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O que é ser marxista no século XXI?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online

Ontem um jovem me perguntou se eu era luxemburguista, e eu respondi que sim. Ele ficou surpreso. Eu tentei explicar que, em minha modesta opinião, ser marxista no século XXI, significa ser leninista, trotskista, luxemburguista, gramsciano, e não considero contraditório reivindicar todos os líderes da esquerda da II Internacional.

É verdade que minha identidade principal é o trotskismo e que tenho evitado, em geral, o termo luxemburguismo, porque já foi usado de forma abusiva, até pejorativa, na verdade, embora ele mereça ser utilizado. Foi Stalin quem encabeçou uma campanha de difamação de Rosa Luxemburgo, em um artigo sinistro, “Problemas da História do Bolchevismo”, em que reescrevia a história de acordo às suas conveniências, e no qual decretou, contrariando as mais incontroversas evidências, que Rosa seria responsável pelo imprescritível pecado teórico da revolução permanente e que Trotsky, na verdade, teria plagiado Luxemburgo.

Isaac Deutscher, em O Profeta Armado, o primeiro volume de sua trilogia biográfica de Trotsky, reivindica, na condição de membro fundador do PC polonês, organização herdeira, também, da influência de Rosa e de Leo Jogiches, que o seu partido teria nascido tendo como programa a concepção sobre as tendências históricas dos processos revolucionário expressas na teoria da revolução permanente.

De fato, podemos encontrar em Rosa uma identificação do papel do proletariado na revolução democrática contra o Czarismo em Greve de Massas, Partido e Sindicatos. Mas, Rosa resumiu as suas análises a estabelecer os vínculos entre as lições da revolução russa de 1905, e as lutas na Alemanha, tomando a influência dos partidos marxistas na Rússia como uma refração dialética do peso da Internacional no Ocidente, que por sua vez seria uma refração do grau de maturidade da luta de classes, na própria Alemanha. Um exemplo irretocável de análise dialética, em que o subjetivo se transforma em objetivo, em que o atrasado ultrapassa o avançado, e vice versa. Internacionalista até à medula, portanto.

O estalinismo no seu afã de destilar uma doutrina oficial “quimicamente pura”, uma vulgarização, essencialmente falsificada, do pensamento teórico-político de Lênin, o famoso “marxismo-leninismo”, precisou inventar as mais mirabolantes falsificações históricas. Entre elas surgiu a duradoura versão dos erros de Rosa, que segunda esta tradição, teria sido do princípio até o fim de sua vida política, sectária diante da questão nacional, objetivista e catastrofista em relação à natureza da época e do imperialismo e, portanto, espontaneísta em relação ao protagonismo revolucionário dos trabalhadores, e centrista nos problemas de organização, em suma, com fortes tendências ao oportunismo.

Toda fraude intelectual precisa se apoiar em algum elemento de verdade para ser minimamente plausível. Assim não foi difícil descobrir que Rosa manteve durante anos, e em torno aos mais variados temas discussões acesas com Lênin: e essa seria a prova definitiva e categórica dos desvios do luxemburguismo. A autoridade de Lênin foi assim manipulada ao serviço dos amálgamas mais aberrantes, e em defesa do monolitismo como virtude. Assim como Trotsky, na verdade Rosa manteve polêmicas com quase todos os marxistas mais influentes do seu tempo, umas de maior e outras de menor importância. Esse aliás era o saudável procedimento dos revolucionários que foram seus contemporâneos sem excepção: submeter todas as idéias ao severo exame da crítica.

A esquerda da Segunda Internacional reuniu por muitos anos, na forma de um movimento que depois esteve, no fundamental, comprometido com a fundação da Terceira, um punhado notável de marxistas das mais diferentes nacionalidades, que debatiam de forma aberta e pública os principais problemas que afetavam os destinos do movimento operário do seu tempo: Racovsky era romeno, Mehring era alemão, Sneevliet era holandês, Gramsci era italiano, Rosa e Radek judeus-poloneses, Joghiches era lituano, Lênin russo, Trotsky judeu-ucraniano: a lista é ao mesmo tempo longa e impressionante, não só pelo talento extraordinário de uma geração excepcional, mas pela pluralidade de experiências nacionais diferentes, enfoques teórico-metodológicos diversos, e pelo impressionante volume de trabalhos, de uma produtividade incrível.

Todos discutiram seriamente uns com os outros e os alinhamentos variaram permanentemente dependendo dos temas em pauta. Tudo isso está amplamente documentado à exaustão. Mas é mais simples implodir um edifício de uma vez só do que demolir andar por andar. A desqualificação da obra de Rosa assumiu assim a forma de uma campanha contra o Luxemburguismo. As deformações simplificadoras deixaram uma influência perene. A recuperação do pensamento de Rosa está ainda por ser feito em grande medida, e nesse sentido, poderá ser reconhecido o luxemburguismo, como uma sensibilidade, entre outras, de uma corrente política heterogênea , o marxismo revolucionário do início do século.