Por: Fernanda Lobo*
Existem duas categorias de pessoas inteligentes e eruditas. Uma abrange aquelas pessoas que, depois de as termos encontrado(ou lido), saímos nos sentindo mais ignorantes e pequenos. A outra se trata das pessoas eruditas e inteligentes que encontramos e saímos nos sentindo maiores, mais inteligentes, mais ricos intelectual e espiritualmente.
O segundo tipo de pessoa muito inteligente é mais raro, justamente porque talvez seja muito mais generoso se despojar voluntariamente das condecorações, penduricalhos, ruídos e plateias deslumbradas embora confusas que acompanham as sumidades que cruzam os salões, para, de maneira simples e sem jargões, construir conhecimento com o interlocutor.E o fato é que generosidade não é coisa do nosso tempo.
Antonio Candido foi certamente esse segundo tipo de gênio.
Como crítico literário, Candido foi uma espécie de elo espiritual, um aedo entre a substância da literatura brasileira e o próprio Brasil. Quando Candido disse, em Formação da Literatura Brasileira, que “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas.”, ao contrário do que pode parecer, Candido não desqualificava a literatura daqui, endossando o signo da falta (com relação à literatura europeia) que sempre regeu o espírito da literatura latino-americana.
Não, pelo contrário, ao prosseguir em sua sequência, passando pela literatura europeia e indo parar no campo do mito, no Jardim das Musas, ele dizia que, por não existir um original terreno a ser imitado, o nosso galho secundário era também digno de atenção e, mais, de amor.
Assim, debruçou-se com amor sobre as desengonçadas façanhas brasileiras no mundo das letras, dizendo-nos que nosso destino não era apenas a emulação. Candido, que nos deu tanta coisa, nos deu também a ideia de um Brasil que deveria ter direto a escrever e a ler, coisa tão da e para a elite. Soube ler esse desejo e nos fazer desejar esse direito. Revolucionou, assim, não só a crítica literária, como também a autoimagem do Brasil.
Sem jamais incorrer em complacência, a obra de Antonio Candido é composta por textos simples, que deixam que o leitor se aproxime sem receio e permite, quase como alquimia, a passagem da leitura de palatáveis análises à edificação de um conhecimento extremamente perspicaz e rigoroso. Coisa de gente enorme que, além de enorme, engrandece quem se aproxima. Para ele, não existe literatura destinada ao operário, ao homem rústico, porque, como declarava, cada pessoa tem sua própria literatura e todos podem – ou deveriam poder – transitar entre os muitos modos de fabulação possíveis.
A generosidade de Candido é anticapitalista. Ao dividir seu conhecimento de maneira tão aberta, dirigindo-se com sua prosa amistosa a qualquer um, Candido se coloca do lado oposto à crítica que apenas afaga o poder e que, portanto, não é crítica, porque não é crise.
A inteligência de Candido ensinou a respeitar a tradição sem transformá-la em grilhões, soube ver e mostrar que a tradição existe não para impor limites e ser reproduzida ad infinitum, que não deve existir como prisão, mas para que o próximo passo aconteça. Essa lição libertária é muito importante.
E o valor da liberdade que faz da obra de Candido tão viva jamais se sobrepõe ao valor da igualdade, por que tanto preza no trato com o leitor. Candido em sua obra nos convida a partilhar da ideia de que, sendo iguais, somos sempre o outro. E nos diz com sua obra que o exercício da crítica não deve e nem pode ser polícia e nem prisão.
Quando em “A verdade da repressão”, o crítico comenta as percepções de Balzac a respeito da polícia de Napoleão, considera que Balzac foi perspicaz ao notar, nessa formação primitiva da instituição policialesca, que sua função seria “disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade”. Cita Balzac, que pontua que, naquele momento, o aparato policial não passa de dispositivo armado para a manutenção da ditadura.
Neste ensaio, ele continua, passando pela percepção que Dostoievski traz em Crime e castigo de que a figura do policial seria uma espécie de continuum da consciência da sociedade. Fala, ainda, da importante noção trazida por Kafka, em O Processo, de que o aparato policial, em dado momento, se fundiu ao aparato judicial, um se tornou o outro e a repressão tornou-se, a partir daí, uma finalidade em si, recaindo em uma prática de constante impulso de aniquilação do outro, sem a menor necessidade de crimes, mas somente de estímulos.
Ao final deste ensaio, que muito diz, na realidade, sobre a violência brasileira, Candido narra a cena de um filme chamado Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri. Ali, um delegado, conhecendo a natureza autodominante da polícia, escolhe pela rua um transeunte qualquer para confessar um crime sem dizer sobre a função policial que exerce. Elege um encanador e entrega ao homem a prova do delito que ele próprio, o delegado, havia cometido: a gravata azul que usa e que foi vista no criminoso. Convence-o, então, a ir até a delegacia fazer a denúncia.
Ao chegar à delegacia para cumprir o que havia prometido ao criminoso que atravessou seu caminho, o encanador depara com o delegado, que também é o culpado. O delegado começa a pressioná-lo violentamente para que ele diga quem é o verdadeiro assassino. O encanador, perplexo com a situação absurda e sem conseguir reagir, vai se tornando, no meio dos opressivos questionamentos e da névoa (i)lógica do momento, o culpado pelo crime, até desaparecer no corredor escuro da condenação. Em dado momento do absurdo inquérito, o delegado pergunta ao homem qual é a sua profissão, ao que responde que é “hidráulico”. O delegado esbraveja que “agora todo mundo que ser alguma coisa bonita, mas que na verdade o senhor não tem nada de hidráulico, mas que é mesmo um en-ca-na-dor”.
Assim, subtrai ao homem toda a ficção, toda a fabulação que havia feito para si com o fim de conseguir levar de maneira mais digna a própria vida; aniquilando, portanto, a tentativa de fantasia do pobre homem, que, conduzido violentamente a seu viés, finalmente confessa o seu próprio crime: “Sim, sou encanador”.
Nesse episódio, como em tantos outros, a polícia impõe ao ser humano um ser menor, um ser tão aniquilado, que é destituído inclusive de seu direito de fabulação. Candido, que é o Grande Mestre, o Grande Sociólogo, o Grande Homem Político, o Grande Intelectual, o Grande Crítico, em uma atitude radicalmente libertadora, aparece para nós no meio de cada uma das letras que compõem seus textos simplesmente como um professor.
Assim, ele faz de si e de sua obra o movimento antipolicialesco, contrário ao do episódio fictício narrado. Dispensando uma fabulação engrandecedora para chegar à simples profissão de professor, aniquila a possibilidade do ensimesmamento do pensador e interdita a polícia e o amor ao poder que espreitam. Antonio Candido nos ensina, amando uma “literatura pobre e fraca, às vezes forte, mas sempre tocante”, a nos esforçarmos para nos livrar da ambiência rodeada de grades da crítica e do pensamento.
Nosso professor, defendia ferrenhamente o caráter formador da literatura, dizia que não se sai da experiência de leitura do mesmo modo como se entrou e, tal como excelente personagem de romance, a um tempo complexo e simples, uno e múltiplo, ele próprio se nos doa em expressão máxima de liberdade para ser outro.
*Aluna do mestrado no Programa de Literatura Hispano-americana da FFLCH-USP.
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