Por: Gustavo Leão*, de Maceió, AL
Eu cresci acompanhando histórias de super-heróis. Foi na infância que tive o primeiro contato com os X-men, através do desenho animado exibido no Brasil nos anos 90 e através de quadrinhos que comprava ocasionalmente (quando conseguia juntar algum dinheiro). No entanto, foi já na adolescência que passei a acompanhar, com muito mais frequência, as histórias em quadrinhos dos mutantes da Marvel.
É interessante tentar pensar no porquê de minha predileção pelos X-men em meio ao panteão super-heróico. Talvez seja porque, diferente dos demais super-heróis, os X-men não se dedicavam a combater o crime, mas a lutar por tolerância e aceitação.
À época em que anunciaram o primeiro filme do grupo, lançado em 2000, lembro da ansiedade, lembro de acompanhar notícias que diziam que a existência de outras adaptações cinematográficas de personagens Marvel, como Homem-aranha e Vingadores (que só passou a ser cogitado anos depois), dependeria do sucesso desse projeto. Até porque, o último filme do gênero, Batman & Robin, dirigido por Joel Schumacher, havia sido lançado em 1997 e tinha sido fracasso de público e crítica, colocando o que parecia ser a última pá de terra sobre os filmes de super-herói.
Dezessete anos após o lançamento de X-men: o filme (Bryan Singer), depois de adaptações milionárias, como o já mencionado Vingadores, e de mais nove filmes da franquia X-men – contando com Deadpool – é impossível não perceber o quanto o projeto foi bem sucedido e a sua importância para a história do cinema e aquilo que se convencionou chamar de cultura pop (talvez por falta de um termo mais apropriado).
Assim chegamos a Logan, filme dirigido por James Mangold (Os Indomáveis) e que traz Hugh Jackman pela última vez no papel de Wolverine. A história do filme se passa no ano de 2029 e mostra um Logan abatido, trabalhando como motorista de aplicativo, vivendo próximo à fronteira dos EUA com o México e cuidando de um Professor Xavier idoso e transtornado.
Essa rotina muda drasticamente com a chegada de uma garota misteriosa que está sendo perseguida por uma organização poderosa. A partir daí, o filme vira uma espécie de road movie com elementos de perseguição, alta carga dramática e muita, mas muita, violência. Nesse quesito, é preciso salientar que há um sentido para a violência gráfica da película, afinal de contas, a personagem principal possui garras que cortam praticamente qualquer coisa e é preciso mostrar os efeitos disso no corpo humano.
É tudo aquilo que os fãs de X-men sempre quiseram ver no cinema, mas ao mesmo tempo, a extrema violência e a crueza das cenas de luta não são muito agradáveis, o que é bom. Em alguns momentos a trilha sonora é suspensa e tudo o que ouvimos são gemidos, grunhidos e o gorgolejar de bocas cheias de sangue. A frase icônica do Wolverine (“Sou o melhor no que faço, mas o que eu faço melhor não é nada agradável”), imortalizada na HQ Eu, Wolverine, de Chris Claremont e Frank Miller, nunca fez tanto sentido para a personagem no cinema como nesse filme.
Isso, claro, muito embora o Wolverine retratado na história de Logan seja um Wolverine velho, debilitado e carregado de cicatrizes físicas e psicológicas. A passagem do tempo deixou marcas que nem o fator regenerativo do mutante conseguiu curar, o que é passado para o espectador através de uma ótima performance de Hugh Jackman, que, em um momento de extrema comoção do filme, nem precisa dizer nada: a câmera se aproxima de seu rosto e vemos suas feições desabarem emocionalmente.
Há referências diretas ao clássico do faroeste Os brutos também amam (Shane, no original), de 1953, dirigido por George Stevens. Na história do filme estrelado por Alan Ladd, um forasteiro, o Shane do título original, chega a uma pequena cidade fugindo de um passado conturbado e passa a trabalhar na construção da fazenda de uma família, mas as coisas começam a mudar quando os moradores da cidade vão ficando cada vez mais acuados e sendo mais explorados pelo fazendeiro mais rico da região.
A partir de então, Shane se vê obrigado a revisitar seu passado como assassino para proteger aqueles que aprendeu a amar. Percebe-se que os dois momentos em que o filme é diretamente citado em Logan não são gratuitos. Outra obra-prima do faroeste, Os imperdoáveis, de 1992, dirigido e estrelado por Clint Eastwood, que retrata um cowboy ex-assassino aposentado tendo que voltar à ativa, certamente também serviu como referência para Logan.
Patrick Stewart também entrega um Xavier, assim como Logan, fragilizado, que alterna entre momentos de insanidade e lucidez, mas que não abandona a característica essencial da personagem de sonhador esperançoso, mesmo diante de uma realidade difícil. Diferente de X-men: dias de um futuro esquecido (Bryan Singer), de 2014, o futuro aqui mostrado não chega a ser uma distopia feita nos moldes dos quadrinhos de super-herói, mas mostra um 2029 perturbadoramente semelhante à nossa realidade e, principalmente, muito próximo da realidade atual dos EUA.
Logan leva uma vida difícil junto com Xavier e Caliban (Stephen Merchant). Os mutantes já não são mais numerosos como antes. A intolerância parece ter vencido a batalha antes travada pelos X-men. É interessante ver como aqueles que perseguem e torturam os mutantes se veem como os verdadeiros heróis, como é o caso de Donald Pierce, interpretado por um convincente Boyd Holbrook (Narcos). Pode-se dizer que a grande ameaça do filme é, na verdade, uma empresa estadunidense que, dentre outras coisas, explora a mão-de-obra latina[1].
Em determinado momento, surge uma família negra de fazendeiros que é explorada por fazendeiros brancos. Tudo isso somado ao fato de que a história se passa na fronteira dos EUA com o México, transmite uma mensagem relevante para os EUA e para o mundo da era Trump. No entanto, o principal antagonista do filme não deixa de ser o próprio Logan e seu passado como Arma X, o que é tratado de forma interessante por Mangold (discordo de algumas críticas que disseram que essa decisão resgata o que havia de pior nos quadrinhos dos anos 90, até porque, nesse filme, isso ganha dimensões totalmente diferentes).
Aliás, o filme consegue ser superior à HQ na qual é bem livremente baseado, Velho Logan, de Mark Millar e Steve McNiven. O quadrinho, que tem uma proposta interessante, muitas vezes deixa a desejar na execução. Apesar de exibir trechos de extrema violência, o que joga para cima a classificação etária de seu público alvo, possui trechos desnecessariamente didáticos, com diálogos expositivos roteiro previsível.
Já o filme consegue se desvencilhar de tudo isso, sendo muitas vezes pouco didático e nada expositivo, como quando se trata do que aconteceu aos X-men. Tudo fica na base da inferência, o que é uma escolha ainda mais intrigante, uma vez que o que aconteceu foi tão intenso e pesado, que as personagens evitam a todo tempo tocar no assunto.
O filme fala sobre fim, morte e velhice, mas também fala sobre o novo, o começo, a juventude e a esperança[2], que são personificados, principalmente, na personagem Laura (ou X-23 para os mais íntimos).
A atriz Dafne Keen, que interpreta a personagem, consegue transmitir a sensação do perigo que representa, através de um olhar ameaçador e dos seus movimentos nas cenas de luta. O desenvolvimento da relação dela com o Wolverine é um dos pontos mais tocantes do filme, que envolve paternidade e transmissão de legado, como evidencia a última cena do filme, em que aquilo que é mostrado em primeiro plano de certa forma contrasta com o que acontece ao fundo.
Logan não é um filme para todas as idades (sua classificação no Brasil é 16 anos), mas é um filme sobre todas as idades. Sobre o velho e novo. Sobre o fim de um ciclo e o começo de outro. É, sobretudo, o respiro renovador de que as adaptações de quadrinhos de super-herói para o cinema precisavam e é interessante que isso tenha acontecido na franquia que deu origem a tudo.
Notas
[1] Texto de Alessandra Fahl Cordeiro que também trata da crítica anticapitalista subentendida no filme: http://esquerdaonline.com.br.br/2017/03/05/logan-muito-alem-de-uma-ficcao/
[2] Texto de Henrique Canary sobre Logan que também toca nos pontos da velhice e da juventude: http://esquerdaonline.com.br.br/2017/03/09/o-que-aprendi-com-logan/. Texto de João Paulo da Silva, camarada do PSTU, que também traz reflexões nesse sentido: http://www.pstu.org.br/logan-o-filme-que-chegou-ao-coracao-do-wolverine/
*doutorando em Letras e militante do MAIS Alagoas
Foto: Divulgação
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