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EDITORIAL

Expondo a farsa da “redução da pobreza”

Artigo de Jason Hickel, publicado no site Al Jazeera em 21/08/2014

Traduzido por Pedro Lhullier Rosa

As notícias vêm de todos os lados: as taxas de pobreza estão caindo e a extrema miséria logo deixará de existir. O Banco Mundial, os governos, e – muito notavelmente – a Campanha do Milênio da ONU. Todos concordam com esta narrativa. Relaxem, eles nos dizem. O mundo está melhorando, graças à propagação do capitalismo de livre mercado e da hegemonia ocidental. Nosso modelo de desenvolvimento está funcionando, e logo, algum dia no futuro muito próximo, a pobreza vai acabar.

É uma história reconfortante, mas infelizmente não é verdade. A pobreza não está caindo tão rápido quanto dizem. Na verdade, de acordo com alguns medidores, a pobreza está aumentando significativamente. Se erradicar a pobreza for para ser uma proposta séria, precisamos ter a coragem de encarar alguns fatos duros.

Contabilidade falsa
A mais poderosa expressão da narrativa de redução da pobreza vem da Campanha do Milênio da ONU. Surgida da Declaração do Milênio de 2000, o principal objetivo da Campanha tem sido a de reduzir a pobreza global pela metade até 2015 – um objetivo que esta reivindica ter atingido antes do prazo. Mas, olhando além da retórica de celebração, fica claro que esta afirmação é profundamente enganosa.

Os governos mundiais se comprometeram a acabar com a extrema miséria pela primeira vez em Roma durante a Cúpula Mundial pela Alimentação de 1996. Comprometeram-se a reduzir o número de pessoas subnutridas pela metade antes de 2015, o que, dada a população da época, significava tirar 836 milhões de pessoas do limiar da linha da pobreza. Vários críticos apontaram que esta meta era inadequada, já que, com as políticas corretas de redistribuição, a extrema miséria poderia ter seu fim muito mais cedo.

Mas ao invés de tornar seus objetivos mais robustos, os líderes mundiais sorrateiramente os diluíram. O professor do Yale e analista de desenvolvimento Thomas Pogge aponta que, quando a Declaração do Milênio foi assinada, o objetivo foi renomeado como “Objetivo de Desenvolvimento do Milênio 1” (ODM-1) e foi alterado para cortar pela metade a proporção (ao invés do número absoluto) de pessoas vivendo com menos de um dólar por dia. Ao trocar o foco para o nível de renda e mudar de números absolutos para proporcionais, o alvo se tornou muito mais fácil de alcançar. Dada a taxa de crescimento populacional, foram subtraídas do objetivo 167 milhões de pessoas. E isso foi só o começo.

Após a Assembleia Geral da ONU adotar o ODM-1, o objetivo foi diluído mais duas vezes. Primeiro foi mudado de diminuir pela metade a proporção de pessoas pobres no mundo para diminuir pela metade a proporção de pessoas pobres em países em desenvolvimento; Com isso tirou partido de um denominador demográfico que cresce ainda mais rápido. Depois, mudaram o ponto zero da análise de 2000 para 1990, retroativamente incluindo toda a redução da pobreza realizada pela China durante os anos 90, que nada teve a ver com a Campanha do Milênio.

Após a Assembleia Geral da ONU adotar o ODM-1, o objetivo foi diluído mais duas vezes. Primeiro foi mudado de diminuir pela metade a proporção de pessoas pobres no mundo para diminuir pela metade a proporção de pessoas pobres em países em desenvolvimento, tomando vantagem de um denominador demográfico que cresce ainda mais rápido.V

Esse truque estatístico diminuiu o alvo em mais 324 milhões. As 836 milhões de pessoas que seriam tiradas da pobreza magicamente se tornaram apenas 345 milhões. Tendo drasticamente redefinido a meta, a Campanha do Milênio pode dizer que a pobreza foi reduzida quando, na realidade, não foi. Esta narrativa triunfal proclamando o fim da pobreza repousa sobre uma ilusão de contabilidade enganosa.

A miséria numérica
Mas não acaba aí. Não apenas as traves do gol foram relocadas, a própria definição de pobreza foi modificada de maneira que sirva à narrativa da sua redução. O limiar para um indivíduo ser considerado pobre – a “linha da pobreza” – é normalmente calculado independentemente por cada estado-nação, e deve refletir o que um adulto precisa, em média, para sua subsistência. Em 1990, Martin Ravallion, economista australiano do Banco Mundial, notou que as linhas de pobreza de um conjunto dos países mais pobres do mundo se agrupava em volta de 1 dólar por dia. Por sua recomendação, o Banco Mundial adotou esta como a primeira Linha Internacional da Pobreza (LIP).

Mas a LIP se mostrou um tanto problemática. Usando essa linha, o Banco Mundial anunciou no seu relatório anual de 2000 que “o número absoluto de pessoas vivendo com 1 dólar por dia ou menos continua a aumentar. O total mundial subiu de 1,2 bilhões em 1987 para 1,5 bilhões hoje e, se nada mudar, chegará a 1,9 bilhões em 2015.” Essas foram notícias alarmantes, por sugerirem que as reformas de livre mercado impostas pelo Banco Mundial e o FMI em países do Sul Global durante as décadas de 80 e 90 em nome do “desenvolvimento” na realidade tinham piorado as coisas.

Isso foi um pesadelo para a publicidade das ideias do Banco Mundial. Não muito tempo após o lançamento do relatório, no entanto, a versão mudou completamente e eles anunciaram notícias exatamente opostas: enquanto a pobreza estava aumentando consistentemente há uns dois séculos, disseram, a introdução de políticas de livre mercado tinha na verdade reduzido o número de pessoas pobres em 400 milhões entre 1981 e 2001.

Essa nova versão foi possível pois o Banco mudou a LIP do original de US$1,02 (pela Paridade de Poder de Compra – ou PPC – de 1985) para US$1,08 (na PPC de 1993), o que, dado a inflação, era menor em termos reais. Com essa minúscula troca – um truque de mãos de um economista – o mundo magicamente estava melhorando, e o problema publicitário do Banco tinha acabado. Esta nova LIP foi a que a Campanha do Milênio decidiu adotar.

A LIP foi mudada pela segunda vez em 2008, para US$1,25 (com a PPC de 2005). E mais uma vez a versão melhorou da noite para o dia. A LIP de US$1,08 fez com que parecesse que a pobreza havia sido reduzida em 316 milhões de pessoas entre 1990 e 2005. Mas a nova LIP – ainda menor que a última, em termos reais – inflou o número a 437 milhões, criando a ilusão de que mais 121 milhões de almas tinham sido “salvas” da maldição da pobreza. De forma nada surpreendente, a Campanha do Milênio adotou a nova LIP, o que a permitiu reivindicar novos avanços quiméricos.

Uma visão mais honesta da pobreza
Precisamos repensar seriamente nossas medidas de pobreza. A LIP de um dólar por dia é baseada na linha da pobreza nacional dos 15 países mais pobres, mas estas linhas são um alicerce ruim dado que muitas são definidas por burocratas com muito pouca pesquisa envolvida. Também importante é que não nos dizem nada sobre a pobreza em países mais ricos. Uma pesquisa no Sri Lanka em 1990 descobriu que 35% da população estava sob a linha nacional da pobreza. Mas o Banco Mundial, usando a LIP, relatou apenas 4% no mesmo ano. Em outras palavras, a LIP faz o problema da pobreza parecer menos sério do que realmente é.

A LIP atual teoricamente reflete o que US$ 1,25 podia comprar nos Estados Unidos em 2005. Mas os habitantes dos EUA sabem que é impossível sobreviver com esta quantia. A própria ideia é ridícula. O próprio governo estadunidense calculou que, em 2005, o ser humano médio precisava de US$ 4,50 diários apenas para preencher seus requisitos nutricionais mínimos. A mesma história vale para muitos outros países, onde um dólar diário não é suficiente para a sobrevivência humana. Na Índia, por exemplo, crianças que vivem logo acima da LIP ainda têm 60% de chance de estar subnutridas.

De acordo com Peter Edwards da Universidade de Newcastle, para atingir uma expectativa de vida normal, uma pessoa necessita de algo perto do dobro da LIP atual, um mínimo de US$ 2,50 por dia. Mas adotar este limite maior subverteria a narrativa de redução da pobreza. Uma LIP de US$ 2,50 mostra uma contagem da pobreza de cerca de 3,1 bilhões de pessoas, quase o triplo do que o Banco Mundial e a Campanha do Milênio querem que acreditemos. Também mostra que a pobreza está piorando, não melhorando, com cerca de 353 milhões de pessoas pobres a mais hoje do que em 1981. Tirando a China da equação, o número salta para 852 milhões.

Alguns economistas vão além e sugerem uma LIP de 5 ou até 10 dólares diários – este o máximo sugerido pelo Banco Mundial. Por este padrão, vemos que algo perto de 5,1 bilhões de pessoas – quase 80% da população mundial – vive na pobreza. E o número está crescendo.

Estes parâmetros mais corretos sugerem que a pobreza mundial é muito pior do que as versões maquiadas que nos acostumamos a ouvir. O limite de US$ 1,25 é absurdamente baixo, mas prevalece por ser a única base que mostra algum progresso na luta contra a pobreza e, portanto, justifica a ordem econômica atual. Todas as outras linhas contam a história oposta. De fato, até mesmo a linha de US$ 1,25 mostra que, sem levar em conta a China, a quantidade de pessoas pobres está aumentando, com 108 milhões a mais na contagem desde 1981. Tudo isso impõe sérios questionamentos à narrativa triunfal.

Um apelo para a mudança
Esta é uma preocupação urgente; a ONU está, em tempo de escrita, negociando as novas Metas de Desenvolvimento Sustentável que vão substituir a Campanha do Milênio após 2015, e pretendem usar as mesmas medidas desonestas de pobreza. Vão usar a narrativa da redução da pobreza para argumentar por mais do mesmo: continuemos com o status quo e tudo vai seguir melhorando. Precisamos exigir mais. Se as Metas do Desenvolvimento Sustentável vão ter algum real valor, precisam começar com uma linha da pobreza mais honesta – no mínimo de US$ 2,50 por dia – e criar regras para impedir o tipo de enganação que o Banco Mundial e a Campanha do Milênio praticam até hoje.

Acabar com a pobreza neste sentido mais significativo vai precisar de mais do que apenas usar políticas de auxílio para lidar superficialmente com o problema. Vai necessitar de uma mudança de regras na economia global de modo a torná-la mais justa para a maioria. Os governos dos países ricos vão resistir com todas as suas forças. Mas problemas colossais precisam de soluções corajosas, e, com 2015 chegando, o momento para agir é agora.

O Dr. Jason Hickel ensina na London School of Economics e serve como consultor para /The Rules. 

Siga-o no Twitter: @jasonhickel