Por: Eduardo Casteluci, de São Paulo, SP
O carnaval brasileiro é formado por um denso entrecruzamento de diferentes enredos. Temos, em primeiro lugar, as tramas meticulosamente imaginadas e desenvolvidas pelas agremiações que produzem os desfiles no sambódromo do Anhembi. Carnavalescos, ritmistas, artesãs e hábeis costureiras dedicam praticamente todo seu ano à confecção dos 65 minutos de espetáculo.
Em 2017, a escola vencedora do carnaval foi a Acadêmicos do Tatuapé, cujo samba-enredo homenageou o país africano Zimbábue. Da zona leste da capital, a agremiação retomou a tradição da principal festa popular brasileira, fazendo ecoar na avenida a história da África, que é também a parte fundamental de nossa própria história. Na kizomba da Tatuapé se cantava “Sou eu a negra mãe da humanidade/ Em meu ventre a verdade/ humildade e amor/ A força de um filho guerreiro/ herança de luta e dor”. Nos atuais tempos de desesperança, no Anhembi soou mais alto o tambor africano e orgulho do povo preto.
Em segundo lugar, existem os enredos produzidos pelos blocos de rua e pelos foliões que os acompanham. Ao contrário dos primeiros, esses enredos são produzidos por diversos arremedos semi-caóticos, semelhante ao movimento dos foliões no momento em que o trio elétrico começa a entrar em uma rua mais estreita. Nesse ano, São Paulo teve seu maior carnaval de rua. Quase quatrocentos blocos se espalharam pela cidade, trazendo consigo milhões de foliões.
No início, o prefeito João Dória tentou ser o único compositor do samba-enredo das ruas paulistanas. Prometeu à elite da cidade, que possui verdadeira ojeriza às expressões populares de alegria, um carnaval contido, que permitisse aos seus principais apoiadores a tranquilidade que a estratificação social brasileira lhes produz.
Assim, cumpriu a promessa de reprimir por meio da polícia militar os blocos e foliões que ousassem transgredir os horários por ele estabelecidos. Também voltou a repetir a sua trama farsesca ao varrer a Avenida Faria Lima, uma das principais vias de circulação de carros importados da cidade, sem, entretanto, esquecer de transmitir todo seus movimentos desajeitados com a vassoura por meio de seu facebook. Entre uma e outra varrida incompetente das sarjetas, virava-se à câmera para emitir ofensas a seus adversários políticos. Se não bastasse o seu uniforme perfeitamente ajustado a sua frágil silhueta de bon vivant para lhe distinguir dos outros, tinha nos pés um tênis perfeitamente branco, muito distinto das botinas pretas dos verdadeiros trabalhadores.
Entretanto, como ao prefeito jamais apeteceu a música popular, a ele é estranha a força do pagode brasileiro. Como já havia anunciado Jorge Aragão, o carnaval é arte popular do nosso chão, pois é povo que produz o show e assina a direção. Assim, ao invés do comedido carnaval de Dória, tivemos, na realidade, explosões de alegria e resistência popular. Durante o desfile dos blocos, era frequente a interrupção da música para se exigir que as mulheres e as LGBTs fossem respeitadas. Além disso, diversos blocos tiveram como protagonistas mulheres transsexuais.
Também foi marcante o fato de que, em diversos momentos, seja ecoando primeiramente dos enormes alto-falantes ou das milhares de gargantas ao redor deles, os gritos de Fora Dória e Fora Temer foram partes essenciais do enredo do carnaval paulistano. Às manifestações de felicidade se juntaram os cantos de indignação. Se engana, entretanto, quem vê aí alguma contradição. O contentamento do povo se produz também no triunfo sobre seus algozes. Mesmo assim, é inegável também que as infelizes manifestações de racismo, como no black face, de LGBTfobia, como em algumas antiquadas marchinhas que seguiram sendo reproduzidas, e de machismo, como nos injustificáveis beijos forçados, continuaram ocorrendo.
Mas, então, qual foi de fato o tema central do enredo do carnaval de rua paulistano? Qual é o elemento da complexa trama de histórias que se destaca em relação aos demais, que os organiza de forma coerente e dá um nome à festa? O folião paulistano já estava acostumado a abrir seu carnaval contemplando o belíssimo cortejo das mulheres do Ilú Obá De Min, acompanhando o canto e a dança africana e sendo banhado pela chuva torrencial, cuja força é a exata medida da alegria que seguirá. Entretanto, nesse carnaval se deparou com uma certa novidade. Tivemos um bloco organizado por pretos e pretas periféricas, em sua maioria mulheres e LGBTs, que, com a força de sua dança, anunciaram a sua resistência, a sua existência. Diziam querer enegrecer a cena do carnaval paulistano e, após o bloco, a conclusão evidente é de seu sucesso. Criaram um espaço de maioria preta, protagonizado pelos seus e, assim, libertaram seus sorrisos. Portanto, entre o Anhembi e as ruas da capital, o carnaval de São Paulo teve seu enredo ditado pelo povo preto, retomando sua força, isto é, a força da cultura negra.
Resta, por fim, atribuir um samba a esse belo enredo. Para isso, pedimos a benção de Dona Ivone Lara para cantarmos junto a ela: um sorriso negro, um abraço negro, traz felicidade!
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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