Por: Stephano Azzi Neto, de São Paulo, SP
Não éramos muitos, uns 200 no máximo. Estávamos no auditório do curso de Geografia da FFLCH. Era pra ser uma audiência pública na qual pediríamos à reitora para se posicionar frente a um conjunto de cinco decretos emitidos pelo então governador de São Paulo, José Serra, hoje citado nas delações da Lava Jato e nas investigações sobre o cartel do metrô.
Os decretos causaram indignação na comunidade universitária. Na Unicamp os estudantes tinham inaugurado a luta com uma ocupação de diretoria. Na USP a revolta crescia. Dos cinco decretos, os mais repudiados acabavam com a autonomia universitária do ensino e da pesquisa, ou seja, tiravam a capacidade da universidade tomar as principais decisões administrativas sobre si própria e transferiam esse poder ao governo do Estado. Me lembro do Magno, dirigente do sindicato dos funcionários, o Sintusp, dizer numa assembleia aos funcionários da universidade: “já é difícil reivindicar verbas e direitos com a reitoria e o Conselho Universitário, imaginem diretamente com o governador”.
O movimento estudantil passava por um momento difícil. Lula era presidente com alta popularidade e isso necessariamente se refletia na direção das entidades estudantis. A turma do PT e do PC do B havia varrido o movimento estudantil nacional com uma série de vitórias nas eleições dos diretórios acadêmicos pelo Brasil em 2006 e vencera a eleição do diretório da USP em aliança com setores tradicionalmente conservadores do movimento.
A esquerda estudantil restava se reinventar, fazendo um movimento pela base com o pé nos centros acadêmicos e coletivos de curso, agitando a luta contra os decretos de sala em sala, de panfleto em panfleto, sem o apoio de sua entidade central. E quando digo a esquerda não me refiro aos partidos políticos de esquerda somente, mas me refiro a todo o ativismo de esquerda da universidade, que existe até hoje com novas pessoas e incluía (e inclui) uma gama vasta de opiniões, correntes de pensamento, classes sociais e etnias, que se expressava da forma partidária à anti-partidária, e que era, sobretudo, parte de uma cultura coletiva e histórica de auto-organização.
Nas calouradas dos cursos havia o clima da luta contra os decretos emitidos em janeiro por Serra. Em 2007, as redes sociais e os aplicativos de comunicação eram incipientes. As coletividades se comunicavam por grupos de e-mails e o que havia de mais avançado em termos de internet era a proliferação dos blogs. Assim, o meio preferencial de transmissão de ideias para a massa universitária eram os panfletos, as passagens em sala mas, sobretudo, os enormes cartazes que confeccionávamos em papel kraft, pintados com cores vivas e mensagens simples, pendurados por todos os cantos. Na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), que era o centro de atividade política da universidade, toda a recepção aos calouros organizada pelos centros acadêmicos e as atividades do movimento no início do ano foram dedicadas à luta contra os decretos em mais de uma dezena de debates.
Deste modo, no final de abril, não existia alma viva na USP que não houvesse pelo menos ouvido falar que o governador emitira cinco decretos que retiravam a autonomia universitária. O Jornal do Campus, órgão informativo do campus Butantã distribuído em todos os cursos, expunha semanalmente este tema. Na burocracia administrativa da universidade a divisão entre membros dos conselhos, pró-reitorias e reitoria era evidente. As congregações, formadas essencialmente por professores de carreira, votavam moções de repúdio aos decretos, que retiravam sua própria capacidade administrativa, ou seja, diminuíam seu poder dentro da universidade. A USP se transformava numa bomba relógio de insatisfação dos três setores que a compunham internamente: os professores, os funcionários e, acima de tudo, os estudantes. Ao movimento estudantil coube a capacidade de aglutinar os anseios e transformá-los em ação.
Por fora do DCE decidimos adotar a tática de exigir o posicionamento da reitora Sueli Vilela, professora da Faculdade de Farmácia da USP Ribeirão Preto. Organizamos uma audiência pública para que a reitoria, que não havia emitido opinião pública sobre os decretos do Serra, se posicionasse, mas a reitora estava em viagem de trabalho à Europa. Nenhum representante foi enviado para substituí-la, motivo pelo qual decidimos formalmente protocolar no prédio da reitoria, o então bloco K, que se encontrava em reforma, uma carta escrita e aprovada na audiência pública, elevada agora à condição de assembleia geral dos estudantes da USP ao constatarmos a ausência de qualquer representante da universidade.
A votação foi implícita. Não votamos formalmente a ocupação porque sabíamos que no auditório estavam presentes olheiros da universidade. Aprovamos por ampla maioria protocolar a carta dentro da reitoria mas estava óbvio que nosso intuito era a ocupação, até sermos recebidos por alguém, não sabendo quem nos receberia nem quando. Queríamos que o órgão máximo da administração da universidade expusesse a sua opinião ao público. O relógio batia às cinco e meia da tarde. Havíamos posicionado dois estudantes com antecedência para sondar a entrada de acesso mais fácil à reitoria. Quando telefonamos após as decisões da assembleia, a resposta de nossos “espiões” foi: “há uma entrada em reforma nos fundos do prédio, está aberta e sem seguranças”. E o que era uma porta em reforma transformou-se para nós, jovens alunos, em verdadeira revolução.
A partir de então, a vida dos que ocuparam mudou. Não vale a pena discorrer sobre a sucessão dos 51 dias que a reitoria permaneceu ocupada nem sobre os resultados diretos da luta de 2007. Seria um exercício pouco prático e de desrespeito a um movimento que envolveu milhares de pessoas, um debate sem fim entre indivíduos e organizações políticas. Vale a pena constatar o legado da ocupação e comemorar sua grandeza.
Por se tratar da universidade mais importante do país, por suas reivindicações e seus métodos, a ocupação da reitoria da USP em 2007 ganhou repercussão tal que acordou todo o movimento estudantil brasileiro na época. Inspirados pelo exemplo da USP, uma geração inteira de jovens universitários, que hoje estão na faixa dos 30 anos, se formou politicamente ocupando reitorias e fazendo greves em suas universidades, tomando a luta social nas próprias mãos, o que com certeza dá bases de apoio – modestas, mas necessárias – para que resistamos à situação política dramática que vivemos atualmente.
Essas pessoas estão lecionando nas escolas, trabalham em órgãos públicos, são jornalistas, profissionais da saúde, advogados, psicólogos, engenheiros, enfim, são trabalhadores das mais diversas áreas. Costumamos nos encontrar nas manifestações e greves e confesso que meu coração se enche de alegria ao saber que, como em 2007, não estou sozinho. É com este espírito de solidariedade e luta que celebramos os 10 anos da Ocupação da Reitoria da USP de 2007. Ocupa Tudo!
Imagens
Debate com Henrique Carneiro, na ocupação
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