Por: Fábio José de Queiroz, Colunista do Blog Esquerda Online
Ler Lênin não me parece uma boa expressão de ordem expositiva. Ainda assim, manterei essa locução, uma vez que, de conteúdo, ela me parece quase insubstituível. A indagação é o mote deste breve artigo: afinal, por que ler Lênin?
Há 100 anos, precisamente, o mundo virou de ponta a cabeça. A Revolução de Outubro mudou os destinos da humanidade e demonstrou que os operários, ao lado de forças sociais afins, podem governar a sociedade. Efetivamente, Lênin desempenhou tarefas de direção nesse processo histórico, que pode não ser um modelo, mas é uma referência para todo aquele que faz da sua vida um pedaço do esforço grandioso de transformar o mundo. E esse tipo de material humano está em muitos lugares e carece de um sinal, uma alusão, uma referência.
Paradoxalmente, Lênin se tornou persona non grata, na academia, nas igrejas, nos palácios, nos castelos, e, mais recentemente, até em grupos que se reivindicam de esquerda. Os que o leem se tornaram meio que malditos e hereges. Por que isso aconteceu? Afinal, Marx, Engels, Gramsci, Lukács, e, ainda que muito raramente, até o Trotsky, malgrado o olhar malicioso e enfadado do establishment, conseguiram adentrar ínfimos espaços do mundo intelectual. Por que não Lênin?
A radicalidade da Revolução de Outubro e a relação deste acontecimento com a trajetória de Lênin, as limitações quase intransponíveis para uma apropriação acadêmica dos seus textos, certo tom áspero, a palo seco, de seu idioma político (firmemente conectado com a necessidade de um partido revolucionário) e a sua obsessão por tratar o marxismo, rigorosamente, como um guia para ação, não necessariamente nessa ordem, podem ter contribuído para esse desenlace que corresponde quase a um exílio. Aliás, em Lênin, o estudo nunca é desinteressado. Essa atitude, provavelmente, incomoda. O seu desterro político, de certo modo, pode estar atado a esse ponto, a nosso ver, crucial.
O certo é que 100 anos depois da Revolução de Outubro, não é que as ideias de Lênin correspondam aos fatos. Ao contrário, as ideias de um partido talhado para revolução, profundamente vinculado à classe trabalhadora e centralizado, sem dúvida, provocam repulsas, até porque as ideias horizontalistas e antipartido, de certo modo, cresceram, e cresceram de tal maneira que, para não parecerem sectários, marxistas de uma boa safra passaram a ignorá-lo, a não tê-lo como uma boa companhia.
Mas, o que é uma boa companhia, particularmente no Brasil, e depois de um golpe parlamentar que suspendeu a experiência do movimento operário com a política de conciliação de classes, cuja resultante mais dolorosa é o governo ilegítimo de Temer? Lênin era hábil do ponto de vista tático, sabia aprender com os erros, mas nunca deixou de combater a conciliação de classes, pois sabia que esse caminho não era o indicado para a classe trabalhadora. Ele sabia dos riscos intoleráveis contidos nessa política. Voltar a ler Lênin talvez nos ajude a entender o significado mais profundo dessa política e por que ela nos trouxe até aqui, trabalhadores e trabalhadoras.
Lênin, no entanto, devido à flexibilidade tática que o distinguia de seus pares, de fato, admitia a existência de situações que exigem da classe trabalhadora a mais obstinada unidade. Na conjuntura brasileira, o movimento que conduziu à greve geral de 28 de abril, antes de tudo, é o resultado de uma política de frente única que permitiu mobilizar a maior parte dos setores assalariados e populares e trazer os trabalhadores para o terreno da iniciativa, que, até então, era (exclusivamente) do governo e dos patrões. Há fumaça e o papa da luta de classes saiu na sacada. É hora de voltar a Lênin e ao seu texto clássico sobre as greves, pois elas – como vimos no dia 28 – despertam forças adormecidas, põem o velho proletariado em movimento e oxigenam a vida.
Ademais, no momento em que as instituições estatais, no Brasil, mais do que nunca, parecem descoladas do sentimento das ruas, uma obra como O Estado e a revolução pode ser útil para que se estenda o real significado do conjunto de instituições que conforma o aparelho estatal e lhe impõe um sentido; entender, sobretudo, que por dentro desse Estado nada muda e tudo é mudado.
Em suma, quando muitos se perguntam “que fazer” (?), é o momento de contrariar o coro dos contentes, de desafiar os olhares incomodados, de – tal como Lênin nas Teses de Abril – não temer de expor o ponto de vista, e, por fim, voltar a ler o herege Vladimir Ulianov Lênin. Ler Lênin até por que os tempos pedem um pouco de heresia no santuário.
Comentários