança em teoria da conspiração, que só faz dificultar o acesso à verdade.
Parece improvável que a Globo tenha tido algum interesse muito forte na desestabilização de Temer. Há um ano do impeachment, mesmo com toda a impopularidade e a pressão crescente das ruas e dos trabalhadores que fizeram uma enorme greve geral, a probabilidade de o governo aprovar as reformas Trabalhista e Previdenciária ainda eram bastante grandes. Então, por que isso veio à tona? Analisando o período que culminou no golpe do 18 de Brumário de Luís Bonaparte em dezembro de 1851, Marx dissertou magistralmente sobre como as classes dominantes e suas frações se moviam no conturbado cenário pós-revolução de 1848. Dizendo tratar-se de um período que abrangia “as mais heterogêneas misturas de contradições clamorosas”, Marx discutiu como a inusitada e inesperada ascensão de Bonaparte foi possível graças ao impulso de força da massa camponesa, até então excluída dos principais acontecimentos do país desde as Guerras Napoleônicas. O que Marx demonstra na sua apreciação é que, mesmo se movimentando em condições que não são controladas pelos sujeitos da história (a agência), no curso de um período tão conturbado, as saídas para uma crise são definidas pela forma como as classes e suas organizações atuam na luta e decidem o caminho.
A propósito de sua concepção de história, que em nada se assemelhava à concepção hegeliana, Marx aludia ao elemento contingente, como criador de oportunidades nas quais o elemento decisivo era o subjetivo e não o objetivo. Escrevendo a Kugelman no curso que deram ensejo à Comuna de Paris, Marx afirmou: “A história mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida apenas nas condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis. Seria por outro lado, coisa muito mística se os acidentes não desempenhassem papel algum”.
Ou seja, se é verdade que a burguesia e suas frações controlam quase tudo nos países capitalistas, em circunstância nenhuma ela detém as condições de decidir unilateralmente os caminhos que a história vai tomar. Numa palavra, a burguesia controla tudo, menos a história. O futuro advirá da luta, do confronto, da forma como as classes vão atuar nos marcos da necessidade. Nesse sentido, a pergunta a se fazer ante ao “acidente” das revelações que abalaram Brasília ontem são as seguintes: a delação premiada de Joesley Batista, dono da JBS, que acusa Michel Temer de ter concordado com o pagamento de uma mesada milionária para que Cunha ficasse em silêncio é favorável aos trabalhadores? É possível que essa nova crise cause instabilidade suficiente para paralisar as reformas? Seria razoável se supor que os trabalhadores vão desencadear uma ofensiva contra o governo de Temer criando condições para a sua derrubada? Se as respostas a essas questões forem todas positivas, não há o porquê de transformar as desconfianças em relação à Globo em paralisia.
Mesmo sendo evidente que as soluções não sejam dadas de antemão e que há o risco de os trabalhadores sofrerem derrotas ainda maiores, não há outra forma de tomar a sério o grito de “Fora Temer” sem entender que, ao tentar fazer a história, os trabalhadores arriscam o seu pescoço, tanto quando a burguesia arrisca o dela ao tentar conter a marcha do progresso. Se uma janela de oportunidade se abriu na conjuntura, os trabalhadores devem mergulhar de cabeça para tentar impor uma outra perspectiva de futuro.
Como parteiras da história, revoluções ou catarses carregam em si o seu oposto e inelutavelmente contraditório. Quem luta por transformações profundas deve saber que a história não se decide antecipadamente. É preciso que o jogo seja jogado para que se proclamem os vencedores e os derrotados. O que é certo, entretanto, é que na guerra entre as classes o único resultado que não é possível é o empate.
Foto: 17 05 2017 São Paulo SP Brasil Manifestantes fecham via da avenida Paulista pedindo eleições já depois das divulgações de corrupção envolvendo o presidente Michel Temer Foto Paulo Pinto AGPT
Comentários