Por Bruno Figueiredo, de São Paulo, SP
Muitas pessoas têm jornadas de trabalho extremamente exaustivas, mas acham isso natural. Ou simplesmente acreditam que não existe outra solução. Formalmente no Brasil a jornada de trabalho diária é de oito horas. Mas o fato é que muitos trabalhadores ultrapassam em muito este limite legal.
Este ano completam-se cem anos da Greve Geral de 1917[1]. A pauta de reivindicações tinha como principais pontos os seguintes: Jornada de trabalho de oito horas. Aumento da remuneração do trabalho extraordinário. Abolição do trabalho para menores de 14 anos nas indústrias. Abolir trabalho noturno para menores de 18 anos. Hoje parece impensável que alguém defenda o trabalho de menores de 14 anos nas indústrias. Entretanto, foi necessária uma grande greve geral, na qual morreram operários, e mesmo um jovem de 12 anos de idade. Na qual a polícia atuou com grande violência, o que lhes renderia posteriormente uma estrela de condecoração.
Atualmente o governo Temer pretende retroceder as conquistas da grande greve de 1917. Entretanto, mesmo a legislação brasileira atual é sistematicamente desrespeitada pela patronal. Muitas vezes com uma postura conivente de sindicatos. Embora o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já tenha um entendimento muito consolidado contra as jornadas de trabalho exaustivas ou extenuantes, por incrível que pareça muitos juízes ainda têm decisões no mínimo complacentes com a patronal. Existem projetos de Lei que visam inclusive retirar o conceito de jornada exaustiva da lista de itens que configuram o trabalho escravo[2].
Para um estudo mais aprofundado sobre as jornadas de trabalho recomenda-se leitura de O Capital, de Karl Marx[3]. Há um mito de que a análise do capitalismo refletida em O Capital não condiz com o capitalismo contemporâneo. Para fundamentar tal afirmativa alega-se que a produção industrial da Inglaterra de 1866 possuía crianças de oito anos de idade trabalhando nas indústrias e jornadas de dezoito horas por dias. Portanto, o capitalismo hoje seria mais “humano”. Em que pese o trabalho infantil ainda seja uma chaga que faz sangrar grande parte dos filhos da classe trabalhadora, focaremos na mais-valia explorada “legalmente”. Mais exatamente queremos aqui observar como segue atual a análise de Marx sobre aquela parte da mais-valia que é explorada de forma ilegal, entretanto é tolerada pelo Estado.
Karl Marx desenvolve o conceito de mais-valia da seguinte forma, em resumo ele aponta que uma parte do trabalho do trabalhador é dedicada a repor ao capitalista aquele valor que é pago ao trabalhador como salário. Entretanto, o trabalhador segue trabalhando outra parte, que não lhe é paga, significando este valor a mais, ou mais-valia. De modo que a jornada além daquela necessária para pagar o valor do trabalho representa o lucro que o capitalista obtém do trabalho alheio.
Marx aponta que: “O trabalhador precisa de tempo para satisfazer necessidades espirituais e sociais cujo número e extensão são determinados pelo nível geral de civilização. Por isso, as variações da jornada de trabalho ocorrem dentro desses limites físicos e sociais.”[4] Ou seja, limitar a jornada de trabalho está diretamente relacionado com garantias humanitárias, civilizatórias e espirituais. Neste sentido observe-se o seguinte julgado do TST:
“ A limitação da jornada de trabalho constituiu uma das bandeiras mais relevantes (senão a mais importante delas), que levaram ao surgimento do Direito do Trabalho, como ramo jurídico autônomo, durante o século XIX. Verificou-se que a ausência de limites temporais para a realização do trabalho subordinado reduzia a pessoa do trabalhador “livre” a ser meramente econômico, alienado das relações familiares e sociais.
Foi assim que, no auge da Revolução Industrial, tanto o movimento sindical (ainda insipiente), como diversos e variados setores da sociedade civil (cite-se como exemplo o envolvimento da Igreja, evidenciado pela edição da Encíclica “Rerum Novarum” e do movimento comunista, representado pela divulgação do Manifesto Comunista de Marx e Engels) empreenderam severas críticas à exploração do trabalhador, acobertada pelo caráter ultra-liberalista do Estado no século XIX. Era necessário restringir a absoluta liberdade entre as relações privadas empregado e empregador, com objetivo de inserir nas relações empregatícias conteúdo moral e civilizatório.
A partir de então, paulatinamente e em razão da pressão da própria sociedade, o Estado moderno passou a legislar acerca da duração do trabalho, com objetivo de o humanizar.”[5]
Existem, portanto, dois limites distintos na jornada de trabalho. Existe o trabalho exercido que é suficiente para pagar o salário do trabalhador, aquela jornada que exceder tal limite, portanto, já está dentro da mais-valia. Todavia, existe um limite civilizatório, um limite físico que se impõe. O que está em questão ainda não é o debate do fim da mais-valia. Mas um limite humanitário, que está relacionado a preservação da vida do trabalhador. Na mesma obra Marx chega à conclusão de que para o capitalista vale a pena sistematicamente descumprir a legislação e ganhar cada centavo a mais do trabalho alheio.
Os mecanismos de burla ao limite das jornadas exaustivas são muito “criativos” por parte da burguesia. O que em muitos casos criam a ilusão nos trabalhadores de que estaria tudo “dentro da lei”. Um dos mecanismos que muito se tem utilizado é o chamado “banco de horas”, onde a patronal cria mecanismos e subterfúgios para que na prática o trabalhador pague pelos momentos em que a empresa não está funcionando. Outro mecanismo ardiloso é o uso das jornadas de turno ininterrupto. Como também existe a forma de exploração dos trabalhadores que trabalham nas chamadas “escalas”.
O fato é que as empresas tratam com naturalidade práticas ilegais. No Brasil a jornada de trabalho é de oito horas diárias, sendo limitada às seis horas para quem trabalha em turno ininterrupto. Não podendo haver mais do que duas horas extras por dia. Em tese, para que houvesse uma hora extra a empresa teria que motivar, justificar o fato. Não poderia simplesmente impor ao trabalhador que fique trabalhando enquanto o chefe desejar. O mundo real infelizmente é muito distinto do faz de conta que vivem alguns juristas. O trabalhador não tem, de fato, o poder de se negar a fazer tais horas extras.
E quando as horas extras se tornam habituais, o que ocorre é que o trabalhador passa a ser impedido do convívio social e familiar. Garantias mínimas civilizatórias e espirituais passam a ser tolhidas da vida do trabalhador. Portanto, não é razoável que o simples pagamento de um valor suplementar justifique tal imposição de trabalho. Com isto o capitalista passa a ganhar lucros com o sofrimento do trabalhador. É muito provável que o trabalhador submetido a esta situação consiga ganhar judicialmente uma indenização por isto. Mas para as empresas ainda vale a pena impor jornadas de fato de cerca de doze horas de trabalho. Pois o pior que lhes acontece é que um ou outro trabalhador vai entrar com um processo judicial, que algumas vezes ganha e outras não. Mesmo os casos em que a empresa seja “condenada”, tais condenações são em valores muito inferiores ao lucro obtido. Para não falar aqui no retrocesso civilizatório imposto ao conjunto da sociedade.
Estes níveis de superexploração significam os níveis de exploração tão elevados que são um impeditivo para a reprodução da própria mão de obra. Ou seja, os níveis de vida da classe trabalhadora se tornam tão miseráveis que impedem que o trabalhador sequer consiga manter um padrão mínimo de vida. Portanto, a superexploração pode se traduzir, por exemplo, na desnutrição de setores da classe trabalhadora. Ou tem outra expressão brutal nos níveis de lesões por acidente de trabalho. Pois é imposta uma carga de trabalho tão intensa dentro da jornada laboral que leva inevitavelmente às lesões incapacitantes. A população brasileira sofre tal qual como se estivesse numa guerra, pelo número de mortos e feridos. Mas se trata da “guerra entre as classes”. Entretanto, a reforma previdenciária pretende impor o trabalho até a morte. No Poder Judiciário é normal se ver juízes considerarem as partes do corpo de um trabalhador como um “açougue macabro”, onde uma amputação de um dedo aplica-se uma multa de dez mil reais, enquanto o próprio juiz que profere a sentença tem um salário de três vezes isso. De modo que tanto os empresários, como muitos juízes, não se identificam com os trabalhadores como seres da sua mesma espécie. A luta de classes é brutal para a vida dos trabalhadores.
Governo Temer conseguiu impor a Terceirização, e agora tudo indica vai aprovar a reforma trabalhista. A nova redação da CLT, no Art. 611-A, II, o limite da jornada de trabalho passaria a ser de 220 horas mensais. Isso poderia significar jornadas diárias, sem hora extra, de dez horas e jornadas semanais de 55 horas. Ou seja, o governo pretende impor um retrocesso histórico em mais de cem anos nas condições de vida da classe trabalhadora. Isto inevitavelmente vai gerar mais lesões e mortes. Há com isso uma intensa superexploração de mais valia. Passando à haver uma intensificação da forma brutal das relações sociais.
Portanto, a situação que estamos vendo é a necessidade de os trabalhadores imporem uma luta, nos moldes da greve geral de 1917, para conseguirem um salário justo por uma jornada de trabalho dentro de limites humanitários. Isto significaria incorporar nos salários os valores pagos a título de horas extras habituais. Limitar de fato a jornada de trabalho. Uma redução da jornada de trabalho significaria um aumento geral dos salários e uma redução do desemprego. Como também significaria um avanço no sentido de tornar a vida dos trabalhadores mais humanizada. Reduzindo assim o desgaste do trabalho, melhorando a qualidade de vida, e diminuindo os acidentes de trabalho.
Neste contexto, a greve geral do dia 28 de abril de 2017 se torna um marco fundamental. Será uma batalha decisiva. Na qual os rumos da luta de classe podem estar em jogo. Evitar um retrocesso poderá ser uma grande vitória. Em um dia estão em jogo mais de cem anos.
[1] Sobre o tema da Greve de 1917 pode-se observar alguns detalhes no Livro “Anarquistas e Comunistas no Brasil” (1900-1935), Dulles, John W. F., 1913-2008, Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1973, pág. 47 e seguintes
[2] Como exemplo pode-se observar o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 432/2013.
[3] Mais especificamente O Capital, de Karl Marx, no Livro I, volume I, terceira parte, Capítulo VIII – Jornada de Trabalho.
[4] MARX,Karl, 1818-1883, O Capital: crítica da economia política: livro I/ Karl Marx; tradução de Reginaldo Sant´Anna. 17ª Ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 270
[5] Conferir o Julgado no TST; Processo: RR – 3690-41.2012.5.12.0007 Data de Julgamento: 07/12/2016, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/12/2016.
http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%203690-41.2012.5.12.0007&base=acordao&rowid=AAANGhAA+AAAXAfAAH&dataPublicacao=19/12/2016&localPublicacao=DEJT&query=jornada%20and%20exaustiva%20and%20comunista
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