Por: Editoria Mundo do Esquerda Online
Publicamos a introdução de um artigo assinado por Vashti Kenway na revista australiana Marxist Left Review (Nº 13, Verão de 2017), a propósito dos campos de refugiados mantidos pela Austrália em remotas ilhas no Oceano Pacífico. Este assunto entrou no noticiário a partir do telefonema de Donald Trump com o primeiro-ministro australiano, Malcom Turnbul, na última semana. Nele, Trump disse que não iria honrar o feito pelo governo Obama em novembro de 2016 para receber esses refugiados.
A monstruosidade e mesquinhez do presidente bilionário americano não chamaria tanto a atenção depois do decreto de banimento dos muçulmanos de sete países, mas a pergunta é: por que eles estão lá, em que condições e por que a Austrália não os colocou lá?
Na verdade, a história desses refugiados é um retrato de uma opção política brutal do estado australiano para manter o controle absoluto da entrada no país. Depois de uma onda de refugiados que tentavam chegar ao país em botes vindos da Indonésia fugindo do Afeganistão, Sri Lanka, Vietnã, Irã, entre outros países, o governo resolveu colocar o tema sob jurisdição militar. Começou então a interceptar os botes e enviar os refugiados de volta a seus países, expondo-os à repressão da qual fugiam, como efetivamente ocorreu, como denúncia a Human Rights Watch em informe de 16 de janeiro deste ano.
Os que conseguiam chegar às costas australianas começaram a ser enviados a duas ilhas: há 850 deles em Nauru (pequena ilha formalmente independente) e 1200 na Ilha Manus, parte de Papua Nova Guiné. Entre os detidos há 33 crianças. Há muitas denúncias de péssimas acomodações, calor insuportável, maus tratos, abuso sexual, torturas, tentativas de suicídio pelas condições de detenção, segundo o mesmo informe mencionado e de outras organizações internacionais de defesa dos direitos humanos e dos refugiados.
Dois refugiados morreram após colocar fogo em suas roupas durante uma visita de representantes da ONU. Como resultado das denúncias, a Suprema Corte de Papua Nova Guiné determinou o fechamento do campo de Manus no ano passado e como a Austrália não estava disposta a ceder “para não demonstrar fraqueza”, foi feito o acordo com o anterior governo americano.
Tão dura é a política australiana que não aceitaram nem a oferta da Nova Zelândia de recebê-los paulatinamente, pois seria visto como um recuo e poderia supostamente permitir que viajassem para a Austrália posteriormente.
Por casos como esse é que a exigência de abertura das fronteiras e acolhimento incondicional dos refugiados deve ser uma exigência em todo o mundo, para todos os governos. Ainda mais em um momento em que as práticas xenofóbicas se espalham pelo mundo, inclusive na vizinha Argentina e no Brasil.
(Editoria de Mundo do Esquerda Online)
Refugiados retornados pela Austrália e detidos e acusados em Sri Lanka por “sair do país ilegalmente”. Foto: Getty Images
No meio das noites escuras, eu grito para além das cercas metálicas e ásperas. Cercado por agonia e tortura, eu grito ao lado dos pássaros tropicais, a milhares de quilômetros de distância das pessoas do mundo, no coração de uma ilha remota localizada em um canto do mais vasto oceano.
Em nome da humanidade e da liberdade, eu grito; em nome de todos os valores, valores que ligam a dignidade humana à paz. Eu grito um grito do inferno onde as pessoas são torturadas e sistematicamente humilhadas. Um grito com a qualidade daquelas delicadas ambições lembrando flores frágeis, mesmo quando as pétalas estão sendo arrancadas cruelmente, e um grito com a qualidade de um coração que está sendo esmagado sob as botas de aço dos políticos. Eis aqui a infernal prisão de Manus.[1]
Estas são as palavras do jornalista curdo iraniano Behrouz Boochani. Ele se tornou um refugiado em 2013, depois que seu apoio franco e aberto em favor dos direitos curdos o colocou em posição frágil – um alvo de crítica e ataques – frente ao regime iraniano. Ele foi forçado a fugir, deixando família, amigos, colegas, um movimento e tudo o que ele conhecia. Passou mais de um mês viajando em trens durante a noite, em ônibus secretos e, finalmente, em barcos em péssimas condições de uso, até chegar à Austrália. Depois que seu barco naufragou, ele foi resgatado por pescadores indonésios e em seguida foi preso. Ele pediu asilo ao governo australiano que o transferiu primeiramente para a Ilha de Natal e depois para o centro de detenção na Ilha de Manus. Ele vive lá desde então.
Seus escritos sobre a experiência de estar preso em Manus são uivos de dor e raiva. Eles revelam as frustrações e a angústia de estar preso indefinidamente e sem culpa formada. As palavras de Boochani subjugam a mídia manipuladora dos dois principais partidos. Elas cortam, como navalha afiada, a fala ambígua e cheia de rodeios típica dos burocratas departamentais que falam de “filas”, “processo” e “proteção de fronteiras”. Elas demonstram a mentira das alegações do estado australiano para a humanidade.
Os milhares de documentos vazados do governo, conhecidos como os arquivos de Nauru revelam ainda mais a barbárie sistêmica da política de refugiados da Austrália. Eles demonstram a profundidade da degradação sofrida pelos refugiados no que é efetivamente o Arquipélago Gulag da Austrália.
Em resposta a essas revelações, muitos comentaristas têm lamentado este flagelo nos registros da Austrália. Por exemplo, em novembro de 2016, a Fairfax Press relatou uma resposta típica de Julian Burnside, o altamente respeitado advogado e defensor de refugiados: “O que a Austrália estava fazendo com os requerentes de asilo era cada vez mais ultrajante e fora de sintonia com o que antes eram os ‘valores fundamentais da Austrália’”. O que muitos desses comentaristas não reconhecem é que o estado australiano pratica a brutalidade.
Em particular, o capitalismo australiano em guerra encarcerou pessoas inocentes nos campos de concentração e usou o racismo para justificar tal encarceramento. A história australiana está amarrada com arame farpado. Contudo, as histórias dos campos de concentração da Austrália foram colocadas na penumbra. Se mencionadas, o são frequentemente de forma envergonhada em notas de rodapé dos contos da construção da nação australiana cheia de bravura, de sacrifício e de decência durante a guerra.
Este artigo pretende desnudar o uso regular dos campos de concentração durante três períodos da história australiana: primeiro, como parte da guerra genocida contra os povos indígenas, em segundo lugar, como garantia do apoio à conquista imperial durante a Primeira Guerra Mundial, e em terceiro lugar durante a Segunda Guerra Mundial[2]. Essas histórias devem acabar com a noção de que o capitalismo australiano é mais civilizado e menos brutal do que o de outras nações.
Tradução de Wilma Olmo Corrêa
Crianças, filhas de refugiados detidas na Ilha Manus, em Papua Nova Guiné, a mando do governo australiano. Foto: Reuters
[1] Boochani, Behrouz 2016, “To the Australian people, from Manus prison”, Overland, 24 October.
[2] Nem todos esses alvos permaneceram racialmente demonizados. Enquanto os aborígenes continuam a sofrer racismo extremo, os alemães certamente não o são. Essas mudanças ilustram a maleabilidade do racismo como uma ideologia.
Foto: Manifestação em Sydney, Austrália, nesta semana, exigindo o fechamento dos campos e a admissão dos refugiados. | Zebedee Parkes
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