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TEORIA

Três batalhas de Lenin contra Stalin [1]

Por Henrique Canary, de São Paulo (SP)

A ideia de que o stalinismo é a continuidade lógica do leninismo é o dogma comum de todas as teorias anti-comunistas. É também o pilar fundamental do próprio stalinismo. A ideia parece forte porque é quase um senso comum. E no entanto, ela não resiste à crítica. A história é, entre outras coisas, uma sucessão de eventos. E os eventos anteriores importam. Mas isso não significa que cada evento seja a simples continuidade do evento anterior. Se fosse assim, não haveria saltos, retrocessos, revoluções e desvios. A vontade do homem, as forças econômicas e sociais, as ideias, o acaso – seriam irrelevantes na história. A história seria linear, e não caberia sobre ela qualquer discussão. Não haveria paradoxos ou surpresas históricas.

Na verdade, o problema da relação ente leninismo e stalinismo remete ao problema dos primórdios do processo de burocratização do Estado soviético. Trata-se de um tema vastíssimo, sobre o qual muito já foi escrito. No presente artigo, colocamo-nos um objetivo bastante específico: demonstrar que as três últimas batalhas travadas por Lenin em sua vida são a prova de que ele não apenas tinha consciência do problema da burocratização do Estado e do partido, como inclusive dedicou suas últimas forças para combater este mal. E não é casual que nestas três batalhas, o alvo pessoal tenha sido o mesmo: o secretário geral do partido, Iosif Stalin.

A história que vamos contar ocupa os últimos 10 meses de vida política ativa de Lenin, desde maio de 1922, quando ele sofre o primeiro derrame, até o dia 06 de março de 1923, quando o terceiro acidente vascular cerebral o afasta de toda e qualquer atividade política.

Primeira batalha: o monopólio do comércio exterior

O Estado operário surgido da Revolução de Outubro tinha três pilares fundamentais: 1) a propriedade estatal dos principais meios de produção do país; 2) a planificação econômica, em oposição à anarquia do mercado capitalista e 3) o monopólio do comércio exterior.

A existência de um Estado operário isolado, cercado por nações capitalistas desenvolvidas e poderosas implicava grandes perigos. O mais evidente deles já era conhecido dos bolcheviques: a intervenção militar estrangeira. Mas havia ainda outro perigo, tão ameaçador quando o primeiro: o comércio desigual com as nações capitalistas desenvolvidas.

A URSS partia de um enorme atraso econômico, o que significava fundamentalmente uma baixa produtividade do trabalho e um custo de produção altíssimo para as mercadorias soviéticas. Nessas condições, a planificação econômica (ou seja, o atendimento das demandas básicas da população e a acumulação socialista primitiva para o futuro) só poderia ser cumprida se toda a capacidade produtiva do país estivesse voltada para a planificação. Qualquer desvio dessa rota deveria ser uma decisão consciente do Estado operário.

Assim, a liberdade de comércio exterior, caso fosse instituída, faria com que as empresas produzissem não de acordo com a exigências da planificação, mas para o mercado mundial. Além disso, em uma relação de livre mercado, as exportações são intermediadas pelo capital financeiro, ou seja, pelos bancos, que financiam as operações com linhas de crédito específicas. Assim, seria criado um controle cada vez maior por parte dos bancos internacionais (os mais poderosos e com maiores linhas de crédito) sobre a produção das empresas. O livre comércio exterior, portanto, além de impedir o cumprimento da planificação econômica, criaria uma relação de dependência do país em relação ao capital financeiro internacional, similar à dependência dos países subdesenvolvidos, cujas economias estão voltadas para a exportação. [2]

Por tudo isso, mesmo nos tempos da NEP, a questão do monopólio estatal do comércio exterior sempre foi extremamente cara aos bolcheviques como medida fundamental de proteção da frágil economia soviética. Somente o Estado operário, de acordo com seus interesses mais gerais, poderia importar e exportar qualquer mercadoria. Os interesses econômicos de determinadas empresas (ainda que fossem empresas estatais) estavam subordinados a esse interesse geral, que era o interesse da construção socialista.

Apesar disso, no dia 6 de outubro de 1922, com a justificativa de que o aparelho estatal soviético não tinha condições efetivas de centralizar o comércio exterior, o Pleno do Comitê Central do PCR(b) [3], em uma sessão da qual Lenin e Trotski estavam ausentes, aprovou uma resolução que introduzia uma série de modificações no sistema de monopólio, no sentido de sua flexibilização. Sem acabar formalmente com o monopólio do comércio exterior, a resolução do CC permitia temporariamente a livre importação e exportação de uma série de mercadorias. Lenin, ao tomar conhecimento da resolução, se opôs radicalmente a qualquer tipo de flexibilização do monopólio, e exigiu que a questão fosse rediscutida na próxima reunião do Pleno do CC, marcada para dezembro. Em consulta realizada no dia 13 de outubro, a maioria dos membros do CC concordou em rever a questão do monopólio do comércio exterior na próxima reunião do Pleno. Na ocasião, apesar de concordarem em discutir novamente o assunto, Stalin e Bukharin se mantiveram firmes em sua posição pela flexibilização. Stalin escreveu aos membros do CC:

“A carta do camarada Lenin não me convenceu de que a decisão do Pleno do CC do dia 6 de outubro sobre o monopólio foi errada… Apesar disso, tendo em vista sua insistência em adiar a aplicação da medida, voto a favor de que a questão seja novamente discutida na próxima reunião do Pleno, na presença do camarada Lenin”. [4]

Apenas Zinoviev foi contra pautar novamente o tema

Sabendo que enfrentaria uma dura batalha na reunião do Pleno, Lenin não contou apenas com sua autoridade pessoal. Ao contrário, realizou um gigantesco trabalho de seleção de dados, estatísticas, tabelas comparativas, opiniões de especialistas da área econômica e diplomática, além de escrever cartas, criar comissões especiais e conversar pessoalmente com membros do CC, a fim de convencer o maior número possível de dirigentes da necessidade do monopólio.

O novo Pleno estava marcado para o dia 18 de dezembro. No dia 13, os médicos proibiram Lenin de trabalhar e ele não pôde participar da reunião. Ao ser informado da proibição, Lenin se dirigiu a Trotski para que este representasse seu ponto de vista na reunião do Pleno: “Em todo caso, eu lhe pediria muito que tomasse para si, no próximo Pleno, a defesa de nosso ponto de vista comum sobre a necessidade de manutenção e fortalecimento do monopólio do comércio exterior.” Em outro trecho da carta, Lenin escreveu a Trotski que, caso o Pleno referendasse a flexibilização do monopólio, seria preciso levar o caso ao congresso do partido. Segundo o próprio Lenin, “nesta questão não se pode recuar”.

No dia 15 de dezembro, a três dias do Pleno, Stalin, percebendo a fragorosa derrota que sofreria, mudou de posição e escreveu uma carta aos membros do CC: “Tendo em vista os novos materiais reunidos nos últimos dois meses, e cujo conteúdo fala a favor da preservação do monopólio do comércio exterior, considero meu dever declarar que retiro todas as objeções que fiz em minha carta aos membros do CC dois meses atrás”.

No dia 18 de dezembro de 1922 a questão foi finalmente rediscutida, sem a presença de Lenin, no Pleno do CC. A resolução de outubro, que flexibilizava o monopólio, foi anulada por ampla maioria. Sem se deter nessa vitória temporária, Lenin exigiu que a questão fosse analisada pelo XII Congresso, marcado para abril de 1923. No dia 21 de dezembro, escreve a Trotski:

“Parece que conseguimos conquistar as posições sem dar nenhum tiro, com um simples movimento de manobra. Proponho não deter-se, continuar a ofensiva e submeter, portanto, ao congresso do partido a questão do reforço do comércio exterior e as medidas para seu melhoramento. Declarar isto à fração do Congresso dos Soviets. Espero que não faça objeções e que não recuse a tarefa de fazer o informe à fração”.

Finalmente, o XII Congresso do PCR(b), ocorrido entre os dias 17 e 25 de abril de 1923, confirmou a inviolabilidade do monopólio do comércio exterior. A primeira batalha de Lenin contra Stalin havia sido ganha.

Segunda batalha: a Inspeção Operária e Camponesa

A Inspeção Operária e Camponesa (IOC) foi fundada em 1920, por iniciativa de Lenin, com a perspectiva de ser um órgão de controle por parte da população trabalhadora sobre o aparelho de Estado. Lenin partia do pressuposto de que o Estado soviético tinha um funcionamento burocrático, torpe e ineficiente, parte da herança czarista. Para dotar a Rússia soviética de um aparelho estatal eficiente, era preciso trabalhar em duas direções: por um lado, aplicar na máquina governamental os métodos mais modernos de administração e gerenciamento utilizados nos países capitalistas adiantados. Por outro, incorporar às tarefas administrativas parcelas cada vez maiores da população (sobretudo as mulheres, destacava Lenin). Nesse sentido, a Inspeção Operária e Camponesa deveria ser o instrumento desse processo de modernização e democratização do Estado.

Porém, em pouco tempo, o trabalho da Inspeção Operária e Camponesa começou a desagradar Lenin. A Inspeção se viu rapidamente tomada pela corrupção e pelo carreirismo, além de ser extremamente ineficiente em suas funções básicas de controle, orientação, seleção e treinamento de quadros administradores. As nomeações aos cargos de responsabilidade do Estado eram feitas não segundo um critério de mérito e competência, mas de afinidade política, criando entre os altos funcionários do governo relações de dependência e lealdade pessoais. O mentor intelectual e condutor prático de todo esse jogo com a máquina estatal era Stalin, chefe formal da IOC. Também não se podia falar de uma verdadeira integração das massas operárias e camponesas às questões da administração estatal. Ao contrário, a Inspeção se burocratizou antes mesmo de cumprir minimamente a tarefa para a qual fora criada.

Se, por um lado, o Estado soviético se burocratizava e se degenerava a passos largos, por outro, o Partido Bolchevique, apesar de também inúmeros problemas, ainda se mantinha como um depositário da estratégia, da moral e do programa revolucionários. Seus organismos de controle interno, sobretudo a Comissão Central de Controle, eleita pelo congresso do partido e responsável apenas perante este último, gozavam de ampla autoridade e respeito entre as massas partidárias e não partidárias. Essa contradição, agravada pelo relativo esvaziamento dos soviets, fruto da Guerra Civil e do já adiantado estado de isolamento internacional da Rússia revolucionária, levou Lenin a formular uma proposta bastante ousada: a fusão da Inspeção Operária e Camponesa (um órgão estatal) e da Comissão Central de Controle (um órgão partidário) em um único organismo, estatal e partidário ao mesmo tempo. A proposta era um duro golpe contra Stalin e seus métodos, além de uma ameaça a toda a burocracia estatal, que desejava permanecer fora do alcance dos organismos disciplinares do partido. Com a fusão entre a IOC e a CCC, Lenin buscava colocar diretamente nas mãos do partido, de seus quadros mais capazes, mais honestos e com maior autoridade, a tarefa de modernizar e democratizar a administração soviética.

Evidentemente, a proposta continha perigos. O principal deles era a absorção direta e sem mediação das funções do Estado pelo partido, ou seja, o perigo de um impulso ainda maior à burocratização. De qualquer forma, ao contrário do que reza a lenda liberal, a proposta de Lenin tinha uma motivação anti-burocrática: modernizar o aparelho de Estado como forma de retardar o crescimento da nomeklatura. Lenin sabia que a fusão entre um órgão estatal e um órgão partidário era uma medida arriscada. Ele mesmo alerta sobre isso em seus textos. Mas era preciso ganhar tempo, e a dura realidade não oferecia nenhuma outra possibilidade. Quando o proletariado alemão, francês, inglês ou norte-americano chegasse ao poder, prestaria sua ajuda à Rússia soviética, inclusive em termos de administração estatal, e essas contradições seriam superadas. Quando isso acontecesse, a “norma programática” (separação entre Estado e partido) seria restabelecida. Até lá, tratava-se de mais uma situação de exceção, imposta por condições também excepcionais. Foi somente mais tarde, já sob o stalinismo, com sua estratégia nacionalista, de construção de uma sociedade isolada e autossuficiente, que a fusão do Estado com o partido, de uma medida tática parcial e temporária, não desejável, porém necessária, se transformou em um princípio histórico permanente e inabalável.

Em 1924, já depois da morte de Lenin, a IOC começou um processo de fusão com a CCC. Porém, sob Stalin, a reorganização do aparelho de Estado foi feita no sentido de proteger a burocracia, não de combatê-la. Formalmente, a proposta de Lenin havia sido aprovada, mas a democratização da administração estatal permaneceu como letra morta. A segunda batalha foi vencida por Stalin.

Terceira batalha: a questão georgiana e o chauvinismo grão-russo [5]

Desde a tomada do poder pelos soviets, em outubro de 1917, a questão nacional revestiu-se de enorme importância para a sobrevivência da jovem república proletária. A aplicação na prática do princípio da autodeterminação dos povos, ou seja, a construção de uma união livre e democrática entre as várias dezenas de nações que constituíam o antigo império dos czares era um dos maiores desafios do governo bolchevique.

Segundo a concepção formulada por Lenin ainda antes da vitória da revolução, a política marxista para as nacionalidades oprimidas, ao mesmo tempo em que deveria garantir a autodeterminação e a maior liberdade possível, não poderia se confundir com o “independentismo” pequeno-burguês e exacerbado. O equilíbrio entre esses dois polos da mesma política (autodeterminação e luta pela unidade multinacional) sempre foi uma questão bastante delicada.

A forma encontrada para a resolução dessa contradição foi a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, na qual todas as repúblicas constitutivas deveriam ingressar livremente, e da qual poderiam se retirar a qualquer momento, ao mesmo tempo em que deveria ser garantida a completa isonomia de direitos entre todas as nacionalidades, igualdade de representação nos organismos dirigentes da União etc. Apesar desse acordo mais geral em relação à formação da URSS, a realização prática da União enfrentou a resistência de vários dirigentes comunistas da Geórgia e do Azerbaidjão, que haviam tomado o poder na região em 1921, e encaravam as medidas de unificação como a reprodução da velha opressão nacional czarista, desta vez exercida em nome do socialismo. Nas discussões dentro do Bureau Político do CC do PCR(b), Stalin era partidário de uma linha mais dura em relação ao assunto, enquanto Lenin insistia na necessidade de trabalhar o tema com a maior cautela possível, a fim de evitar qualquer atrito de caráter nacional.

Em novembro de 1922, o Comitê da Região da Transcaucásia [6], órgão subordinado ao CC do PCR(b) e responsável pelas questões relativas à região, enviou à Geórgia o também georgiano Sergo Ordjonikidze para negociar os termos do acordo da União. Acreditava-se que isso iria facilitar as conversações, mas ocorreu exatamente o oposto. Ordjonikidze, que respondia diretamente a Stalin, decidiu mostrar serviço ao aparato, e adotou uma postura extremamente dura no encontro com os georgianos. À medida que as negociações não avançavam, o clima foi se tornando cada vez mais tenso até que, em dado momento, Ordjonikidze agrediu fisicamente um membro do CC do PC da Geórgia, acertando-lhe um soco no rosto. O caso, sem precedentes na tradição bolchevique, foi motivo de uma investigação especial conduzida diretamente por Stalin e Dzerjinski, (um georgiano e o outro polonês, respectivamente). Dzerjinski, enviado à Geórgia para investigar o incidente in loco, minimizou completamente em seu relatório a agressão cometida por Ordjonikidze, ao mesmo tempo em que condenou impiedosamente o “nacionalismo” dos dirigentes georgianos, responsabilizando-os, de fato, por tudo. Segundo testemunhas, este grave incidente abalou profundamente Lenin e o alertou para as tendências nacionalistas grão-russas que se desenvolviam na cúpula do partido e no aparelho de Estado, como parte da terrível herança czarista. “Sabe-se que os não-russos russificados sempre exageram para o lado de suas tendências puramente russas”, lamentou-se Lenin em seu testamento político algumas semanas depois, em clara referência a Stalin, Dzerjinski e Ordjonikidze, todos de nacionalidade não-russa e envolvidos em casos de opressão nacional.

Para Lenin, este incidente era tão sério que ele estabeleceu secretamente (ou seja, sem o conhecimento do Bureau Político) contato com os dirigentes georgianos agredidos por Ordjonikidze, a fim de solidarizar-se com eles e preparar a luta política contra Stalin e Dzerjinski dentro do CC. Paralelo a isso, também secretamente, enviou documentos e evidências sobre o caso a Trotski, com quem contava para que defendesse seus pontos de vista no Comitê Central. Infelizmente, o terceiro derrame o impossibilitou de iniciar essa luta.

A “questão georgiana” nunca foi completamente resolvida, apenas contornada. Em dezembro de 1922, a URSS foi fundada, e a Armênia, o Azerbaidjão e a Geórgia ingressaram coletivamente enquanto República Socialista Federativa Soviética Transcaucasiana. Em 1936, a RSFST foi dissolvida e suas repúblicas constitutivas ingressaram individualmente na URSS. A terceira batalha entre Lenin e Stalin acabou não acontecendo. Exatamente por isso, pode-se considerar que Stalin foi vitorioso.

Não há destino! A história é arena de luta.

Passados 100 anos desde Outubro, é fácil julgar os “erros dos bolcheviques” e fazer previsões sobre o passado (“É evidente que ‘x’ daria em ‘y’! Como os bolcheviques puderam não ver isso?”). Mas esquece-se com isso que a história é arena de luta. E não apenas em sentido figurado, mas também literalmente: a luta contra 14 exércitos invasores, contra a fome, a sabotagem, a herança de atraso e incultura. Lenin entendia isso. E lutou, com todas as suas forças, até o fim. Jamais acreditou que a construção do socialismo estava assegurada simplesmente porque os bolcheviques estavam no poder. A última carta escrita por ele data do dia 6 de março de 1923, e é justamente um telegrama de solidariedade aos dirigentes georgianos agredidos por Ordjonikidze: “Queridos camaradas! Sigo com todo coração seu problema. Estou indignado com a brutalidade de Ordjonikidze e com a conivência de Stalin e Dzerjinski. Preparei para vocês umas notas e um discurso. Com estima, Lenin”.

No dia 10 de março de 1923, o estado de saúde de Lenin piorou drasticamente, o que o impediu de preparar as notas e o discurso referidos. Ele permaneceu com a fala e os movimentos do corpo totalmente paralisados por quase 1 ano, vindo a falecer no dia 21 de janeiro de 1924. Lenin lutou, mas Stalin venceu.

Aos juízes do século 21, sentados em suas confortáveis cadeiras, que julgam o regime leninista por suas semelhanças formais com o período de Stalin, e emitem monocraticamente seus vereditos sobre a suposta continuidade entre estes dois governos tão diferentes, de fato opostos em todos os sentidos, deixamos as palavras do historiador trotskista francês Pierre Broué, palavras muito mais humildes, muito mais condizentes com o verdadeiro espírito da história:

“Estava no komitetchik [7] o gérmen do apparatchik [8]? Pode o pensamento dialético de Lenin engendrar a escolástica de Stalin? É o bolchevismo o pai legítimo do stalinismo? Para podermos responder a todas estas perguntas sem qualquer dúvida, a roda da história teria que ter parado de girar, e certamente as respostas mais categóricas pertencem àqueles que pensam que ela efetivamente se deteve, junto com eles próprios. Na realidade, em qualquer de suas etapas, a história está cheia de encruzilhadas contraditórias. Sem dúvida, no fenômeno his­tórico chamado ‘bolchevismo’ se encontravam em embrião não somente Stalin e seus gigantescos retratos, seus burocratas e suas polícias, suas ladainhas e seus cri­mes, as confissões vergonhosas, as torturas, o tiro na nuca e o cadáver que cai dos sótãos de Lubianka, mas também os intrépidos condenados dos tribunais do czar, os incansáveis militantes clandestinos, os combatentes da guerra civil que se agar­ravam às suas metralhadoras, os “santos” da Cheka [9] a que se refere Victor Serge, os construtores do futuro, os edificadores de fábricas e ferrovias na Sibéria, os ve­lhos bolcheviques irredutíveis e os jovens que morreram torturados por defender suas convicções”. [10]
Notas:
[1] Uma versão modificada deste artigo foi publicada como prefácio ao livro Lenin: Últimos escritos e Diário das secretárias (Editora Sundermann, 2012).
[2] A importância do monopólio do comércio exterior para um Estado operário se comprovou empiricamente, diga-se de passagem, pela negativa, ou seja, no processo de restauração capitalista na URSS e em Cuba. Nos dois países, uma das primeiras medidas restauracionistas foi a abolição desse mecanismo com vistas a abrir o caminho ao capital financeiro internacional. No caso da URSS, em junho de 1987, o Pleno do CC do PCUS retirou poderes da Gosplan, responsável pela elaboração dos planos quinquenais, e dissolveu oficialmente o Ministério do Comércio Exterior, permitindo às empresas atuar livremente no mercado mundial. Em Cuba, o caso menos conhecido e mais polêmico, o processo foi idêntico: em 1994 o governo Castro retirou do Ministério do Comércio Exterior (Mincex) a prerrogativa das operações de importação e exportação. Um ano depois, em 1995, a Junta Central de Planificação foi dissolvida.
[3] Partido Comunista da Rússia (bolchevique).
[4] Todas as citações são do livro Lenin: Últimos escritos e Diário das secretárias.
[5] O termo tem origem no fato de que o Império Russo era formado por três Rússias: a Grande Rússia (atual Rússia), a Pequena Rússia (atual Ucrânia) e a Rússia Branca (atual Bielorrússia), além dos povos asiáticos e do Cáucaso. A política nacional czarista consistiu sempre no domínio dos “grandes russos” (grão-russos) sobre todos os outros povos.
[6] Por “transcaucásia” se compreende a planície situada ao sul da cordilheira do Cáucaso e limitada pelo mar Negro a oeste, pelo mar Cáspio a leste e pelo Irã e Turquia ao sul. A russificação da região se deu a partir do final do século 18 e enfrentou grande resistência das tribos e povos locais.
[7] Komitetchik: Em russo “homem do comitê”, dirigente interno do partido bolchevique no período pré-revolucionário.
[8] Apparatchik: Em russo, “homem do aparato”, burocrata, funcionário partidário ou estatal do período pós-revolucionário.
[9] Cheka: Sigla em russo para “Comissão Extraordinária de Luta contra a Contrarrevolução e a Sabotagem”.
[10] Broué, Pierre. O partido bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014. p. 511-512.