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BRASIL

Crítica ao texto da companheira Glória Trogo, do MAIS

Por: Bruno Magalhaes*, de São Paulo, SP
*militante do MES/SP

O texto “Luciana Genro e a Lava Jato”, escrito pela companheira Glória Trogo, do MAIS, e publicado no Esquerda Online no dia 17 de abril, utiliza-se de desinformação para requentar um debate de cinco anos atrás e chama atenção mais por aquilo que esconde do que por aquilo que escreve. A “novidade” que justifica o texto é uma nota do jornal Valor Econômico utilizada pelo MBL contra Luciana Genro, cuja credibilidade é derrubada no terceiro parágrafo do próprio texto, mas que serve de ponte para outro tema (esse nada novo e amplamente debatido desde 2008). Na verdade, o texto “Luciana Genro e a Lava Jato” quer debater o financiamento dos revolucionários e essa crítica procura dar respostas às duas questões, a luta contra a corrupção e o financiamento. Mas antes é preciso ressaltar esse método de esquentar e nublar o debate, que só atrapalha o diálogo.

Apesar da falta de materialidade, o trecho da notícia desmentida é reproduzido com destaque e serve de justificativa para atacar a operação Lava Jato e sua defesa. Escreve a companheira Glória:

“É o mecanismo da Lava Jato: uma delação vira prova, vai para a grande mídia e torna-se condenação sumária. Que a direita considere este procedimento legítimo não é surpresa. A novidade é que há meses o MES, com seu apoio irrestrito à Lava Jato, vem legitimando o mesmo método do qual agora é vítima.”

Primeiramente, para dizer que a “direita considera os procedimentos da Lava Jato legítimos” é preciso excluir todos os partidos burgueses dessa definição de direita. Todos os partidos da burguesia estão operando simultaneamente para acabar ou amenizar com os procedimentos e investigações, isso é amplamente divulgado inclusive na própria mídia burguesa e a formulação simplista de que “toda a direita” apoia a Lava Jato é ingênua, como acreditar em horário eleitoral. A hipótese de um “acordão” é forte e mobiliza PT, PSDB, PMDB e todo o resto da casta política, tendo Nelson Jobim como um dos seus operadores destacados.

Infelizmente, na lógica da esquerda contrária à Lava Jato, o cenário do acordão e da estabilidade é melhor do que o atual momento de impasse e instabilidade.

O trecho da companheira Glória também sugere que a Lava Jato não tem provas sobre a corrupção do sistema partidário brasileiro. Para nós, elas estão claramente dadas há anos e agitamos isso politicamente também há anos. Luciana não é vítima de nada justamente porque não estabeleceu nenhuma relação de corrupção com nenhuma empresa, e para nós as evidências sobre as ações de uns e outros são claras. O trecho relativiza as evidências de corrupção contra políticos burgueses ao imaginar que de alguma forma Luciana poderia ser “vitima da Lava Jato”. A construção dessa narrativa é o que a burguesia quer, mas se desmancha perante as evidências, conforme a própria companheira Glória reconhece logo depois.

Luciana e o MES fazem a defesa das investigações contra os esquemas de corrupção desde as operações Satiagraha e Castelo de Areia, que foram abafadas pelo próprio Lula em acordo com Gilmar Mendes para salvar o PSDB. A relação direta entre aquelas operações e a Lava Jato diz muito sobre os métodos e contradições das investigações atuais, e o jornalista Luis Nassif já matou essa charada há mais de um ano.

Além disso, o texto da companheira Glória erroneamente nivela a prisão de poderosos declaradamente corruptos com as violações cotidianas dos direitos humanos sobre a população pobre, insinuando que as punições contra políticos corruptos fortalecem as punições contra os criminosos comuns, sendo aparentemente indefensáveis dentro do sistema capitalista. Como o socialismo não está na ordem do dia e não temos dualidade de poder, na prática é uma posição antipopular que soa como música aos ouvidos da burguesia corrupta e não resolve a questão do punitivismo sobre os pobres.

Outro problema do texto está na caracterização de “confiança” na mídia burguesa ou no judiciário. Essa vulgarização da posição do MES seria equivalente a dizer que os companheiros do MAIS “confiam” em Lula quando se propõe a agir em sua defesa, são duas distorções das políticas que desviam o foco sobre o problema central: as investigações. A defesa da Lava Jato não é abstrata, é sim a única forma de defender que as investigações continuem. Esse é outro ponto central que o texto não toca, a defesa da Lava Jato não é confiança e sim exigência de que as investigações vão até o fim e todos corruptos sejam punidos. Exatamente o antigo argumento contra a seletividade, estrategicamente esquecido nos dias de hoje.

A posição paradoxal do MAIS, defender as investigações sem defender a Lava Jato, é como “tentar tirar as meias sem tirar os sapatos” (metáfora de um companheiro). Defender ao mesmo tempo que os corruptos sejam punidos e que a Lava Jato acabe é uma posição centrista que na prática leva a defender que as investigações sejam encerradas e que tudo “acabe em pizza” enquanto não existir o poder soviético. A defesa da anulação das delações e do cancelamento das investigações não é escrita, mas também não é negada, e é sempre esse o ponto final desse debate. O MES, assim como MAS português (organização irmã do MAIS), não tergiversa e defende punição para todos os corruptos e corruptores de forma clara.

Muitos dirigentes de esquerda com posições similares às do MAIS também não conseguem defender o fim da Lava Jato publicamente, muito menos agora que a “polêmica da seletividade” foi superada. Nesse limbo político muitos companheiros são obrigados a um jogo de insinuações que dura enquanto sua política pré-concebida não se encaixar bem na realidade. Quem tem acordo com o texto da companheira Glória deveria defender ativamente o fim da Lava Jato e ter um programa que combine isso com o “novo modelo de investigações” por fora do judiciário. De fato, como isso é impossível materialmente, esse setor se coloca em um labirinto argumentativo.

Como investigar esquemas de desvio e lavagem de dinheiro público por fora das instituições públicas? Essa é uma pergunta chave. Posições como “que os trabalhadores investiguem”, “explicar pacientemente porque o judiciário é burguês” ou similares não têm sentido prático nenhum e são essas posturas que deseducam o povo ao tirar a credibilidade dos revolucionários, que de socialistas passam a profetas. Em uma guerra, uma posição abstrata não serve pra nada e os trabalhadores têm isso mais claro que muitos setores organizados.

Justamente porque o momento político é crítico, e é crítico também pela Lava Jato, não podemos nos dar o luxo do propagandismo. Os trabalhadores não terão paciência para nossas longas explicações se não apontarmos saídas concretas, o povo está amplamente indignado com a situação nacional e as últimas manifestações do MBL e Vem Pra Rua provaram que o apoio político a esse setor é menor do que se alardeava.

Toda a casta política está na berlinda e tenta, ao mesmo tempo, salvar a pele e aprovar reformas impopulares sob um momento de crise econômica brutal. Depois de décadas de controle, até o PSDB sofre desgaste de forma que a mídia burguesa seja obrigada a mostrar denúncias contra Alckmin e Aécio (que já está fora do jogo) em um cenário onde nenhum partido burguês possui credibilidade. É um momento aberto de disputa que trás consigo enormes possibilidades e riscos, onde uma alternativa precisa se construir na concretude das lutas, e esse momento trás a obrigação de debater linhas políticas concretas. Nesse sentido, enquanto o MAIS não resolver seu “paradoxo das meias”, o debate será sempre entre uma posição concreta e outra ideal.

Tudo isso tem muito pouco a ver com o tema central do texto, o financiamento dos revolucionários, mas essa confusão entre os dois temas é instrumental para montar sua argumentação. Novamente citando a companheira Glória:

“Há, entretanto, um debate político muito sério que deve levar a esquerda à reflexão. Receber dinheiro das empresas é o primeiro passo para estabelecer com elas uma relação promíscua. Depois da trágica experiência petista, nos parece óbvio que a independência financeira deve ser um princípio de todas as organizações que têm compromisso com a revolução socialista.”

Ao estabelecer a regra geral que “receber dinheiro é o primeiro passo para uma relação promiscua” para a análise desse caso, a companheira Glória ignora solenemente a troca de e-mails entre Luciana e o executivo Alexandrino e constrói uma narrativa que inverte a realidade. O que Luciana fez foi justamente o contrário da relação promíscua “natural” defendida no texto, e isso não é dito. Se o problema real fosse “independência financeira”, a política do MES seria atrelada à política dos financiadores, mas na verdade Luciana é hoje uma das poucas vozes de esquerda a favor da punição desses corruptores. Outro paradoxo: o MAIS na prática defende a liberdade para os corruptos (através do fim da Lava Jato) enquanto critica uma hipotética “falta de independência” justamente de quem defende arduamente a prisão desses mesmos corruptos.

De qualquer forma, se é quase natural que uma organização política se corrompa pelo acesso a recursos financeiros, a burocratização de estados de trabalhadores é inevitável. A burocratização petista teve início muito antes da chegada ao governo e sua causa era política, relacionada a uma estratégia de conciliação de classes que foi também a base para o estabelecimento das relações corruptas próprias e hoje explícitas. Curiosamente, não é Luciana Genro quem cogita a defesa de Lula em determinadas circunstâncias, nem é Luciana Genro que considera o enriquecimento de ex-sindicalistas através das consultorias e fundos de pensão um “mal menor”.

Por isso, o debate deve se dar pela política. A qual política interessa determinada tática? Quais suas contradições? Vale a pena? Essas são as perguntas para encarar a luta, para viabilizar de forma concreta seu projeto na realidade. O debate sobre o financiamento eleitoral em 2008 esconde a principal vitória do PSOL nas eleições daquele ano, justamente em Porto Alegre, e mostra como essa forma de polêmica é retórica e arma pouco a luta. Segundo a lógica presente no texto da companheira Glória, a pura afirmação de princípios sem avanço político é melhor do que o avanço político contraditório sobre a realidade, e aí vemos o mesmo problema “ideia x ação concreta” que aparece a todo momento na questão da Lava Jato.

Mas, de longe, o pior erro no texto está na caracterização da Rede Emancipa como uma simples “colateral” do MES. A relação entre as organizações políticas e os movimentos é algo que os companheiros do MAIS precisam desenvolver de forma diferente do que fizeram nos últimos anos em sua organização anterior. A renúncia à construção de iniciativas mais amplas e a crítica aos cursinhos populares feitas pelo PSTU deturpam a visão sobre esse caso. Quando Luciana atua em nome do Emancipa de Porto Alegre ela o faz em prol do movimento. Vale lembrar que na época a regional do Rio Grande do Sul fazia uma experiência estruturada de forma diferente do restante das regionais da Rede.

Para nós, a experiência é central e nos 10 anos de Emancipa houve um debate político intenso e constante a partir das nossas experiências reais. Tivemos companheiros que defendiam somente o financiamento privado, que defendiam cobrança de mensalidades, que defendiam autofinanciamento total, entre outras posições, e foi o conjunto dessas experiências que construíram os princípios da Rede Emancipa de hoje.

Do Emancipa saíram tanto iniciativas de empreendedorismo como experiências autogestionárias e assim funciona o movimento social, de forma mais ampla do que a abrangência da concepção do MAIS. Equalizar as experiências entre corrente, partido e movimento é um erro crasso. A Rede Emancipa com certeza tem uma referência e uma construção política, mas é um instrumento muito mais amplo do que o texto consegue enxergar. Isso acontece justamente devido ao seu processo de experiências, cujo caminho levou a formulações muito mais ricas para a atualidade.

Por isso é um absurdo o texto não ressaltar que essa experiência aconteceu há mais de cinco anos, sempre foi uma informação pública na página do projeto de então e inclusive foi utilizada pela revista Veja para desgastar Luciana já naquela época. Um jovem militante ao ler o texto pode facilmente interpretar que o financiamento é recente, e essa lacuna no texto é muito “útil” para a construção de uma narrativa que nega a importância de experiências.

Da mesma forma que é “útil” citar o financiamento de Freixo enquanto “esquece” que a Rede Emancipa fez mês passado uma campanha pública de financiamento coletivo muito bem sucedida e possui inúmeras atividades militantes para manter sua independência financeira, que nunca esteve em jogo. A Rede Emancipa nunca dependeu, nem dependerá de nenhuma empresa, partido ou governo, mas também nunca se furtará de construir qualquer experiência que leve seu projeto adiante.

Por fim, a reorganização dos revolucionários precisa se dar através do debate de ações e de um programa concreto para a realidade brasileira, não de receitas abstratas que se utilizam do argumento da “paciência” para se abster de questões centrais da conjuntura. A essência da tarefa revolucionária está em lidar com as contradições do hoje e não apenas em fazer projeções para o futuro, e só vamos criar pontes de fato entre as organizações socialistas quando os temas concretos forem o centro do debate.

Saudações socialistas.

Foto: Asserting | Kandisnky | 1926