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CULTURA

A Bela e Fera: Sonhar é preciso

Por: Hyago Brayhan, de Brasília

E finalmente chegou aos cinemas a aguardada produção de “A Bela e a Fera” em live-action (termo utilizado no cinema para definir os trabalhos que são realizados por atores reais). O esperado filme gerou muita expectativa desde a saída do primeiro trailer, que se tornou o mais visto da história. Com direção de Bill Condon (Chicago e A Saga Crepúsculo: Amanhecer 1 e 2) a película gerou polêmica nos EUA devido ao boicote de alguns cinemas americanos, que se recusaram a exibir o filme por conta dos personagens gays que têm destaque na produção.

O filme tem uma ótima direção de arte, grande elenco e toda a nostalgia de reviver em carne e osso um dos maiores clássicos da Disney. A animação homônima de 1991 foi tão bem sucedida na década de 90 que concorreu ao Oscar de melhor filme. Por sua vez, “A Bela e a Fera” de 2017 mostra mais uma vez uma atualização do estúdio. E isso é muito bom. Não é novidade, por exemplo, que o estúdio sempre teve fortes personalidades LGBTs no seu comando. Entretanto, isso não se retratava em suas produções de maneira explícita.

Howard Ashman, por exemplo, foi o responsável por ressucitar a Disney de uma grande crise na década de 90 com as famosas produções “A Pequena Sereia”, “A Bela e a Fera” e a “Alladin”. Gay e descendentes de judeus, Ashman se tornou um dos gênios de Hollywood e recebeu muitos prêmios pelo seu incrível trabalho, dentre eles Oscars, Globos de Ouro e até mesmo Grammys pelas suas onipresentes canções nos clássicos da Disney.

Ashman era tão genial que roteirizou, produziu e escreveu músicas para “A Pequena Sereia”. Ele também compôs para “Aladdin”. No desenho “A Bela e a Fera” de 1991, esse gênio escreveu músicas e ficou responsável pela produção executiva. Entretanto, Ashman, como muitos LGBTs da década de 90, morreu de Aids oito meses antes do lançamento do filme. Quem inclusive recebeu o Oscar que Ashman ganhou por “A Bela e a Fera” foi o seu marido. A doença foi responsável por dizimar milhões de LGBTs, que foram assassinados por uma sociedade preconceituosa que achava que o vírus só atingia essas pessoas. E eu digo assassinato, pois a questão do HIV/AIDS só foi se tornar uma preocupação social quando deixou de ser uma questão só de LGBTs e daí por diante os governos e a sociedade começaram a combatê-la.

Alguns pensam que essa nova virada liberal do ponto de vista dos valores do estúdio começou com a animação “Frozen”. Na verdade, isso vem desde a produção original de “A Bela Fera” como um ensaio e depois um giro definitivo em “Mulan” (1998), que inclusive é uma das próximas produções em live action do estúdio. Do ponto de vista da discussão moral, “A Bela e a Fera” de agora apresenta um posicionamento político mais forte do que a produção original. Afinal de contas, o mundo mudou e 1991 foi há 26 anos.

A Bela, personagem principal, é agora uma mulher forte e inteligente de origem parisiense que não se identifica com a vida provinciana. Uma das cenas mais emocionantes tem haver com esse insight. Bela é escrachada pela a população de sua vila por ensinar uma menina a ler e tem sua grande invenção (uma máquina de lavar) destruída. Todavia, a produção não para por aí. As pessoas negras são destaque também. Elas não são apenas os servos nessa utopia, mas as responsáveis pelo conhecimento e participam de todo o desbunde estético e musical de maneira graciosa. Já a questão da homossexualidade é um importante reconhecimento. Afinal de contas, se não fosse um gay, a Disney não teria saído da ruína e “A Bela e a Fera”, como outras animações aqui já citadas, nem teriam existido.

Do ponto de vista dessas motivações, a evolução do roteiro não para só por aí. A cena na qual o Príncipe se torna Fera não trata a Bruxa como um ser do mal. A Bruxa não é a vilã do filme, mas a personagem responsável por dar o gatilho ético do roteiro. Ela enfeitiça o príncipe por conta da soberba e egocentrismo do mesmo. Esses aspectos da personalidade do príncipe são definidos pela forma que ele tratava as mulheres, trabalhadores e a população. O Príncipe é descrito como um ardiloso homem que cobrava altos impostos da população que ele tratava de maneira cruel. Isso é uma alusão à nobreza pré-revolução francesa. O engraçado é perceber que a decadência da burguesia só a torna cada vez mais parecida com a nobreza no seu último suspirar antes das revoluções protagonizadas pelos trabalhadores, camponeses e a própria burguesia no milênio passado.

Apesar dos problemas, como o infeliz CGI da Fera, “A Bela e Fera” é um desbunde estético e musical. Com sua densa discussão moral, é também uma produção que nos faz esquecer nossos problemas e fantasiar. Eu, definitivamente, saí da sala de cinema com um incrível desejo de que uma bruxa surgisse para colocar nossa decadente sociedade nos trilhos. Em tempos de ascenso conservador, de Temer e Trump, não seria nada mal que esse ser feminino, a bruxa, surgisse para ensinar a todos nós que lealdade, amor, respeito, liberdade e igualdade são os valores que nos tornam verdadeiramente humanos.

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