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Contra a partidocracia

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por: Valério Arcary, colunista do Esquerda Online

A separação de funções entre o burguês prático e o político profissional não afeta em nada a dominação de classe da burguesia. To­do um mecanismo de mídia e de financiamentos, legalizados ou não, ata os partidos burgueses e os políticos profissionais, individualmente, à burguesia como classe ou a setores e grupos dela. O mecanismo, vez por outra, incorre em desajustes e falhas e pode mesmo entrarem pane. Mas a regra é o funcionamento satisfatório(…)Comumente, ambiciona ser burguês ao mesmo título que seus patrocinadores, dispondo de patrimônio e de padrão de vida equi­valentes aos deles. Afinal, por que deveria o deputado ou ministro se contentar com os vencimentos protocolares, enquanto os empre­sários, cujas causas eles defendem, se fartam de riquezas crescentes?1

Jacob Gorender

Durante décadas escutei dos estudantes a pergunta se o governante x ou y era do bem ou do mal. Assim mesmo. E ser do mal queria dizer algo elementar: ele rouba, ou não?  Dicute-se nos palácios uma reforma política para enquadrar as eleições de 2018, agora que as empresas não poderão mais doar. Vem aí mais uma pizza muito amarga da partidocracia.

E neste domingo a direita convoca às ruas para testar as suas forças. Aproxima-se a data da sentença contra Lula na primeira instância. E Temer está precisando de uma ajudinha das ruas para avançar para a votação da Reforma da Previdência.

Responder ao tema da corrupção passou a ser uma questão central, programática, incontornável para toda a esquerda e deve ser encarada com muita seriedade. Isso significa dizer, incansavelmente, que somos contra a partidocracia. Mas não podemos deixar qualquer confusão entre a nossa crítica à partidocracia e a crítica feita pela extrema direita.

Os conflitos sociais distributivos são invisíveis, porque a compreensão de como funciona a economia é rudimentar, quase infantil. Os níveis de desinformação, ou seja, de ingenuidade política são assombrosos. Claro que parece mais fácil tornar o capitalismo brasileiro mais honesto do que derrotá-lo. Essa ilusão é o núcleo duro do pensamento mágico: tenho medo de represálias do sistema, então não será melhor reformá-lo do que tentar destruí-lo?
Mas, embora seja difícil, esta disputa ideológica contra a inocência é inevitável. O maior problema não são os políticos, mas aqueles que eles representam. São as dezenas de milhares de Marcelo’s Oderbrecht’s que eles representam.

“Ele rouba ou não?”: a pergunta é sempre individualizada. Não se associam os políticos aos partidos. Porque uma peculiaridade brasileira foi a inflação partidária com as legendas de aluguel. Uma “jabuticaba” em estilo bem “macunaíma”: o vale tudo despudorado. A forma partido está, portanto, compreensivelmente, satanizada. Como é muito difícil para o povo discernir o debate político-ideológico, o que prevalece é a relação de confiança pessoal, em diferentes versões mais ou menos “messiânicas”. O “carreirismo político” passou a ser quase uma regra. Essa crise, aliás, atinge também os partidos de esquerda na forma, por exemplo, de mandatos “infinitos”, por décadas.
Para uma maioria dos trabalhadores e da juventude, mesmo com a elevação da escolaridade dos últimos trinta anos, o maior problema do Brasil é, essencialmente, a corrupção dos políticos.

É verdade que os graus de corrupção são muito altos, no mundo inteiro, mas, especialmente, nababescos no Brasil, Isso se explica porque a maioria dos políticos profissionais que representam a classe dominante, em nosso país, não têm origem social burguesa. Embora tenham salários muito altos e outras mordomias, não é por essa via que mudam de classe. Deputados não precisam se inserir na classe média alta: já estão nela. O grande salto é conseguir um entesouramento que permita viver de renda. Mas estes 1% que podem viver de renda são invisíveis aos olhos das massas. Para a grande maioria do povo a classe média alta e a burguesia são uma classe só: são os ricos. Ou seja, o biombo da classe média alta esconde e protege os realmente ricos, que são aqueles que exercem o poder. 
Os profissionais da política precisam, portanto, construir patrimônio o mais rápido possível, para ganhar alguma independência e, sobretudo, segurança. Daí vem a roubalheira.

Mas, esse não é o nosso maior problema, porque não é a causa, é o sintoma. Teremos que repetir mil vezes: não é a corrupção, é a desigualdade social, a exploração de quem vive do trabalho. Dizê-lo com todas as letras produz um choque no senso comum e exige uma longa explicação.

A burguesia brasileira sempre teve problemas com sua representação política. O maior deles tem sido, depois do fim da ditadura, a especialização necessária que impõe a a combinação de duas habilidades que não caminham juntas. A primeira é a capacidade de ganhar votos e ser, eleitoralmente, viável, em um país em que a construção de partidos nacionais com um programa e visão de mundo comum é complicadíssima. A segunda é que essas lideranças tenham capacidade de gestão do Estado. Só muito raramente estas duas qualidades se reúnem na mesma pessoa.

A profissionalização da política evoluiu de forma muito diferente, dependendo das distintas tradições político-culturais de cada país. Em alguns, é estimulada a militância política entre os jovens representantes das classes burguesas, como nos EUA e no Uruguai, por exemplo. Em outros, os “capos” políticos são profissionais quase técnicos, altamente, especializados nos processos eleitorais e na representação parlamentar, mas sem herança burguesa (como na Inglaterra). Quase sempre, no entanto, predomina um modelo misto: burgueses de origem e quadros técnicos.

A burocracia do Estado é, também, quase universalmente, uma especialização de carreira, muito bem remunerada (dentro dos limites de um salário de função pública), mas treinada para exercer as funções técnicas seja qual for o partido de turno. O calcanhar de Aquiles da moderna “partidocracia” burguesa é a irrefreável corrupção. 
De Norte a Sul, passou a ser um tema obrigatório e insolúvel.

A forma partido, uma “invenção” do XIX, conheceu o seu apogeu histórico no século XX. São um canal para traduzir as pressões sociais: como se sabe, não há outra forma de traduzir interesses, senão formulando um programa. Um programa pode ser parcial, e atender a demandas parciais (e pode se expressar através de sindicatos, movimentos, grupos de ação ou iniciativa, ONG’s, etc…), ou pode ser um programa para toda a sociedade, visando a luta pelo poder. Nesse caso, a forma de organização mais eficiente, embora não seja a única, são os partidos. Mas ela hoje vive uma crise, sem precedentes, em quase todos os países: fraudes políticas abjetas (sendo a mais comum, a eleição com um programa, que depois se abandona, solenemente); corrupção crônica (enriquecimento ilícito, financiamentos eleitorais nebulosos, favorecimento empresarial); aventuras pessoais (busca da imunidade parlamentar para encobrir atividades ilegais, acesso ao poder para intermediações empresariais). O fenômeno da crise dos partidos é internacional, e atinge, em diferentes proporções, a representação política de todas as classes.

1 GORENDER, Jacob, Marxismo sem utopia, São Paulo, Ática,1999, p.46