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Territórios Negros: o percurso contra invisibilidade do negro em POA não pode acabar

Matheus Gomes

Deputado estadual pelo PSOL no Rio Grande do Sul, Matheus Gomes é historiador, servidor do IBGE e ativista do movimento social há mais de 10 anos. Sua coluna mostra a visão de um jovem negro e marxista sobre temas da política nacional e internacional, especialmente dos povos da diáspora africana.

Por Matheus Gomes, Colunista do Esquerda Online

Na segunda-feira de carnaval, após voltar de um dos poucos blocos que a negritude portalegrense conseguiu colocar na rua nos “dias de momo”, soube de mais um ataque desferido contra o nosso povo pela prefeitura de Nelson Marchezan Jr: a possibilidade de extinção do Projeto Territórios Negros.

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Isso é um absurdo! Trata-se de uma iniciativa modelo a nível nacional que já atingiu mais de 30 mil pessoas desde 2008. Guardo um carinho especial pelo projeto, pois tive o prazer de realizar meu estágio em Educação Patrimonial nesse projeto, ao lado de Fátima André, Leonardo da Rosa e Paulo Ricardo Cidad (trabalhadores da Carris), orientado pela professora Caroline Pacievitch, do Laboratório de Ensino de História e Educação (LHISTE/UFRGS), que já organizou duas edições do projeto de extensão “Territórios Negros: Patrimônio Afro-brasileiro em Porto Alegre”.

Também somos sujeitos dessa História e temos direito à memória!

Inspirado no roteiro construído por Oliveira Silveira (professor, poeta e ativista do Grupo Palmares; 1941-2009), o projeto criado a partir do vínculo entre a Carris, a Secretaria Municipal de Educação e a Procempa (Cia de Processamento de Dados de Porto Alegre) tem como objetivo ressaltar a importância da população negra na constituição da capital gaúcha, viajando por pontos da cidade que guardam na sua essência a história da resistência negra.

Quem entra no ônibus do Territórios Negros conhece o “lado B” de Porto Alegre. A Praça Brigadeiro Sampaio, batizada em homenagem ao militar que comandou as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai e foi cúmplice do massacre de milhares de escravos nesse conflito, metamorfoseia-se entre o Largo da Forca – nome dado para simbolizar o local onde ocorria a execução de escravos condenados na cidade – e a Praça do Tambor – que simboliza através da cultura a resistência às injustiças do escravismo e do racismo atual. Já a belíssima Igreja Nossa Senhora das Dores traz a tona o antigo Pelourinho portalegrense, desnudando também o consentimento da Igreja Católica com a escravidão.

No Mercado Público, destaca-se a nossa religiosidade com o potente axé do Bará do Mercado, fixado no centro dessa construção histórica que hoje corre o risco de ser privatizada por Marchezan. O Parque da Redenção ganha outro significado quando entendemos o porque da alteração do seu nome em 1935 para Parque Farroupilha, como parte da higienização social orientada pela elite portalegrense contra as comunidades negras que viviam na região conhecida como Colônia Africana transformada no Bom Fim, mas não para o povo negro e enxotada por um verdadeiro Rio Branco, tragicamente o nome do outro bairro atualmente localizado na antiga região negra. A Ilhota ressurge em sua grandiosa contribuição como parte luta contra o racismo no futebol com a antiga Liga da Canela Preta e também como ponto fervescente de cultura que abrigou o mestre Lupicínio Rodrigues e até hoje é sinônimo de luta com o Quilombo do Areal da Baronesa.

Nosso estado é conhecido pela força da imigração europeia, é comum pessoas de outras regiões do país acharem que aqui vivem pouquíssimos negros e negras, entretanto, nossa herança cultural é densa, presente em todas regiões do estado, principalmente na área metropolitana. O projeto Territórios Negros, ao lado de iniciativas como o Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, é uma forma de fortalecer o papel do negro como sujeito ativo da história gaúcha, é uma arma de combate ao racismo aplicada no âmbito da educação patrimonial e poderia ter uma potencial ainda maior, inclusive na área turística da capital.

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É importante frisar que a produção historiográfica e sociológica negligenciou por décadas o papel da população escravizada como elemento dinâmico dos embates sociais que desgastaram e fizeram desmoronar o escravismo, aliás, um dos expoentes dessa ideia é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (atual correligionário de Marchezan), que estudou por anos a escravidão no sul do Brasil, mas numa entrevista repugnante em 1994 afirmou também ter “um pé na cozinha” e ter mãos “mulatinhas”, ou seja, para afirmar que não era preconceituoso recorreu a ideia da miscigenação pacífica e da convivência tranquila entre a Casagrande e a senzala. Talvez foi com o sociólogo que Marchezan aprendeu a ser cínico e dançar carnaval na eleição para depois quase cancelar a realização da festa. A elite brasileira atuou ativamente no pós-abolição para enraizar ideologias que transformaram-se em obstáculos para superar a profunda desorganização dos negros em estado de calamidade social e a constituição de um projeto político para a nossa ascensão social. A falsa ideia da democracia racial é a principal expressão disso, pois nega a necessidade de superação das chagas dos séculos de escravidão. Se eles acham que todo o negro é vitimista, como adoram dizer os aliados do prefeito ligados ao MBL, qual a necessidade de um projeto que vise apresentar a história não contada da nossa cidade?

As reparações sempre foram negadas ao nosso povo, bem como o direito à memória, e a estruturação dos museus brasileiros acompanhou essa lógica, mas teve a década de 70 como um marco de transformação a partir da exigência do novo movimento negro que surgia na época, sensibilizando curadores, arrancando concessões do poder público e colocando novos sujeitos em evidência, ou seja, negros contando a história dos negros. Temos exemplos como o Museu Afro-Brasileiro-MAFRO em Salvador, Museu Afro-Brasileiro em Sergipe, Museu do Negro no Rio de Janeiro, Museu Afro-Brasil no Parque do Ibirapuera em São Paulo e o Museu 13 de Maio em Santa Maria, que assim como o Territórios Negros contam a história oculta de nosso país.

Lutemos pela manutenção do projeto

Vivemos tempos difíceis. Para nós, historiadores,  não está nada fácil depois da aprovação da Reforma do Ensino Médio. A História passou a ser uma área de conhecimento desprezada, o que sobrará então para a Lei 10.639 e a necessidade do conhecimento da história africana, afro-brasileira e indígena?

Depois de auxiliar na aprovação da PEC 241 no Congresso, Marchezan quer ser um dos expoentes de aplicação do ajuste a nível nacional: já prometeu atrasar o salário do funcionalismo, cortou as verbas da cultura popular no carnaval, apresentou mudanças draconianas na estruturação da educação básica no município, está para fixar preço da passagem na casa dos R$ 4,00, etc. Ele não esconde que o seu ajuste não é só no plano econômico: ao lado das figuras da nova direita do Parcão (MBL, Partido Novo e cia), quer estender suas garras nos planos cultural e moral, abrindo espaço para ideias racistas, homofóbicas, machistas e consolidar suas mudanças estruturais no plano ideológico, algo típico dos políticos reacionários que surfam na onda conservadora atual.

Se o problema fosse econômico não teria justificativa plausível, pois o Territórios Negros é um projeto barato que ocupa apenas um ônibus da Carris, aliás, carente de infraestrutura para os guias e condutores, e ainda movimenta poucos funcionários. A questão é mais profunda: Marchezan e seus comparsas são contra uma iniciativa de cunho social e vinculada a luta antirracista, eles querem é reviver o slogan da elite portalegrense da primeira metade do século, que para deslocar os negros da área central da cidade diziam queremos “remover pra promover”. O avanço deles depende do nosso retrocesso, por isso, é necessário unir forças para defender esse projeto e manter de pé a trincheira erguida nos Territórios.

Fotos: Ita Prisch