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CULTURA

Aquele amigo que embarcou comigo cheio de esperança e fé, já se mandou

Por: Rapazes e moças latino-americanos sem dinheiro no banco*, de Fortaleza, CE

Pediram-nos para escrever sobre a morte do Belchior. Não conseguiríamos fazer algo impessoal sobre a obra desse rapaz latino-americano. Estamos, como muitos cearenses, acabrunhados. Que essas mal traçadas linhas expressem nossa tristeza e luto.

Soubemos da morte de Belchior por uma grande amiga. Depois do choque inicial, fomos falando com outras pessoas por telefone e pela internet. Algumas estavam sem acreditar na notícia, supondo que talvez se tratasse de mais uma mentira em torno do seu sumiço. Outras estavam consternadas, chorando, emocionadas. Aos poucos, com a confirmação da veracidade da notícia, fomos nos acabrunhando, tomados por um enorme sentimento de perda.

Conhecemos Belchior e o pessoal do Ceará – Belchior, Ednardo, Rodger, Teti, Amelinha, entre outros – através de nossas mães. O primeiro show que assistimos foi num ato do 1° de maio organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) na praça do Ferreira, a praça mais pai d’égua do Centro de Fortaleza. Ainda hoje, a última frase do show martela nas nossas cabeças. Bradou o compositor: “Sou um operário da música popular brasileira”.

Esse era um dos traços da obra do Belchior. Falar dos mais simples, dos que migram com vários sonhos, dos que chegam na cidade grande e se deparam com a fome, a situação de rua e o frio, dos que sonham em voltar, dos que se perderam da terra, dos que sonham em mudar o mundo. “À palo seco”, “Fotografia 3 X 4”, “Bahiuno”, “Como o diabo gosta”, “Alucinação”, “Quinhentos anos de quê?” são grandes composições que falam, com muita poesia, desses temas.

Naquele 1° de Maio começava o primeiro capítulo dessa paixão. Nossa entrega em devorar os álbuns, descobrir novas músicas, matérias de jornais, textos acadêmicos sobra a obra do rapaz latino-americano, poesias, pinturas, desenhos. E, em cada bar que encontrávamos outros amigos para celebrar a vida, as amizades, nossa juventude, nossas paixões e a esperança de que o mundo pode ser melhor, nós e nossos amigos pedíamos ao cantor da vez: “Toca Belchior”. Porque Belchior é tudo isso. É aventura do meu “Coração Selvagem”, é paixão da “Divina Comédia Humana” e é juventude de “Velha Roupa Colorida”.

Há dois fins de semana, na última Bienal Internacional do Livro, aqui em Fortaleza, estávamos num café literário intitulado “O Ceará no meio do mundo”, com os artistas cearenses Gero Camilo, do filme “Bicho de sete cabeças” e Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado. Falar de Belchior é falar do cearense como cidadão do mundo, como fosse o palestino e o sírio-libanês brasileiro que, sem perspectivas em sua terra natal, emigrou para São Paulo e Rio de Janeiro, para Buenos Aires, Nova York e Paris.

Há dois anos, o mesmo Gero Camilo fez um show em homenagem aos 40 anos do álbum “Alucinação”. Foi um show lindo, emocionante, uma releitura instigante dessa obra tão sensível e universal.

Voltando ao café literário, “O Ceará no meio do mundo”, perguntamos a Gero Camilo como tinha sido a preparação daquele show. Falamos que, aqui no Ceará, todos sonhávamos com a volta de Belchior, que havia um movimento chamado “Volta Belchior” desde o sumiço dele, notificado em 2009. E que, agora, esse movimento tinha virado um “Fora Temer! Volta Belchior!”. Depois de constatar o anterior, Gero disparou sem pestanejar: “Volta Belchior nada! Vamos respeitar o momento dele. Deixemos Belchior em paz. Vamos fazer ele viver de outra forma”.

Ao nosso juízo, Gero tinha razão. Belchior estava num momento muito particular, por isso havia decidido sair da cena pública. Não queremos especular os motivos do seu sumiço. Isso é o menos importante. O importante a ser a dito é que Belchior não era um artista que se adaptava ao mercado. Não produzia por produzir, para se adaptar à última modinha, para vender simplesmente. Pelo contrário, havia uma preocupação, da parte dele, de como o mercado interferia no fazer artístico. Cantava nosso rapaz latino-americano em Paralelas: “E no escritório em que eu trabalho, e fico rico quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor”.

O seu último álbum foi “Autorretrato”, de 1999. E seu último trabalho público foi musicar poemas de Carlos Drummond de Andrade. Foram 31 belos poemas do velho gauche, ladeadas com 31 gravuras com o rosto do poeta, desenhadas pelo próprio Belchior em seu ateliê, na cidade de São Paulo.

São Paulo é um capítulo à parte da vida de Belchior. Tinha a cidade no seu coração. É tanto que a possibilidade do amor na maior da cidade da América Latina se transformou numa linda composição intitulada Passeio: “Vamos andar pelas ruas de São Paulo, por entre os carros de São Paulo, meu amor, vamos andar e passear, vamos sair pela rua da Consolação, dormir no parque, em plena quarta-feira, e sonhar com o domingo em nosso coração”.

Se é verdade que Gero Camilo tinha razão, também é verdade que nós, cearenses, tínhamos muitos motivos para desejar a volta de Belchior. Somos um povo marcado pela necessidade de migrar, pelo desejo de voltar à nossa terra, pela ilusão de que a grande metrópole do “sul maravilha” seria a saída para nossos problemas. A gente se vê na obra desse rapaz latino-americano. Ele canta para nós, por nós e em nós.

Não há cearense que não tenha rido, chorado, embalado amores e dores ao som desse poeta traiçoeiro de emoções. Com uma canção para cada tema, para cada dilema, pedimos insistentemente seu retorno, talvez porque ele soubesse dizer, como poucos, o indizível. Traduzia “À palo seco” como se de fato cortasse nossa carne, as dores e belezas de nossa existência. Belchior nos falou da saudade de estar longe, do exílio, da mania cearense de fazer graça e poesia com as tragédias. Disse sobre a necessidade de “amar e mudar as coisas” e, como um profeta bigodudo, que “as lágrimas dos jovens são fortes como um segredo… podem fazer renascer um mal antigo”.

Por muitas vezes, sonhamos, assim como tantos outros cearenses, que Belchior voltaria de forma apoteótica através de um grande show em Fortaleza. Mas ele estará de volta de outra forma. Seu velório ocorrerá em Sobral, sua cidade natal, e em Fortaleza. O enterro será aberto ao público, no cemitério Parque da Paz, em Fortaleza.

Arre! No fundo do nosso coração, Belchior nunca se foi, nunca sumiu e, agora, não morreu. Ele viverá para sempre em suas canções inesquecíveis na memória do povo cearense porque “o que transforma o velho no novo, bendito fruto do povo será”.

Volta Belchior, que nada! Viva Belchior! Você nunca sumiu e nunca morrerá!

Obrigado por tudo, nosso rapaz latino-americano!

* Militantes do MAIS de Fortaleza-CE

Foto: para a capa do disco “Alucinação”, por Philips / Divulgação