Por Raquel Varela, Colunista do Esquerda Online, direto de Lisboa, Portugal
*Aos leitores brasileiros, mantivemos o artigo no Português de Portugal. Conforme enviado pela nossa colunista.
Vivo num mundo à parte. Embora todos os dias procure sair de casa, do país, do trabalho para me encontrar com o mundo. Por exemplo, as minhas amigas mais próximas libertaram-se do trabalho doméstico, da dependência financeira, política e – a mais importante – emocional. Esse trabalho nos países centrais foi feito pelas nossas mães e avós que carregaram o fardo do patriarcado e da sua destruição.
As conversas íntimas com as minhas grandes amigas são sobre afectos, sexo, amor, relação. Se um dia um de vós fosse uma mosca e aterrasse num jantar nosso ia encontrar, creio, um grupo de mulheres que adora homens, vive com homens, ganha muitas vezes mais do que os homens, e cuja principal batalha, se me permitem algum exagero, é fazer dos homens seres menos desiguais e mais emancipados. Queremos ser felizes, com eles. Ao lado deles, nem por cima nem por baixo. Lutamos, entre gargalhadas, para que os homens sejam mais iguais, menos dependentes, mais seguros, mais ousados, que não nos dêem o fardo de dirigir, tomar decisões, definir estratégias de vida dos filhos, de trabalho, da casa, das férias. Dividir a vida não é só fazermos os dois, é pensarmos os dois, é – aí está!- dividir o poder de decidir e fazer. Porque não há fazer sem decisão nem decisão sem fazer.
Acabei de vir da Índia onde entre 20 milhões em Nova Deli 4 milhões dormem na rua. Não é favelas, é rua. Poupo-vos ao resto da descrição do que é “esta rua”. A violação colectiva não é empolada pelos media – existe mesmo. O feminicídio é comum no noroeste do país onde há uma quebra de 30% de nascimentos femininos. É perigoso para uma mulher andar sozinha na rua. Muito. Na índia e em grande parte do mundo. Barbárie. Sem falsos relativismos entre um jantar de mulheres intelectuais em Lisboa e um dia a tentar não morrer em Nova Deli estão 4 séculos.
Neste dia lembremos isso – a luta pela igualdade de género é desigual no mundo em que vivemos, num lado luta-se pelo direito democrático a comer todos os dias e não ser violada como um animal por animais, do outro pelo direito a fazer amor sem medo, de nós próprios e de quem amamos.
Mas na Índia e no Brasil ou Portugal une-nos a mais bela aventura da humanidade – a eliminação das desigualdades para que as diferenças, a criação e a liberdade possam existir. A greve de hoje do Dia Internacional da Mulher, chamada por Argentinas e Polacas, onde o direito elementar a sair à rua só sem qualquer risco não está assegurado, reúne um pouco de tudo isto: o direito à vida, essencial; o direito ao amor, essencial; o direito à liberdade, essencial.
Quem como eu começou a vida neste campo no topo da Montanha, com vista sobre o mundo, sem saber o que é machismo, carregada e levada pelos braços de mães e avós que enterraram com muita luta e coragem a Idade Média – era assim na maior parte do Portugal de há 40 anos – e nos entregaram à nascença um mundo mais livre, deve hoje olhar com empatia a humanidade e solidarizar-se com este dia, sem “mas”. A cuidar de mim, sem concorrência de outro ser feminino nascido na família depois de 1970, a proteger-me, lavar-me, dar-me de comer do melhor, ensinar-me a comer, pentear, falar, andar, brincar, muito, levar-me à escola, ensinar-me línguas, levar-me a viajar, a ver o mundo, educar-me, sem muros e proibições, com limites e orientação – são, pensam bem agora comigo, centenas de milhar de horas de trabalho acumulado de educação e reprodução concentrados para uma pessoa! – esteve, dizia eu, a minha mãe, duas avós, uma empregada, uma tia, só referindo as mais directas. Basicamente o mundo caiu-me pronto nas mãos, compreendem? Não foi só a mim, foi a mim e a um grupo de mulheres grande, depois de 1945 e depois de 1974. Não dizer nada hoje é ignorar que somos o que somos porque alguém foi por nós. Temos hoje uma responsabilidade acrescida na humanidade. Uma dívida.
No fundo, o que hoje quero tentar dizer é isto: a nossa luta pelo direito a comer todos os dias na Índia vai ter muito mais impacto na construção de relações iguais à mesa de um casal no ocidente central do que imaginamos. E a nossa coragem em disputar no ocidente uma sociedade radicalmente distinta, igual, sem medos, sem mercados de afectos e poderes, sem países de primeira e de segunda, vai contagiar a mais dividida de todas as sociedades que é a Índia, ou o Brasil ou a Polónia. Não vamos levar à Índia caixas com alimentos a cavalo numa ONG, mas sim fazer aqui uma luta consequente nas empresas e fábricas contra a deslocalização produtiva e o dumping, a pilhagem imperial financeira das periferias que alimenta accionistas de grandes empresas dos nossos países em associações com os lordes locais, como o monstro que acabou de construir para si e a família um prédio de 27 andares na Índia, 4 dos quais de estacionamento e 1 para empregados. O direito à auto determinação dos povos, em vez da cultura pós-moderna da pobreza exótica é um desígnio hoje.
Mas isso não chega – o século XXI não pode aceitar nada menos do que uma cruzada pelo amor, a emancipação económica tem que vir ao lado de uma mudança radical, auto-crítica, sobre os limites das relações que nós hoje, seres mais livres, construirmos, entre homens e mulheres: narcisicas, poderosas, infantis, competitivas. É urgente reinventar o amor e a forma como nos relacionamos uns com os outros. Aqui, na Índia, no Brasil e na Polónia. Viva a greve internacional de hoje!
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