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Neoextrativismo e outros pecados capitais da “esquerda progressista”

Por: Daniel Cerqueira, advogado e coordenador o Programa Direitos Humanos e Indústrias Extrativas da Fundação para o Devido Processo  twitter: @dlcerqueira

Em uma entrevista recente, Noam Chomsky fez um balanço dos principais acertos e desacertos da chamada “esquerda progressista” na América Latina. Quanto aos desacertos, criticou os projetos econômicos que inseriram a região, como nunca, nas cadeias globais de produção e comércio. Tal inserção acirrou, como sempre, a posição de desvantagem para a América Latina, cujas economias se converteram em um grande leilão de bens primários destinados a países industrializados do norte, China e outras potências emergentes.

 Na linha de Chomsky, o aumento da exportação de produtos primários gerou, num primeiro momento, melhores condições para que países como Venezuela, Argentina, Brasil, Equador e Bolívia ampliassem seus gastos em políticas sociais. Sob esse aspecto,o investimento intensivo em infraestrutura e a exportação a toque de caixa de recursos naturais permitiram remediar alguns males da cartilha neoliberal, vigente na década de 1990. Em tal período,a pobreza e a indigência avançaram em ritmo metastático, diminuindo somente a partir da década de 2000, durante o apogeu dos governos de esquerda. As seguintes cifras da CEPAL refletem, claramente, essa tendência:

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 Não obstante, a diminuição da pobreza durante a era da esquerda progressista, Chomsky se pergunta se essa realidade é produto da redução estrutural da desigualdade, de políticas sustentáveis de desenvolvimento ou de uma bonança conjuntural, dependente de um ciclo favorável de demanda por bens primários. Claramente, o aumento da demanda internacional por petróleo, gás natural, minério e monoculturas foi o principal responsável pela década de vacas gordas nos países governados pela esquerda na América Latina. Passado o período de bonança, tais países devem enfrentar os custos sociais, econômicos, políticos e ambientais da extração irracional de recursos naturais, fenômeno comumente denominado “neoextrativismo”.

O neoextrativismo latino-americano trouxe consigo algumas manifestações da chamada “maldição dos recursos naturais” (resource curse).Trata-se do paradoxo no qual países abundantes em recursos naturais tendem a possuir instituições democráticas mais frágeis e, em geral, um pior desempenho econômico se comparado com o de países industrializados carentes de tais recursos.[1] Em maior ou menor medida, todos os países da América Latina passaram por um forte processo de desindustrialização e, em casos extremos como a Venezuela,a única atividade industrial que continua de pé está vinculada à extração e processamento de petróleo.

Do ponto de vista político, o neoextrativismo teve como pano de fundo a captura do Estado por empreiteiras e empresas do setor energético. Antes dos escândalos de corrupção que enlameiam vários partidos de esquerda na região, uma parte considerável do eleitorado latino-americano fazia uma distinção entre os projetos políticos liderados por Lula,Kirchner, Chávez, Correa e Morales e os projetos políticos de uma direita acostumada a disputar eleições através de corruptelas. Esse é provavelmente o legado mais pernicioso do abraço entre a “esquerda progressista” e o neoextrativismo: a impressão de que não importa a camisa ideológica dos que disputam a eleição; os vencedores sempre prestarão contas às corporações que financiam o jogo eleitoral.

Tradicionalmente, quando os mecanismos simbólicos de preservação da hegemonia de uma elite econômica estiveram em risco na América Latina, existia sempre a possibilidade de apropriar-se de fato do Estado e de silenciar líderes de esquerda chegados ao poder democraticamente (Jacobo Árbenz na Guatemala, João Goulart no Brasil e Salvador Allende no Chile) ou que possuíam todas as condições para fazê-lo (Jorge E. Gaitán na Colômbia). Para a decepção de Antônio Gramsci, a nova elite econômica já não necessita de mecanismos tão abjetos como as ditaduras ou os assassinatos na América Latina. De fato, pode prescindir da hegemonia política para continuar exercendo a econômica.

É interessante observar como a história recente da América Latina pode ser contada a partir de grandes ciclos de modismos discursivos. Entre as décadas de 1950 e 1980, expressões enraizadas na “doutrina de segurança nacional” inspiraram o discurso de ditadores e seus simpatizantes. “Restauração da ordem interna e processo de reorganização nacional” foram algumas das expressões que generais autoproclamados presidentes utilizaram para justificar a usurpação da democracia e o terrorismo de Estado.Com o fim da Guerra Fria, os modismos foram importados não mais da Escola das Américas, mas da Escola de Chicago. Termos como “estabilização macroeconômica, choque de gestão e abertura comercial” passaram a dominar o discurso de chefes de Estado, Ministros e Presidentes de Bancos Centrais ao longo do continente.

A partir da segunda metade da década de 1990, um novo modismo passou a rondar o discurso político tanto de esquerda quanto de direita. Trata-se do modismo neoextrativista, adaptável a qualquer viés ideológico. O resultado deste modismo foi a multiplicação de megaprojetos de infraestrutura, tanto para a produção de energia como para o transporte de bens primários, rumo a portos chineses ou do norte global. Em meio ao boom extrativista, representantes da “esquerda progressista” como Rafael Correa, Evo Morales e Daniel Ortega empregaram um discurso de descrédito contra os que defendem formas tradicionais de ocupação e uso do território. “Inimigos do desenvolvimento e ambientalistas dogmáticos” foram algumas das expressões utilizadas para desqualificar quem se opõe aos modelos de extração em grande escala. Por outro lado, “utilidade pública, interesse nacional e desenvolvimento”, são alguns dos termos que conformam o mantra dos modelos econômicos caracterizados pela extração intensiva de recursos naturais.

Salvados os inegáveis benefícios dos projetos de desenvolvimento social e ambientalmente sustentáveis, o cerne da controvérsia parece ser o real significado dessa palavra tão desgastada pelo jogo do discurso político: desenvolvimento. Do México ao Chile, passando pelo Equador e Brasil, tal vocábulo tem sido utilizado como sinônimo de duas coisas: a) satisfação de demandas sociais, sendo a renda e empregos gerados pelos megaprojetos um meio idôneo para a consecução de tão nobre finalidade; e b) um majestoso crescimento do produto interno bruto. Via de regra, os governos autodenominados de esquerda enfatizam a primeira definição e os que evitam tal rótulo ou assumem diretamente o rótulo de direita abraçam a segunda definição.

No caso do Brasil, a recolecção dos pedaços deixados pela implosão moral do Partido dos Trabalhadores e, o que é mais importante, a reconstrução de umprojeto político de esquerda, requer o desenho de um modelo de desenvolvimento realmente emancipatório. Tal processo deve partir do reconhecimento de que os governos petistas foram indiferentes e, particularmente no caso de Dilma Rousseff, agressivos às demandas dos povos indígenas. Basta mencionar o uso de aparatos estatais de inteligência para espionar e criminalizar líderes indígenas, ONGs e opositores a projetos de “desenvolvimento” ecocidas como as usinas hidroelétricas de Belo Monte e Tapajós.

Não vem ao caso ventilar a instrumentalização da política econômica em benefício de empreiteiras e grandes empresas extrativas durante os governos petistas. É importante frisar, no entanto, a necessidade de um novo discurso em que a superação da pobreza não se dê ao custo de passivos ambientais irreparáveis e da negação de direitos fundamentais dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. É inegável que a emancipação do Brasil frente às assimetrias da cadeia global de produção e comércio passa pela redução da pobreza. Entretanto, é sabido que o apelo ideológico à justiça redistributiva foi defraudado pela “esquerda progressista”, tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, cujos estratos populacionais mais pobres conseguiram afirmar-se, quiçá, como consumidores ocasionais e não como cidadãos. Ao recompor seus pedaços, a “esquerda progressista” deveria renovar o discurso sobre desenvolvimento, numa lógica de justiça não só como superação da pobreza, mas como reconhecimento da forma de vida diferenciada de certos setores da população, tais como os povos tradicionais.

Ao defender a concessão do canal interoceânico a um magnata chinês, o presidente nicaragüense Daniel Ortega, parafraseou, a seu modo, uma alocução de Augusto César Sandino, para quem a soberania nunca seria alcançada enquanto perdurasse a pobreza em Nicarágua. Para Ortega, uma obra estrambótica que liga dois oceanos e que salinizará o maior lago de água doce da América Central é a única forma de retirar seu país do subdesenvolvimento. É evidente, no entanto, que a concessão de um canal faraônico, social e ambientalmente inviável, só contribuirá para o enriquecimento da endogamia presidencial dos Ortega, no poder desde 2006, e para o aprofundamento da Nicarágua no emaranhado de corrupção, injustiça e dependência que caracteriza o investimento transnacional em infraestrutura.

Essa simbiose entre corrupção e política de desenvolvimento é uma das marcas deletérias que devem ser erradicadas da esquerda latino-americana, em geral, e no Brasil, em particular. Ao referir-se à recondução do PT pós-golpe de 2016, Chomsky assevera: “eu não acho que o jogo está perdido, de forma alguma. Há vários logros alcançados, e eu acho que muitos deles serão mantidos. Mas há também regressão. Terão que escolher novamente forças mais honestas com disposição para reconhecer a necessidade de desenvolver um projeto econômico com fundamentos sólidos e não baseadas exclusivamente na exportação de bens primários…”[2]

Em conclusão, pode-se afirmar que as políticas de desenvolvimento arraigadas no neoextrativismo só contribuíram para escavacar o abismo ético e político no qual se encontram boa parte dos partidos de esquerda que conquistaram vitórias eleitorais nos últimos anos na América Latina. A saída de tal abismo passa, na lição de Boaventura, pela construção de uma nova esquerda intercultural, disposta a alçar a bandeira da justiça ambiental e dar voz, voto e prioridade aos povos tradicionais ante decisões relacionadas aoseu território. Se a marca registrada da esquerda é a emancipação individual e coletiva ante estruturas sociais injustas, não há grupo humano mais habituado a resistir à dominação cultural e material que os referidos povos. Seu histórico de resistência à mercantilização da natureza deve ser um exemplo para a esquerda latino-americana.

[1] O termo resource curse foi utilizado pela primeira vez pelo economista britânico Richard M.Auty, em 1993, para descrever a incapacidade dos países ricos em minerais de utilizar a renda derivada de tais recursos para modernizar suas economias e alcançar níveis de crescimento econômico superiores aos de países industrializados que contam com uma quantidade inferior de recursos naturais.

[2]Texto original: I don’t think the game is over by any means. There were real successes achieved, and I think a lot of those will be sustained. But there is a regression. They’ll have to pick up again with, one hopes, more honest forces that won’t be—that will, first of all, recognize the need to develop the economy in a way which has a solid foundation, not just based on raw material exports.