Por: Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP
Há um grande simbolismo histórico para a luta do povo palestino em 2017: há cem anos, o imperialismo britânico emitia um infame documento, a Declaração Balfour, que considerava a necessidade de estabelecer um “lar nacional judaico” na Palestina, então habitada por 90% de árabes; há 70 anos, a ONU declarava a Partilha da Palestina, outorgando 51% de sua área para a minoria judaica (30% à época), o que desatou a limpeza étnica de 80% da população palestina residente, que originou os atuais cinco milhões de refugiados e seus descendentes; há 50 anos, Israel ocupava o restante da Palestina na Guerra dos seis dias; e há 10 anos se impunha um bloqueio quase total à Faixa de Gaza.
O governo Obama apoiou totalmente Israel em seus oito anos de mandato, inclusive fechou ao final de seu termo na presidência um pacote de quase 40 bilhões de dólares de “ajuda militar” a Israel por 10 anos. Para se demarcar do seu sucessor, pela primeira vez em muitos anos, Obama orientou seu representante na ONU para que se abstivesse na votação em dezembro da Resolução 2334 da ONU que explicitamente condenava a ampliação dos assentamentos israelenses na Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Mesmo sem ser obrigatória, essa votação pode sentar precedentes mais fortes para a condenação de Israel nos fóruns internacionais.
A eleição de Trump deu novo alento à crescente extrema-direita em Israel. Trump deu o recado no mesmo dia dessa votação na ONU: “a partir do dia 20 de janeiro tudo mudará”. E depois nomeou como embaixador dos EUA em Israel um adepto fanático das colônias judaicas nos territórios ocupados e defensor da transferência da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém. Depois de tomar posse, o novo presidente americano procurou minimizar a pressa em fazer essa transferência, mas pode ser apenas uma atitude prudente de não começar sua gestão tomando medidas em um ponto tão explosivo e que afeta ao conjunto dos muçulmanos do mundo. Tanto é assim que a super-reacionária monarquia Hashemita da Jordânia advertiu contra essa ação.
Um início de ano quente
O governo israelense não perdeu tempo e acelerou o ataque contra os palestinos. Uma das iniciativas mais importantes foi o aceleramento das demolições de casas “não autorizadas” de palestinos tanto dentro de suas fronteiras de 1948 como nos territórios ocupados em 1967.
Ao Norte do país, na cidade de Qalansawa, foram demolidas 11 casas, o que levou ao prefeito da cidade a renunciar e a grandes manifestações. Em vários outros pontos, como em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia foram demolidas casas ou houve incursões provocativas do exército israelense, assassinando a vários palestinos, como em um acampamento de refugiados em Jenin, na Cisjordânia.
A verdadeira indústria de demolições de casas de palestinas se deve a um fato muito simples: a minoria de 150 mil palestinos que restaram nas fronteiras de Israel após a Nakba cresceu até atingir mais 1,5 milhão e até hoje nenhuma nova cidade e quase nenhuma construção foi autorizada pelos organismos de planejamento urbano, que, claro, são dirigidos pela maioria judaica no estado.
No Sul do país, obedecendo a planos concebidos há tempos, o estado continuou a remoção forçada e violenta de aldeias de beduínos no deserto do Naqab, para dar lugar a novos assentamentos judaicos. Os cerca de 200 mil de beduínos em Israel, devido ao seu regime de vida semi-nômade, naturalmente ocupam um espaço bem maior do que o de suas casas. Setenta mil deles vivem em comunidades não reconhecidas pelo estado, sem luz, água encanada e serviços básicos. É o caso de Umm Al-Hiran, uma aldeia de cerca de 50 residências, cuja demolição foi autorizada pela Suprema Corte do país. A violenta incursão resultou no assassinato de um morador, Yaqoub Abu al-Qiyan, o que gerou uma grande mobilização de milhares de participantes no Norte de Israel.
Novos assentamentos
Seguiu-se a aprovação da construção de 560 casas em Jerusalém Oriental, que foi anexada por Israel em 1980, o que nunca foi reconhecido internacionalmente.
O governo anunciou também o plano de construir mais 3 mil casas na Cisjordânia ocupada, o primeiro plano oficial nos últimos 24 anos, após os Acordos de Oslo. Se a população de colonos neste período praticamente duplicou (de cerca de 300 mil para 600 mil) sem planos oficiais, imagine-se o que ocorrerá com a sua aprovação formal.
Mesmo a Casa Branca, que havia sinalizado uma posição abertamente favorável aos assentamentos, emitiu uma declaração mais cuidadosa, que não era exatamente o que se aguardava da nova administração, dizendo que “apesar de não considerarmos que os assentamentos existentes sejam um obstáculo à paz, a construção de novos assentamentos ou a expansão dos já existentes além das suas fronteiras atuais podem não contribuir para alcançar esse objetivo”.
Os esquecidos prisioneiros políticos palestinos
Segundo a Adammer (Associação de Direitos Humanos e de Apoio aos Prisioneiros), em janeiro foram presos 590 palestinos em toda a Palestina, o que eleva o total de presos a mais de 7 mil, incluindo 300 crianças e cerca de 530 detidos administrativamente (de forma indefinida e sem julgamento). Entre o final de janeiro e o início de fevereiro, segundo a mesma fonte, houve dezenas de ataques das forças de segurança contra os presos em diversos centros de detenção.
Por outro lado, Mohammed Al-Qiq, jornalista palestino que já tinha protagonizado uma greve de fome de 94 dias até ser liberado em maio de 2016, foi preso em 15 de janeiro em um posto de controle militar perto de Belém após participar de uma manifestação pela devolução dos corpos dos palestinos mortos pelas forças israelenses. Em 9 de fevereiro, Al-Qiq decidiu entrar novamente em greve de fome por tempo indefinido após ser colocado em detenção administrativa.
Não poderia deixar de ser mencionada a situação cada vez mais desesperada dos palestinos da bloqueada Faixa de Gaza, que sofreram cortes de energia no frio Janeiro. A tensão pelas condições inumanas a que estão submetidos há mais de 10 anos, gerou manifestações contra essa situação. Neste início de ano, Israel realizou vários ataques a agricultores e pescadores e bombardeou várias vezes a área, o que faz temer que possa desfechar uma nova ofensiva geral nos moldes que a Faixa de Gaza tem conhecido ao longo dos anos.
Um passo para a anexação formal da Cisjordânia a Israel
Desde que ocupou a Cisjordânia em 1967, Israel adotou os mesmos métodos que já tinha utilizado após a expulsão de 80% da população palestina em 1948. Posteriormente, foram impedidos de retornar a seus lares e propriedades, criando o drama dos atuais 5 milhões de refugiados e seus descendentes. Ao mesmo tempo, Israel editou leis para legalizar a expropriação e gerir a propriedade das “ pessoas ausentes”. Para custodiar essas propriedades foi criado o Fundo Nacional Judaico (sucedido pela Administração de Terras de Israel). Essas instituições que controlam 93% das terras do país preveem que elas só podem ser cedidas a judeus. Isso explica a imensa dificuldade legal dos palestinos de Israel de terem acesso à terra.
Assim começou uma tradição oficial de “judaizar” o país (este termo não é uma invenção maldosa, mas sempre foi utilizado correntemente pelas altas autoridades do estado, a começar pelo seu fundador, David Ben Gurion).
Coerente com esse modus operandi e com a nova situação aberta após a posse de Trump, Israel deu mais um passo decisivo para anexar a Cisjordânia: foi aprovada uma lei que autoriza a legalização retroativa de colônias judaicas anteriormente “ilegais”.
A lei refere-se à legalização de cerca de 53 colônias ilegais segundo a própria lei israelense (e internacional), bem como de casas não autorizadas dentro de assentamentos já legalizados, em um total de 4 mil unidades, na chamada área C da Cisjordânia. Segundo os Acordos de Oslo, esta área, que compreende 60% da área da Cisjordânia, ficou sob controle de Israel, “até um acordo final”, o que nunca ocorreu.
Foi construída uma imensa rede de colônias em terras palestinas expropriadas, bem como estradas exclusivas para judeus e postos militares de controle, que tornaram o translado e a vida normal na Cisjordânia um verdadeiro inferno. O Muro de Separação de cerca de 700 quilômetros que foi lá construído é a máxima expressão desse regime de apartheid. Mas esta é a primeira vez desde a anexação de Jerusalém Oriental em que se atrevem a legislar sobre os territórios ocupados e sobre a propriedade de palestinos que nem seus cidadãos são.
A expropriação segue um método padrão utilizado nas chamadas colônias de povoamento, como nos EUA, Austrália e África do Sul para construir uma nova sociedade com a supremacia dos colonos, excluindo total ou parcialmente a população originária.
A lei aprovada se baseia no conceito de “terra nullius”, que considera terras sobre as quais não há soberania estatal ou direito de propriedade segundo os padrões contemporâneos (e ocidentais) como terra de ninguém. Usando esse ardil, colonos ocupam terras e expulsam os seus ocupantes ou donos e depois esse processo é legalizado. Pouco importa que haja ocupantes e mesmo donos formais das terras. Os colonos e suas tropas se encarregam de forjar a realidade que a lei, como a aprovada, legaliza “retroativamente”.
Como declarou Naftali Bennet, o principal dirigente do partido de extrema-direita Lar Judaico e atual ministro da Educação, “a lei abre o caminho para a anexação”. Aliás, já tramita a proposta de anexação de um dos principais blocos de assentamentos, Ma’ale Adumim, em área bem próxima a Jerusalém.
A aprovação da lei se deu antes da visita de Netanyahu a Trump no próximo dia 15, por pressão da extrema-direita dentro do próprio governo israelense. O Advogado-Geral de Israel declarou que não defenderá a lei na quando for apreciada a ação movida por 17 cidades palestinas da Cisjordânia na Suprema Corte do país. Foi a primeira vez que os palestinos dos territórios ocupados apela diretamente à maior instância judicial de Israel.
Esse panorama de ataques sem precedentes de Israel contra os palestinos, já estão sendo enfrentados e irão se enfrentar cada vez mais com a indomável resistência palestina, auxiliada por um número pequeno, mas crescente de judeus israelenses. Exemplo disso foi a manifestação de 5 mil pessoas no dia 4 de fevereiro em Tel-Aviv contra as demolições, os muros e os banimentos, em clara analogia à política americana e do governo israelense.
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