Não se ganha a humanidade pela desumanização

Por: Arthur Valente , de São Paulo

Para complementar o debate sobre como auxiliar a reorganização da esquerda revolucionária pela qual se pauta desde o princípio a corrente do MAIS e outras correntes que também enxergam tal necessidade, façamos uma reflexão sobre como se dão as relações humanas por dentro e fora da disputa política atual de modo a perceber os fatores que nos impedem de avançar na qualidade de nossas políticas tiradas e, por consequência, na quantidade de pessoas que delas se apropriam como se sendo também suas. Falo livremente no intuito de desenvolver um debate honesto sobre comportamento, ainda que aqui sem referências teóricas explícitas, porque com este, assim como com todos os debates, me proponho antes a aprender, uma vez que foi sempre através de alguém – vivo ou já morto; falando por livros ou pela boca – que todo o tipo de conhecimento me chegara aos sentidos, à mente e, se permitem analogia com o sagrado, à alma.

Aos que, como eu, iniciaram a vida política há pouquíssimo tempo e atuam principalmente nos espaços de juventude – principalmente os restritamente políticos – é perceptível que alguns elementos de influência em nossas fileiras têm sido essenciais para dificultar a expansão de políticas que dialoguem com os mais diversos setores da classe que trabalha, tanto quanto aparentam crescer gradativamente com força – pela falta de diálogos sobre, talvez, e também pela incoerência nas práticas mesmo quando esses diálogos existem – no setor que carrega consigo o mérito e a responsabilidade de ter sido parte contundente na linha de frente das movimentações por pautas sociais e democráticas desde as jornadas de Junho de 2013. Este fator é o da dificuldade de enxergar no outro que pensa diferente um ser complexo, com história e que apesar de todas as contradições ideológicas se coloca à disposição – através de seu próprio tempo, condições materiais e subjetivas – para participar da construção de movimentos que possam nos tirar da zona de conforto desconfortável que é o da conformação com o regime vigente de exploração opressora, tal como é o regime do capital.

É bom desde o princípio ressaltar que a ideia de “humanização do outro” ou solidariedade aqui proposta nada tem a ver com a blindagem da crítica por parte dos mais diversos setores que hoje compõem a esquerda, seja consigo próprios ou de um para com o outro; pelo contrário, este texto vem como um esforço para defender a ideia de que só será possível construirmos a união entre os mais diversos setores que agora tanto precisamos e ainda assim mantermos nossa autonomia de decisão sobre nossas próprias organizações, coletivos, grupos, etc., se aprendermos a nos olharmos com respeito e admiração, a começar pelo fato de termos saído do conforto (ás vezes desconfortável) de nossas casas, locais de estudo e de trabalho, para nos dedicarmos a debater e construir o que quer que seja. Em linhas gerais, neste texto defendo que uma crítica construtiva à ascensão da esquerda revolucionária como alternativa só será possível quando a autoanálise de nosso comportamento político para com nossos ditos diferentes vir a ser a da solidariedade real impregnada em todos os nossos sentidos – do ouvido e olhos atentos ao abraço sincero de quem se felicita ao perceber que com todas as discordâncias possíveis no que diz respeito à tática, não está sozinho na preocupação com a construção de um mundo baseado na igualdade e na justiça.

Como temos agido no que diz respeito ao trato uns com os outros, dentro e fora de nossas organizações? Agimos muitas vezes como nos fora ensinado a agir na vida capitalista, em todas as instituições pelas quais passamos, sejam as escolas, igrejas, locais de trabalho e até mesmo locais de lazer, a ver, de forma indiferente para com aqueles que dividem o espaço conosco tendo muitas vezes os mesmos interesses que nós. De um ponto de vista objetivo, ao não nos relacionarmos com os outros que nos cercam, ou então nos relacionarmos de forma superficial – quase sempre como reflexo de nossa desconfiança de partida ou simplesmente por nossa preguiça das relações humanas, imposta violentamente pela sociedade do individualismo competitivo e amargurado – perdemos a chance de, ao mesmo tempo, humanizarmos a nós mesmos através da empatia que se ganha, ou que se pode ganhar, quando tentamos compreender a história contida naquele outro corpo que vemos, e de resolver contradições internas com nossas políticas por não nos darmos a chance de comprovarmos nossas certezas pelo debate aberto e sincero – ao invés do debate agressivo e mesmo antidemocrático, como de costume se vê por aí – ou de mudarmos de opinião, que sempre se mostrou ponto essencial para o nosso próprio avanço pessoal enquanto sujeitos políticos e indivíduos morais. Empobrecemos, portanto, nossa identidade cultural-política e nosso espírito revolucionário ao abdicarmos da base de tudo que levou os grandes autores e autoras, assim como os(as) revolucionários(as), a serem grandes como são e foram: o diálogo, que pode ser questionador sendo só prosa e as vezes prosa que vira debate.

Não percebemos que ao atuarmos desta forma, não importa o que seja imputado em nosso discurso, nossos atos acabam quase sempre sendo o reflexo daquilo que política e moralmente repudiamos: a elitização e sectarização de nossas frentes, o pensamento enquadrado em concepções por vezes distantes do real e, claro, o punitivismo como centro de nossa política “didática”, seja este pela via psicológica ou mesmo física. Daí, afastamos pessoas que têm disposição enorme para se desenvolverem como sujeitos revolucionários e que muitas vezes se encontram na direita, por esta parecer – e parecer e não ser geralmente é muito mais atrativos do que querer ser, mas não parecer – ter uma abertura para o diálogo. E mesmo quando se repara que esta não é, o que provavelmente não demora tanto, para que retornar à esquerda se o modus operandi nessas questões de relações diretas muito se assemelha com a direita, que carrega a vantagem desta de ser o status quo, ou seja, que não requer tantos sacrifícios quanto uma política que se diga e que se tente fazer revolucionária?

A esquerda ganhou – por anos de burocracia tão estruturada que passou a ser naturalizada, de certa forma – traços daquilo que grita repudiar. Nosso caráter não pode ser autoritário, nem arrogante, nem prepotente, nem rancoroso; se assim for, não há coerência e sem coerência não se convence pela realidade tal qual ela se apresenta. Terminamos, portanto, chamando trabalhadores de “burros” quando muitas vezes fica claro que somos nós os que empacamos aparentemente sem motivo, mas que, passando por uma análise um pouco mais atenta, vê-se claramente que assim agimos por medo de perdemos o status fixo, mas nada produtivo, de faróis da revolução.

Que consigamos discernimento para atuarmos nos movimentos que atuamos como pontífices. Que construamos, então, pontes em que o caminho se dê pelas pedras da crítica, mas que os pilares sejam reconhecer que ali naquele outro corpo ou outros corpos, ou outros grupos, há, pelo menos, uma vontade de sincera de mudar o mundo e que isso nos basta para que consideremos suas falas e feitos como elementos a serem sempre considerados não só pela perspectiva que nós que vemos e ouvimos, mas também dele ou dela que se põe a fazer. E se não crermos que pelo debate sincero é que se cresce, tampouco que “tem gente que não muda”, melhor não perder tempo com militância, porque esquerda – ainda mais revolucionária – tem mesmo é a ver com a crença nada abstrata de que a gente é um universo de capacidade de mudar para melhor e, em conjunto, de mudar o mundo.