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Desvendando a Lava Jato – Parte 3: quando a própria burguesia resolve violar seu Estado de Direito

Por Euclides de Agrela, de Fortaleza, CE

Não temos nenhum compromisso político com Lula e o PT. Muito pelo contrário, os denunciamos como artífices de uma política de conciliação de classes que beneficiou em grande medida bancos e empresas nacionais e estrangeiras instaladas no país. Somos oposição de esquerda a Lula e ao PT e lutamos para superar sua hegemonia sobre os movimentos sociais brasileiros através da construção de uma nova direção política, sindical e popular que supere a conciliação com a burguesia e tome o caminho da revolução e da transição socialista.

Da mesma forma, estamos entre aqueles que denunciam o Estado capitalista como o comitê de negócios da classe dominante, como guardião da propriedade privada dos meios de produção, como instrumento político-jurídico que coloca o direito de propriedade acima do direito à vida.

No entanto, é imprescindível reconhecer que o depoimento do ex-presidente Lula conduzido pelo juiz Sérgio Moro, em Curitiba, no último 10 de maio, escancarou o quanto o Judiciário brasileiro, em particular o Ministério Público Federal (MPF) na condução da Operação Lava Jato, está rompendo com o chamado “Estado Democrático de Direito”. Em nome de uma suposta luta contra a corrupção governamental, institucionalizou-se o “vale tudo”.

Defender as liberdades democráticas contra o Estado capitalista

Somos marxistas revolucionários. E, como tais, não podemos deixar de reconhecer que, em sua luta contra os privilégios políticos e jurídicos da nobreza feudal, a burguesia impôs novos princípios para o código processual penal que se estabeleceram como uma das maiores conquistas civilizatória oriundas das revoluções inglesas do século XVII e da revolução francesa, do século XVIII.

A forma processual da Lava Jato vem questionando essa conquista civilizatória na medida em que nega explicitamente: a) a presunção da inocência, ou seja, o princípio de que todo mundo é inocente até que se prove o contrário; b) o princípio de que o ônus da prova recai sobre quem acusa, quer dizer, o réu não é obrigado a provar sua inocência, mas a acusação é que tem a obrigação de provar sua culpa; c) a prioridade dada a provas materiais sobre os depoimentos das testemunhas.

Estas importantes conquistas democráticas são constantemente ameaçadas. Por isso mesmo devem ser defendidas com unhas e dentes pela esquerda socialista contra qualquer gestão autoritária desta ou daquela fração da burguesia nacional. Elas estão para as liberdades democráticas num nível semelhante ao direito de opinião, à liberdade de imprensa, ao direito de manifestação e greve, ao direito de fazer oposição e de organizar partidos e sindicatos livres.

Defender estas conquistas democráticas não é o mesmo que defender o Estado capitalista. Ao contrário, para defendê-las, na maioria das vezes é preciso enfrentar o próprio Estado capitalista marcado pela decadência da época imperialista, na medida em que as classes dominantes não medirão esforços para proteger a propriedade e os monopólios privados, ainda que para tal passem por cima dos seus tão caros “princípios” do Estado Democrático de Direito.

A ruptura com as conquistas civilizatórias do Direito burguês

A chamada Teoria do Domínio do Fato, que afirma que é autor – e não mero partícipe – a pessoa que, mesmo não tendo praticado diretamente a infração penal, supostamente decidiu e ordenou sua prática a subordinado seu, o qual foi o agente que diretamente a praticou em obediência ao primeiro, é utilizada atualmente no processo da Lava Jato como um princípio que, sem provas materiais, se coloca acima da presunção da inocência, do ônus da prova e da prioridade dada a provas materiais.

Por outro lado, na mesma Lava Jato, a Delação Premiada é irmã siamesa da Teoria do Domínio do Fato, sendo utilizada a torto e a direito como alvará de soltura para corruptos e corruptores que desfalcaram os cofres públicos em bilhões de reais, com o objetivo fundamental de angariar provas testemunhais, particularmente contra o ex-presidente Lula e o PT, sem se dar o trabalho de provar sua veracidade baseada em dados e fatos materiais. Com a Delação Premiada, institui-se objetivamente a condenação do suspeito a partir de depoimentos que sequer são comprovados.

A Teoria do Domínio do Fato e a Delação Premiada são os novos princípios do Direito brasileiro esgrimidos pelo Juiz Sérgio Moro e o Ministério Público federal (MPF). Eles jogam na lata do lixo os princípios anteriores, que fundamentaram as medidas mais progressivas do Direito burguês em oposição ao direito eclesiástico, que privilegiava política e legalmente a nobreza feudal. Neste sentido, a Lava Jato, para impor uma nova forma processual teve e tem que atentar contra algumas das conquistas civilizatórias mais importantes do chamado Estado Democrático de Direito.

Um grave precedente contra os movimentos sociais

Algum desavisado poderá arguir que se é para prender ricos e poderosos, nada mais justo que se use desses expedientes. Esse argumento é perigoso, na medida em que se baseia aparentemente num discurso classista, contra os ricos, poderosos e corruptos.

No entanto, se este grave precedente processual passar em brancas nuvens e se institucionalizar como um novo paradigma quem sofrerá efetivamente as consequências desta mudança jurídica? Os ricos, os poderosos e os corruptos ou os trabalhadores, pobres, negros, jovens, mulheres e LGBTs em suas lutas por melhores condições de vida, trabalho, salário e direitos político-sociais? Não temos nenhuma dúvida em afirmar categoricamente que serão os segundos, e não os primeiros, o principal alvo desta mudança de modelo jurídico.

A Lei Antiterror, as recentes restrições ao direito de greve, a criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, levarão até às últimas consequências expedientes antidemocráticos como a Teoria do Domínios dos Fatos e a Delação Premiada contra os movimentos sociais organizados, condenando por antecipação quaisquer supostos suspeitos de formação de quadrilha, de depredação do patrimônio público, de incitação à violência, etc.

Que o diga o jovem negro Rafael Braga, condenando no último 21 de abril, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a 11 anos de prisão e ao pagamento de R$1.687,00 de multa por simplesmente portar uma garrafa de Pinho Sol, que utilizava para limpar carros como forma de sustentar sua família. Para os policiais civis que o detiveram, a garrafa de Pinho Sol era um coquetel Molotov. Não poderia haver exemplo mais grotesco que demonstra a antecipação da atribuição de culpa e a condenação com base em suposições estapafúrdias.

PRG X PF

A Deleção Premiada vem se transformando em algo tão escandaloso que a própria Procuradoria Geral da República (PRG) e a Polícia Federal (PF) vem divergindo de qual seria o órgão competente que trataria das delações dos marqueteiros Duda Mendonça e João Santana. Duda firmou acordo com a PF, em Brasília, e Santana assinou com a PGR.

Segundo a Folha de São Paulo, Duda Mendonça transformou-se no caso mais emblemático do cabo de guerra que se criou entre as duas instituições. Duda denunciou o pagamento de R$ 10 milhões da Odebrecht à campanha 2014 de Paulo Skaf (PMDB) ao governo de São Paulo, fato também narrado por delatores da empreiteira, como o ex-presidente Marcelo Odebrecht. Na avaliação da PF, as informações trazidas pelo marqueteiro podem ser úteis para preencher pontas de histórias que tinham só um lado fechado até agora.

Dentro da PF, segundo a Folha apurou, adotou-se o discurso de que o acordo com a PGR não avançou porque poderia contradizer pontos da narrativa que vem sendo contada até agora por delatores da Odebrecht.

Por outro lado, A PGR pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) a inconstitucionalidade da lei que diz que a PF pode fazer acordos de delação. O caso está com o ministro Marco Aurélio, que negou liminar e deve levar o tema a plenário do próprio STF.

Além disso, a PF defende que a definição da pena tem que ocorrer após a comprovação da efetividade da delação, mas a PGR vem adotando a prática de definir as punições nas tratativas dos acordos.

Essa é principal crítica da PF em relação ao MPF. Ela afirma que o MPF parte da premissa “de que a colaboração é uma forma de transação penal”.

Em nota, o superintende da PF do Distrito Federal Élzio Vicente da Silva afirma que “quando o MPF estabelece e oferece benefícios acertados nessas tratativas em troca de informações não checadas, surge a possibilidade de o pretenso colaborador se beneficiar ainda que fornecendo elementos já existentes na investigação, falsos, ou ocultando dados de relevo”.

A PGR, porém, defende que as penas devem ser definidas na negociação porque “a colaboração produz efeitos na investigação, no processo penal e na execução penal”. Diz ainda que a prática tem sido aceita pelo STF.

“No modelo adotado pela PF, o réu abre mão de direitos sem qualquer garantia no processo, já que a autoridade policial não pode garantir nada relativo à pena estabelecida no processo”, afirma em nota.

A controvérsia entre PF e MPF demonstra que não importam em nada a veracidade ou não das delações na Operação Lava Jato, nem se os depoimentos são falsos ou ocultam dados de relevo, o que importa fundamentalmente é a sua utilização como “forma de transação penal”, quer dizer, como moeda de troca para negociar alvarás de soltura de corruptos e corruptores.

Recentemente a colunista Mônica Bergamo publicou, em sua coluna na Folha de São Paulo, que o publicitário João Santana, ao assinar o acordo de Delação Premiada com o MPF, teria demonstrado a interlocutores certo constrangimento com a adesão ao acordo. O marqueteiro, que comandou o marketing das campanhas de Lula e de Dilma Rousseff resistiu até quando a situação se mostrou insustentável.

Não é à toa que depois que o tiro do depoimento de Lula ao juiz Sérgio Moro saiu pela culatra, o grande espetáculo da Delação Premiada migrou agora para o depoimento de João Santana e de sua mulher e sócia, Mônica Moura.

PRG X STF

Por fim, diante da redução das investigações da corrupção governamental a uma campanha política baseada na Delação Premiada, o jornal O Estado de São Paulo, no último dia 10 de maio, exatamente no dia do depoimento de Lula ao juiz Sérgio Moro em Curitiba, acende o sinal amarelo ao chamar de perniciosa a “tentativa de transformar a Lava Jato na grande panaceia nacional”.

O editorial do Estadão revela uma disputa não menos importante desta vez entre a PGR e o STF. O jornal critica o pedido do procurador geral da República, Rodrigo Janot, para que o ministro Gilmar Mendes, do STF, seja declarado impedido de atuar no caso envolvendo Eike Batista é mais um exemplo de reação exagerada por parte do MPF. Janot alega que a esposa de Gilmar Mendes integra banca de advogados “que prestaria serviços” a Eike Batista, o que comprometeria a imparcialidade do ministro.

Em resposta a Janot, o Estadão joga pesado:

“A realidade não é bem essa. Nem tudo está podre nem o Ministério Público é o suprassumo da pureza e da inocência. Caso se lhe apliquem as lentes que alguns do MPF querem impor às outras instituições, perde também ele imediatamente seu odor de santidade. Como revelou o site Consultor Jurídico, a filha do indignado Janot é advogada e tem como clientes, em diferentes casos na Justiça Federal e no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Braskem, petroquímica controlada pela Odebrecht, a construtora OAS e a Petrobrás”.

Conclui o editorial do Estadão:

“É perniciosa a tentativa de transformar a Lava Jato na grande panaceia nacional. Além de não tirar o País da crise, esse modo de conduzi-la, como se tudo estivesse podre – como se os poderes constituídos já não tivessem legitimidade para construir soluções –, inviabiliza a saída da crise”.

Não comungamos com a defesa que faz o Estadão das instituições do Estado capitalista. Mas o editorial acima releva nitidamente uma verdadeira guerra de interesses políticos e econômicos perpassando a Operação Lava Jato. Qualquer observador com um mínimo de discernimento constará aqui que a Lava Jato não se move, não se moveu nem se moverá de maneira desinteressada, em nome da ética na política, da defesa do patrimônio público, do combate a corrupção governamental.

Quando um jornal ultrarreacionário, como o Estado de São Paulo, vem “relativizar” a importância da Lava Jato de maneira tão dura e contundente, é preciso ser muito ingênuo ou ter muita má-fé para crer e seguir reivindicando essa panaceia como a salvadora da pátria. Confiar às instituições do Estado capitalista o combate desinteressado à corrupção é como confiar a diferentes raposas o cuidado do galinheiro: elas podem até brigar entre si, mas apenas para ver quem come mais galinhas.

A Luta contra a corrupção, mais que uma luta democrática é uma luta anticapitalista contra a burguesia e seu Estado. A corrupção só terá fim quando os trabalhadores tomarem em suas mãos o poder e imporem mecanismos de fiscalização e controle social baseados na propriedade coletiva dos meios de produção, no planejamento da economia e das políticas públicas, na revogabilidade de mandatos e no fim de todos os privilégios políticos e jurídicos dos ricos e poderosos.