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TEORIA

10 livros em português para entender a Revolução Russa

Por: Henrique Canary, Colunista do Blog Esquerda Online

Há cerca de um mês, o escritor, historiador, ativista e jornalista britânico-paquistanês Tariq Ali publicou um excelente artigo no The Guardian, intitulado Top 10 books about the Russian Revolution (Os 10 principais livros sobre a Revolução Russa, em tradução livre). Não há nenhum reparo à lista preparada por Ali, que poderia ser a nossa própria. Mas infelizmente, nem todos os títulos selecionados no artigo se encontram disponíveis em português. Para facilitar o acesso do público brasileiro à história da Revolução Russa, decidimos fazer nossa própria lista, ao mesmo tempo em que agradecemos Ali pela ideia de um artigo deste tipo, que ajuda a popularizar o fato mais importante do século 20.

Nossa lista começa pelo mesmo livro que Ali selecionou: A História da Revolução Russa, de Leon Trotski. Apesar de ter sido escrito por um de seus principais participantes, não se trata de um livro de memórias. Baseada em uma pesquisa extremamente séria em arquivos, jornais e periódicos da época, esta é, sem dúvida nenhuma, a obra mais importante de Trotski, não só pela profundidade da análise, mas também pela beleza da escrita, que muitas vezes faz o livro parecer, de fato, um romance envolvente. Mas ele é muito mais do que isso. Muitos conceitos que hoje estão consagrados na historiografia e que são considerados objetos tradicionais de pesquisa foram tratados pela primeira vez em profundidade por Trotski em sua História: o problema do duplo poder, a lei do desenvolvimento desigual e combinado na história, a análise das forças de classe e mecanismos políticos da Revolução de Fevereiro, a relação entre revolução agrária e revolução urbana, o conceito de bonapartismo para definir o governo Kerenski, o problema da insurreição armada e muitos outros. Se o livro tem algum defeito, é o de diminuir o papel do próprio Trotski na revolução. Temendo ser acusado de promover sua própria imagem, Trotski acabou, segundo a opinião de muitos historiadores, diminuindo seu próprio papel nos eventos que descreve. Felizmente, esse “erro” foi plenamente corrigido por toda a historiografia séria posterior. De qualquer forma, A História da Revolução Russa é uma das mais emocionantes epopeias jamais escritas. Quer-se lê-lo em uma única sentada, o que só não é possível devido às suas mais de 1000 páginas, distribuídas em 2 ou 3 tomos, dependendo da edição. O livro concentra-se no processo revolucionário em si: começa com a descrição da Rússia no período imediatamente anterior à revolução e termina com o II Congresso Pan-Russo dos Soviets, que instalou o poder soviético.

Assim como o anterior, Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, é uma das obras mais emocionantes sobre a Revolução Russa. Sob a forma de uma crônica jornalística, o homem cuja vida inspirou o filme “Reds” (Dir. Warren Beatty, EUA, 1981) descreve os últimos dias do Governo Provisório na Rússia, logo antes da tomada do poder pelos soviets. Reed vai ao cotidiano da revolução: seus personagens anônimos, o ânimo nas ruas, os diálogos no transporte público, a angústia dos ministros, a fúria dos soldados. Mas também os grandes eventos e os personagens principais. O livro foi reeditado centenas de vezes em dezenas de países. Frequentemente, quando a edição estava a cargo de alguma editora stalinista, era publicado com um prefácio de 1957, de responsabilidade do CC PCUS. Neste prefácio, se “alertava” o leitor sobre as “excessivas simpatias” do jornalista norte-americano por Trotski. Este “alerta” só traz mais certeza da veracidade do relato de Reed.

O Ano I da Revolução Russa, de Victor Serge é outro grande livro. Muito mais do que uma mera descrição dos fatos, como o nome poderia sugerir, O Ano I faz uma profunda análise política e sociológica do período imediatamente anterior ao 25 de Outubro e do tumultuoso ano que se seguiu, quando tivemos nada menos do que: a assinatura da paz de Brest-Litovski, a dissolução da Assembleia Constituinte, a formação do primeiro governo soviético, a Revolução Alemã, o estabelecimento do Comunismo de Guerra, o início da Guerra Civil, o fuzilamento do czar e sua família, a formação do Exército Vermelho e tantos outros eventos de enorme significado para o destino posterior da revolução. Como Reed, Serge também desce ao cotidiano, analisa as transformações nos costumes, na cultura, na educação e nas artes. Anarquista desde a juventude, Serge foi muitas vezes crítico ao regime e ao governo bolchevique, mas sabia qual era o seu lado na barricada. Foi até a morte um defensor fiel da revolução e suas conquistas.

O Partido Bolchevique, de Pierre Broué, é outra obra monumental, de enorme valor histórico. Escrito durante o “degelo” de Krushev, o livro do historiador e militante trotskista francês é uma espécie de “biografia” do partido bolchevique. Com uma escrita simples e envolvente, com todos os verbos conjugados no presente (o que transmite uma sensação de ritmo forte ao livro), sem detalhes excessivos e digressões desnecessárias, Broué percorre rapidamente um longo caminho, desde o nascimento da fração bolchevique, até o início dos anos 1960. Uma das melhores descrições do processo de burocratização do partido e do Estado se encontra nessas páginas. O otimismo revolucionário e a confiança no processo histórico são as marcas distintivas desta obra de Broué.

A mulher, o Estado e a Revolução, da pesquisadora norte-americana Wendy Goldman, foi uma grata surpresa dos últimos anos. Goldman preencheu com maestria uma lacuna importante na historiografia da Revolução Russa: a descrição e análise das transformações ocorridas na Rússia pós-revolucionária no terreno do combate à opressão da mulher. Da legislação civil à questão dos orfanatos; dos costumes sexuais à auto-organização das mulheres para a administração do Estado – nenhum detalhe desta “revolução dentro da revolução” parece escapar da análise de Goldman. A mulher, o Estado e a Revolução mostra também os efeitos da posterior contrarrevolução stalinista para a mulher soviética: o culto stalinista à família, a nova proibição do aborto e outros retrocessos. É um livro fundamental, que demonstra o quanto a luta contra todo tipo de opressão sempre foi parte do programa e da ação prática dos marxistas.

A revolução traída, de Leon Trotski, destoa um pouco dos livros que descrevemos até aqui. Não se trata de uma história ou relato, mas de uma análise teórica marxista sobre o processo de degeneração burocrática da URSS. É um livro um pouco mais complexo, que pressupõe um conhecimento histórico mínimo anterior. Mas justamente por sua profundidade, é, segundo vários autores, a obra teórica mais importante sobre a burocratização da União Soviética. Escrito em 1936, no auge da contrarrevolução stalinista, quando quase todo o movimento comunista se ajoelhava perante Stalin e reconhecia que o socialismo havia triunfado na URSS, o livro de Trotski nada contra a corrente. Reconhece os méritos da economia socializada e as conquistas da sociedade soviética, para depois mostrar o quanto isso ainda está longe de poder ser chamado de socialismo. Analisa as contradições da sociedade soviética, as forças sociais em luta, a dinâmica da política interna e externa, da economia, as pressões do mercado mundial, e termina com um prognóstico: ou a classe trabalhadora soviética faz uma nova revolução (desta vez uma revolução apenas política, contra a casta burocrática dirigente), ou o capitalismo será, mais cedo ou mais tarde, restaurado na URSS. Este prognóstico, quando foi feito, soava como a profecia do apocalipse, e por isso despertou não poucos risos irônicos entre críticos de todas as correntes. Sessenta anos depois, o prognóstico de Trotski se cumpriu em detalhes que impressionam. A revolução traída é uma obra fundamental para quem quer entender por quê as coisas aconteceram da forma que aconteceram no século 20.

Últimos escritos e Diário das secretárias reúne artigos, cartas e pequenas notas escritas por Vladimir Lenin nos seus últimos dez meses de vida política ativa, entre maio de 1922 e março de 1923, quando o terceiro derrame o afastou completamente de toda e qualquer atividade política. Este livro demonstra o quanto Lenin tinha consciência dos problemas enfrentados pela URSS, principalmente no que diz respeito à burocratização do Estado e do partido, e o quanto lutou com todas as suas forças contra este mal. Como o nome sugere, a coletânea traz também o relato das secretárias que assessoraram Lenin em seus últimos meses de trabalho. Estas anotações ajudam a entender melhor o que se passava na cabeça do líder soviético, e as dificuldades que enfrentou para lutar contra a burocracia nascente, e contra Stalin em particular. É um livro fundamental para acabar de uma vez por todas com o mito sobre a suposta continuidade entre leninismo e stalinismo.

A Revolução Russa de Lenin a Stalin (1917-1929). Ao que parece, este é o único livro do historiador britânico Edward Hallett Carr sobre a Revolução Russa traduzido para o português. Carr é um historiador de inclinação liberal democrática, mas extremamente sério em suas investigações, e que opera sobre uma gigantesca base documental. A Revolução Russa de Lenin a Stalin (1917-1929) é uma espécie de resumo de sua monumental História da Rússia Soviética (uma obra em 14 tomos, até hoje não traduzida ao português).

Stalin – Uma biografia política. Escrito em 1945, portanto ainda durante o regime stalinista, este livro de Isaac Deutscher foi um dos pioneiros na denúncia dos crimes de Stalin. Menos abrangente do que a famosa trilogia sobre Trotski escrita por Deutscher (O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta banido), este livro não é, por isso, menos profundo. Ao contrário, apresenta um quadro completo (e ao mesmo tempo acessível ao público não-especializado) dos eventos que levaram Stalin ao poder: a perseguição à Oposição de Esquerda; a eliminação da velha guarda do partido e o assassinato da própria fração stalinista, que também foi sendo descartada por Stalin na medida em que isso lhe pareceu necessário para sua consolidação à frente do partido e do Estado.

Revoluções, organizado por Michael Lowy. Ao contrário dos anteriores, este livro não é específico sobre a Revolução Russa. Trata-se de uma coletânea de fotos das várias revoluções que ocorreram no mundo entre o final do século 19 e meados do século 20. Não é um livro para entender, mas para sentir o que foi o impacto da Revolução Russa no processo histórico mundial.

Todos esses livros estão disponíveis em português, nos sites das editoras, nas livrarias ou na estante virtual (especializada em livros usados). Mesmo aqueles que se esgotaram nas editoras podem ser encontrados com uma busca rápida pela rede. Alguns estão disponíveis em distintas edições e por preços bastante variados.

Entender a Revolução Russa é entender o século 20, o século que nos deu origem; é conhecer o capítulo mais heroico da história da luta pela libertação da humanidade. Mas acima de tudo, é se preparar para os desafios do nosso próprio tempo.