Gabriel Zomer Facundini, Assessor no TRT2, especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital do Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Universidade de São Paulo
Muitos tem se perguntando sobre o que é, afinal, essa “Reforma Trabalhista”. Afinal, cientes de que toda a informação que nos é passada pela “imprensa” não é isenta de juízo de valor, muitos querem entender o que está acontecendo. O que diabos o Congresso Nacional está fazendo?
Há inúmeros textos por aí que tencionam explicar a “reforma”, mas acabam caindo nas amarras do juridiquês e se tornam ininteligíveis para a maior parte da população. Ante essa incompreensão fica fácil entender como tantos veem essa “reforma” como algo bom.
Afinal, ela não vai “modernizar” as relações de trabalho? Fazer o Brasil ingressar nesse século XXI de uma vez por todas? Adaptar o país a “realidade da globalização e das novas tecnologias”. Lindo, não?
Imaginem que futuro brilhante. “Moderno”. E contra o moderno temos o arcaico. Ora, estas velhas leis trabalhistas concebidas com máquina de escrever quando o mundo hoje se utiliza de smartphones, tablets, GPS etc. Pois é, lindo. Só que eufemismo não torna algo verdadeiro.
Em primeiro lugar, porque a legislação trabalhista do Brasil não tem nada de velha. Nem foi criada na mente mirabolante de Getúlio Vargas. No Brasil, como em todo resto do mundo, os direitos do trabalhador – os seus direitos – foram conquistados com muita luta e repressão.
Ou alguém realmente acredita que meia dúzia de empresários e fazendeiros se reuniram um dia e pensaram “Nossa, estamos explorando demais os trabalhadores! Crianças trabalhando 14 horas? Não dá, vamos dar-lhes direitos”. Não. Empresário quer lucro e para isso precisa explorar o trabalho alheio. É a premissa básica do capitalismo, é a regra do jogo.
Dito isto, desde a criação da CLT – que nada mais foi uma compilação com adendos da legislação que já havia – TODOS os governos que se sucederam efetuaram alterações na legislação trabalhista (com exceção de Jânio Quadro, certamente por falta de tempo). Assim, a legislação já foi fundamentalmente alterada diversas vezes. Na realidade, a maior parte dos seus direitos (13º salários, aviso prévio, FGTS etc) sequer estão previstos na CLT (estão em outras leis). Uma lei que foi e é alterada continuamente por setenta anos pode ser tudo, menos arcaica. E se arcaica não é, o que se pretende com essa tal de “modernização”?
Bem, sempre que se quer destruir algo sem que haja revolta da população é necessário apresentar uma justificativa que apareça ser plausível. “Modernizar” é a palavra de ordem hoje – como se o retorno a escravidão que esta “reforma” traz tivesse algo de moderno.
Depois, basta utilizar todo o aparato da mídia (lembrem-se: a imprensa tem dono, ela é uma empresa), efetuar entrevistas com o governo (eleitos com doação de empresa) e com a FIESP, CNI etc e pronto, criou-se a mística da necessidade de reforma. E o que esta faz, afinal? O que tem de tão polêmico nisso?
Tive o desprezar de ler todo o texto do Projeto de Lei(PL) recentemente. Na prática, o principal objetivo do PL é acabar com o reconhecimento legal daquilo que é o mais básico na relação de trabalho: a desigualdade/disparidade de forças entre patrão e empregado.
Ora, qualquer um que já trabalhou mais de cinco minutos sabe que não existe “acordo” com patrão. Patrão manda, empregado obedece. É a subordinação inerente ao contrato de trabalho (ou até mesmo nas relações de fachada dos pejotizados). Somente um ser deveras ingênuo pode acreditar que o empregado “negocia” com o patrão, ainda mais em um dos poucos países do ocidente em que se pode demitir a qualquer momento sem qualquer justificativa. Imagine só: “patrãozinho, quero aumento” “RUA!”. Isto é negociação.
Entretanto, é exatamente esta previsão que há na “reforma”. Empregados – individualmente – poderão celebrar um “acordo” com o patrão de banco de horas. E, ainda que as horas extras que prestar NUNCA forem compensadas ou pagas, este acordo será válido. Imagina que show, lá na sua rescisão você ter 500 horas extras não compensadas ou pagas? E, pior, nem vai receber por elas. Sabe porquê?
Porque agora poderá ser feito “acordo” na rescisão do contrato entre empregado e patrão. E que acordo hein! Patrão faz você assinar um papel e você receberá… METADE das verbas rescisórias que antigamente receberia. Lindo! E mais, empregado que receber 30% acima do teto da previdência (uns R$ 7.000,00 no valor de hoje) vai poder ter sua linda rescisão feita em “Câmara Arbitral”! E o que é isso? Ah.. é aonde o patrãozinho escolhe o árbitro (julgador) e daí você faz um acordo com ele (sozinho). Já dá para imaginar que coisa bela né.
E o show de modernidade não acabou ainda! Agora sindicatos pelegos (sabe aquele que não tem nenhum empregado sindicalizado e não representa ninguém?) vai poder fazer acordo com o patrão para reduzir ainda mais os direitos previstos na lei e isto será totalmente válido.
Mas só isso não basta. Que tal a previsão de que as férias poderão ser de CINCO dias hein? Dá para fazer aquela viagem que você tanto queria né. As férias poderão ser divididas em um período de 15 dias e três de cinco dias, sempre na época que melhor atender o interesse patronal. E todos sabemos que o patrão nunca fará você iniciar seus cinco dias de férias numa quinta-feira, obviamente.
E almoço? Ninguém precisa de uma hora de almoço, absurdo. Por isso, a modernidade vai trazer almoço de trinta minutos. E se nem isso for respeitado e você trabalhar todo seu horário de almoço esse período será… indenizado a você. Ocorre que, hoje, esse período é considerado – por óbvio – salário. Mas nah. Melhor indenizar, assim você recebe menos. E parece mais bonito.
E vamos acabar com a farra. A modernidade traz uma bela “tabela” com valor das indenizações, baseada no salário do empregado. Ou seja, se a gerente e a faxineira forem assediadas uma receberá.. dois salários (2 salários mínimos) e a outra 2 salários de gerente. Afinal, a dignidade humana tem preço, não? Pobre vale menos, não é? Moderno ué.
Calma, tem mais show de “adaptação a realidade tecnológica”. Agora previsão de teletrabalho hein! Só que todos que efetuem “teletrabalho” – trabalho a distância nunca terão direito a controle de jornada. Leia-se: todos trabalharão quando e quanto o patrãozinho quiser sem nunca receber horas extras.
E nada mais moderno do que blindagem patrimonial. A “reforma” prevê expressamente que o patrãozinho poderá criar inúmeras empresas fantasmas (ex: holdings), transferir todo o patrimônio para elas, e, quando você processá-lo, não poderá ser reconhecido a fraude. Ou seja, basta transferir tudo para outro CNPJ e nada pagar. Moderno!
Cansou? Mas nem chegamos no mais lindo: jornadas de 12 horinhas por acordo individual. Afinal, oito horas é tão século XX. Ah, e acabam com a equiparação salarial, ou seja, empregados que executem a mesma tarefa de forma idêntica poderão sim receber salários diferentes, a critério da empresa. E isto porque a “reforma” prevê que as empresas poderão criar planos de cargos e salários como bem entenderem sem qualquer fiscalização e tá resolvido. Show!
Opa, e que tal algo tão moderno quanto isto: valores que você receber a título de diárias, vale refeição, ajuda de custo etc, ainda que pagos todos os meses, não serão salário. Como assim? Significa que a empresa pode te pagar um salário mínimo e pagar todo o resto sob qualquer título (digamos, chamar R$ 2.000,00 de “VR”) só para essa parcela não ser salário e, portanto, não ser paga nas férias, 13º salários, FGTS, horas extras etc. Obviamente que os patrões não farão isso né.
Sem falar do incrível “trabalho intermitente”. Nova modalidade de contrato que você trabalha quando e quanto o empregador quiser e recebe proporcional. Significa que o trabalhador sequer poderá mais planejar a sua vida social ou mesmo o quanto de dinheiro terá no mês, já que poderá trabalhar uma hora um dia, duas no outro, nada no outro, doze no outro e por ai vai, ficando sempre refém do patronato. Sem contar que o patrão poderá te contratar por três meses, te deixar seis meses sem trabalhar, e depois chamá-lo de volta, tudo no mesmo contrato. Fica fácil de ver o objetivo: fazer com que o patrão não tenha que pagar o custo da rescisão, deixando um contrato inútil eternamente ativo, para o empregado ser chamado somente quando for interessante.
No âmbito do processo do trabalho (processo judicial) a reforma é ainda mais absurda. Cria tantos mecanismos para impedir que o empregado busque seus direitos na Justiça que os inviabiliza, sem contar que acaba com um dos mais básicos conceitos do processo trabalhista, que é o “impulso oficial”. Esse princípio do impulso oficial significa que será o próprio Juiz e servidores quem buscará todos os meios para executar a empresa devedora, já que todos sabemos que o ex-empregado (já que na Justiça só há desempregados) não tem meios para identificar todas as fraudes e manobras financeiras empresariais.
Com a extinção deste princípio, o empregado – sem acesso aos mecanismos legais como convênios com o Banco Central, Juntas Comerciais etc – terá que identificar a fraude. Impossível, não é? Sim, óbvio, essa é a ideia.
Há muito, muito mais. Mas acho que dá para ter ideia de toda a modernidade que virá com o acima escrito. O principal é o seguinte: saíam do discurso do “colaborador”, empregado e patrão não são amiguinhos, a empresa não quer o seu bem, ela quer o seu trabalho da forma mais barata possível. Ela tenta vender para você a ideia de que somos todos amigos que precisamos fazer “projetos” e “vender”, mas nunca se esqueça de que somos todos descartáveis. E basta uma cartinha escrito “dispensa” sem qualquer motivo que você perceberá isso.
Por fim, esclareço: nenhuma dessas modernidades gerará mais empregos. Como qualquer economista – até mesmo os neoliberais – poderá esclarecer, não é o custo do trabalhador que gera emprego, mas atividade econômica. Mais atividade econômica = mais emprego. Reduzir o custo do trabalho não gera emprego, ao contrário, traz precarização das condições de trabalho e de vida do trabalhador, redução do dinheiro geral em circulação (redução do mercado interno) e, por consequência, mais desemprego, miséria e desigualdade.
Pensem: se a empresa precisa de dez analistas e eles custam R$ 1.000,00 cada, se amanhã toda essa modernidade passa e ela pode te pagar menos (seu custo passa a ser, digamos, R$ 850,00), vocês realmente acham que ela vai contratar alguém? Por que? Ela precisa de dez, não onze.
Na verdade, podendo explorar quantas horas ela quiser o seu trabalho é mais provável que ela fique com oito (ao invés dos dez), demita dois e faça todos trabalharem mais. Ou demita todos, contrate oito dos dez anteriores com salário menor e pronto. Empresa busca lucro.
Termino por aqui, não dá para falar de toda a “modernidade” em poucas páginas.
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