Por Waldo Mermelstein, São Paulo, SP
Foto: Palestinos expulsos pelo mar em Jaffa, Palestina, 1948. Fotógrafo desconhecido.
Neste ano se completam 70 anos da limpeza étnica da Palestina (1947-48) e cinquenta anos da ocupação da Cisjordânia e de Gaza (1967). O estado de Israel parece mais consolidado que nunca como amo e senhor de todo território da Palestina Histórica, tal como definido pelo Mandato da Liga das Nações outorgado à Grã-Bretanha em 1922.
Como outros movimentos de colonização de povoamento, em que grupos de colonos procuram dominar uma região, fundar uma nova pátria e eliminar os habitantes nativos, o sionismo cumpriu várias etapas de acordo com sua força e essa lógica interna inexorável. Em 1947, a ONU votou a Partilha da Palestina, outorgando 51% de sua área para o estado de Israel, representando 1/3 dos habitantes, contra a posição da maioria da população. Israel aproveitou esse momento para realizar em grande medida seu objetivo, expulsando 80 % dos habitantes palestinos de suas fronteiras.
Contou com a cumplicidade da potência imperial dominante na região até pouco depois do final da Segunda Guerra, os britânicos.
A ocupação de toda a Palestina histórica
Em 1967, ao conquistar todo o restante da área da Palestina do Mandato, novamente teve que conviver com uma grande população árabe palestina. E desta vez, a população tinha aprendido a lição de 1947-48 e procurou se manter em suas casas e propriedades, pois sabem que voltar é cem vezes mais difícil. Por mais que Israel tenha estabelecido uma enorme fragmentação dos territórios ocupados, ao colocar cerca de 6 milhões de palestinos sob a sua dominação criou de fato um país binacional. Mas o realizou à imagem e semelhança do regime que tinha implantado em suas fronteiras originais. Os judeus israelenses gozam de privilégios em todos os terrenos, somente possíveis pela férrea dominação militar e por meio de um complicado aparato jurídico. E, claro, a providencial ajuda do grande aliado americano que soma bilhões de dólares ao ano.
A resistência e os Acordos de Oslo
A indomável resistência palestina, em especial nos campos de refugiados, desembocou na Intifada de 1987, o que obrigou Israel a recorrer a negociações. O resultado foram os Acordos de Oslo, assinados em 1993 pela liderança palestina de Yasser Arafat, que mantiveram o domínio israelense, mas concederam uma limitada autoadministração local em áreas da Cisjordânia e de Gaza. Mas as ilusões geradas pelos Acordos se desvaneceram e Israel colonizou com centenas de milhares de colonos a Cisjordânia e não concedeu nenhum espaço real para a chamada Autoridade Palestina, mais além de exercer o papel de polícia de sua própria população. Gaza foi transformada em uma prisão a céu aberto, a maior do mundo, onde Israel pratica um macabro jogo de guerra, periodicamente, bombardeando com todo o seu povo a população. A ONU prognostica que a vida em Gaza será impossível em poucos anos.
Israel começa a perder a luta pelos corações e mentes
Mas esse imenso poderio veio acompanhado de uma perda dramática da aceitação e até do apoio que Israel tinha há décadas no Ocidente, fruto do impacto da tragédia realizada pelo nazismo no Holocausto. A própria vitória de 1967 contra os vários exércitos dos países árabes, as repetidas agressões ao Líbano, a repressão implacável na Cisjordânia e os massacres em Gaza começaram a virar o jogo na opinião pública ocidental, incluídos membros das comunidades judaicas do mundo.
Em 2005, as entidades da sociedade civil palestina lançaram a iniciativa do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) contra Israel, nos moldes do que foi feito contra o regime do apartheid sul-africano. Trata-se de uma luta auxiliar para pressionar do exterior o regime sionista. Uma luta de longo prazo. Pouco a pouco, o BDS foi ganhando corpo, não a ponto de ameaçar Israel, mas expondo seus crimes em público e causando constrangimento no ambiente acadêmico, científico e artístico. Por essas razoes, as iniciativas para criminalizar o BDS proliferam, mas essas são também uma medida do seu êxito. A votação da resolução 2334 do Conselho de Segurança da ONU em dezembro de 2016 condenando as colônias judaicas na Cisjordânia foi uma consequência desta nova realidade.
A nova ofensiva de Israel e uma declaração inédita de um organismo da ONU
A posse de Trump deu mais ânimo para o governo israelense de aumentar suas medidas contra os palestinos, nomeadamente uma lei que legaliza assentamentos anteriormente ilegais segundo a própria lei israelense, ameaças contra Gaza, contra os apoiadores do BDS (ameaçados de não terem sua entrada autorizada no país) e o incremento da demolição de casas e da expropriação de terras palestinas.
Na última semana, uma decisão sem precedentes de um organismo da ONU foi adotada. Trata-se do relatório “Práticas israelenses em relação ao povo palestino e a questão do apartheid”, encomendado e adotado pela Comissão Econômica e Social da ONU para a Ásia Ocidental e publicado em Beirute.
Os autores são críticos das políticas israelenses, Virginia Tilley, professora de ciências políticas da Universidade Southern Illinois e por Richard Falk, ex-relator especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos e professor emérito de direito internacional da Universidade de Princeton.
A reação foi fulminante por parte do governo israelense e de seus patrocinadores, em particular do governo americano. O Secretário-Geral da ONU, Antônio Guterres, pediu a retirada do relatório. A presidente da Comissão, Rima Khalaf, dignamente, recusou-se a fazer isso e renunciou ao cargo.
Pela relevância das conclusões do texto, adotando as posições históricas apresentadas pelo movimento e pelos historiadores palestinos, traduzimos os trechos que resumem as conclusões sobre a organização do estado de Israel, em suas fronteiras de 1948, mais além da crítica mais conhecida ao tratamento dado aos palestinos dos territórios ocupados e aos refugiados. Somente compreendendo as bases de organização do estado sionista se pode entender o tipo de regime e política de opressão e desapropriação sistemáticas nesses territórios. O segredo da política israelense encontra-se em seu próprio modelo de sociedade.
Extrato do Relatório da Comissão da ONU para a Ásia Ocidental
“A escolha das evidências está orientada pela Convenção sobre o Apartheid, que estabelece que o crime de apartheid consiste em atos desumanos específicos, mas que tais atos adquirem o status de crimes contra a humanidade somente se servirem intencionalmente aos propósitos de dominação racial. O Estatuto de Roma especifica em sua definição a presença de um ‘regime institucionalizado’ a serviço da ‘intenção’ de dominação racial. Já que o “proposito” e a intenção estão nos fundamentos de ambas as definições, este relatório examina fatores que ostensivamente separados da dimensão palestina – especialmente, a doutrina do Estado judaico estabelecida pelas leis e pelo desenho das instituições de estado israelenses – para estabelecer mais além de qualquer dúvida a presença de tal propósito fundamental.
[O fato que] o o regime de Israel está desenhado para este propósito ficou evidente no corpo de leis, das quais somente algumas são discutidas no relatório por razões de escopo. Um exemplo proeminente é a política de terras. A Lei Básica de Israel (Constituição) determina que a terra controlada pelo Estado de Israel, pela Autoridade de Fomento Israelense ou pelo Fundo Nacional Judaico não poderão ser transferidas de nenhuma forma, colocando sua administração permanentemente sob sua autoridade. A Lei de Propriedade Estatal de 1951 prevê a reversão da propriedade (inclusive terras) para o Estado de todas as áreas ‘em que se aplique a lei do Estado de Israel’. A Autoridade de Terras de Israel (ILA) administra as terras do Estado, que abrangem 93 por cento das terras dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas de Israel e que são, por lei, vedadas ao uso, fomento ou posse por não-judeus. Essas leis refletem o conceito de ‘propósito púbico’ tal como expresso na Lei Básica. Essas leis podem ser modificadas pelo voto do Knesset (parlamento), menos a Lei Básica: o Knesset proíbe qualquer partido político de questionar esse propósito público. Efetivamente, a legislação israelense torna ilegal a oposição à dominação racial.
A engenharia demográfica é outra área que serve à política a serviço do propósito de manter Israel como um Estado Judaico. A mais conhecida é a lei israelense que concede aos judeus de todo o mundo o direito de ingressar em Israel e obter cidadania israelense independentemente do país de origem ou possam, ou não demonstrar vínculos com Israel-Palestina, ao mesmo tempo em que recusa qualquer direito comparável dos palestinos, incluindo aqueles lares ancestrais documentados no país. A Organização Sionista Mundial e a Agência Judaica estão investidas de autoridade legal como agências do Estado de Israel para facilitar a imigração Judaica e servem preferencialmente aos interesses dos cidadãos judaicos em temas desde uso da terra ao planejamento do desenvolvimento público e outros temas considerados vitais para a definição do estado Judaico. Algumas leis que envolvem a engenharia demográfica se expressam em uma linguagem em código, tais como aquelas que permitem que os conselhos judaicos rejeitar os pedidos de residência de cidadãos palestinos. A lei israelense em geral permite que os cônjuges de cidadãos de Israel que se modem para Israel, mas proíbe de forma singular essa opção no caso dos palestinos dos territórios ocupados ou fora de suas fronteiras. Em uma escala mais ampla, é uma questão de política de Israel rejeitar o retorno de qualquer refugiado ou exilado palestino (que totalizam cerca de seis milhões de pessoas) para o território sob o controle israelense.
Dois atributos adicionais de um regime sistemático de dominação racial devem estar presentes para qualificar o regime como uma instância de apartheid. O primeiro envolve a identificação das pessoas oprimidas como pertencentes a um ‘grupo racial específico’. Este relatório aceita a definição de ‘discriminação racial’ feita pela Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial como ‘qualquer distinção exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor ou origem nacional ou étnica que como propósito ou efeito o de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições iguais, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos terrenos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública’. Nessas bases, este relatório considera que no contexto geopolítico da Palestina, judeus e palestinos podem ser considerados ‘grupos raciais’. Além disso, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial é citada de forma expressa na Convenção sobre o Apartheid.
O segundo atributo é a delimitação e o caráter desse grupo ou grupos envolvidos. O status dos palestinos como um povo com direito a exercer seu direito à autodeterminação foi juridicamente estabelecido, de forma fidedigna pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) em seu parecer consultivo de 2004 sobre as Consequências Jurídicas da Construção de um Muro no Território Ocupado Palestino. Nessas bases, o relatório examina o tratamento dado por Israel ao povo palestino como um todo, considerando as distintas circunstâncias da fragmentação geográfica e jurídica do povo palestino como uma condição imposta por Israel. ”
Ânimo e munição jurídica e moral para o BDS
O relatório pede ainda que os movimentos sociais devem “realizar os mais amplos esforços para as iniciativas de boicote, desinvestimento e sanções entre os atores da sociedade civil”. Claro que o relatório não tem caráter resolutivo e muito menos obrigatório, mas é um precedente muito importante para animar a luta de resistência dos palestinos pelos seus direitos, como definidos pelo BDS:
Fim da ocupação e da colonização dos territórios palestinos e desmantelamento do Muro da Cisjordânia
Reconhecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos palestinos de Israel à igualdade completa
Respeito, proteção de promoção dos direitos dos refugiados palestinos de retornar a suas casas e propriedades como estipulado pela Resolução 194 da ONU
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