Por: Bernardo Lima, de Belo Horizonte, MG
No dia 20 de janeiro de 2017. Donald Trump tomou posse como o 45° presidente dos Estados Unidos da América. Seu estilo falastrão, seu jeito arrogante e seus rompantes “politicamente incorretos” assustaram quase todos seus opositores, da esquerda socialista à direita liberal. Os principais analistas chamaram a atenção para os motivos que levaram os trabalhadores e a classe média estadunidense a optar por alguém com um discurso tão abertamente opressor, mas a maioria apostou que Trump, ao tornar-se presidente, se revelaria apenas mais um governante republicano: um político tão detestável quanto George W. Bush ou Ronald Reagan, mas um homem do establishment partidário, que jogaria dentro das regras e não faria mudanças abruptas. Outros analistas, impressionados pelas declarações duras e ofensivas, chegaram a retratá-lo como um líder fascista, uma espécie de Hitler norte-americano que usaria seu posto para destruir o regime democrático-liberal dos EUA. Obviamente, os mais prudentes tatearam alternativas intermediárias a essas duas análises extremas antes de sua chegada ao poder.
Os primeiros dias de governo de Donald Trump começam a jogar luz sobre o que podemos esperar do “homem mais poderoso do mundo”. O fechamento de fronteiras para imigrantes e cidadãos de sete países de maioria islâmica, seus conflitos com a imprensa, a composição da equipe de governo e as reviravoltas nas relações internacionais demonstram que ele tem um projeto de país realmente diferente dos presidentes anteriores. Vejamos que conclusões já podemos tirar:
1) Divisão na classe dominante
A presença de Donald Trump e sua equipe no comando do país não agrada ao conjunto da classe dominante estadunidense. Os 1% estão divididos. A maioria deles financiou e apoiou Hillary Clinton e viu sua candidata naufragar nas eleições presidenciais. Ela representava a continuidade do governo Obama e de sua política: um imperialismo maquiado pelo discurso da defesa dos direitos humanos, da democracia e da liberdade.
O novo presidente, apesar de ser ele próprio um bilionário, chegou ao poder contra o establishment, apoiado pela alt-right* e com um projeto de guinadas bruscas que não agrada os empresários. Sua medida contra os refugiados provocou a ira de importantes empresas. Bill Ford Jr, presidente executivo da Ford, protestou contra a medida que “vai contra nossos valores como companhia”. O CEO de outra automobilística, a Tesla, também criticou publicamente a medida. O Netflix soltou uma nota dizendo que ela “torna a América menos segura” e Tim Cook, CEO da Apple, lembrou que Steve Jobs era filho de imigrantes sírios. A lista de empresas se opondo às primeiras medidas de Trump cresce a cada dia.1
O mais provável é que as próximas ações de Trump, em particular os realinhamentos internacionais e a política econômica interna (protecionismo, redução de impostos, etc), definam melhor quais frações da classe dominante estarão com o governo e quais estarão contra ele. O que é certo, por agora, é que estão divididos.
2) O povo também está dividido
A polarização da sociedade que vimos nas eleições do ano passado, que são até comuns na história dos EUA, não se encerraram com o calendário eleitoral. A pesquisa Gallup sobre o apoio a Donald Trump, realizada com apenas três dias de governo, demonstra uma imensa divisão do povo estadunidense. 45% da população disseram aprovar o novo presidente, outros exatos 45% já o desaprovam, sendo que 10% das pessoas ainda não formaram opinião. Um país dividido exatamente ao meio.
É preciso chamar a atenção que Trump é o primeiro presidente, desde que a pesquisa é realizada, que inicia seu mandato com menos de 50% de apoio e o que tem o maior índice inicial de rejeição da história (o segundo é George W. Bush com 25%). Seu discurso preconceituoso e nacionalista parece ter angariado apoiadores suficientes dentro do país, mas também o tornou o presidente com maior oposição popular em início de mandato.
3) Extrema direita no governo e nas ruas
A nomeação de Steve Bannon para o cargo de estrategista-chefe da Casa Branca e sua presença no Conselho Nacional de Segurança (que normalmente reúne apenas especialistas militares e chefes da inteligência) significa que, apesar de Trump não ser um governo fascista, tolerará e se apoiará amplamente em movimentos e personagens da extrema direita dos EUA. Interessa ao novo presidente o fortalecimento de organizações desse tipo que têm, até o momento, sido parte importante da “militância” pró-Trump e suas medidas. Podemos esperar para os próximos anos maior tolerância governamental à imprensa fascista e bastante influência de suas ideias nas decisões governamentais. Por sua vez, isso será um incentivo decisivo para que racistas, machistas e preconceituosos de todo tipo atuem “às claras” e ocupem as ruas novamente.
4) Conflito com a grande imprensa
Donald Trump, mesmo antes de tomar posse, entrou em rota de colisão com a grande imprensa. Ano passado, perante um público de 250 jornalistas, chamou a Buzzfeed de “monte de lixo”, recusou-se a responder perguntas de um jornalista da CNN e o mandou “calar a boca”. Em pé de guerra, os principais jornais do país têm se comportado como um verdadeiro partido de oposição ao novo governante. O New York Times tem pedido abertamente o afastamento do estrategista-chefe Steve Bannon. Mesmo a Fox News, empresa de comunicação que o apoiou nas eleições, esfriou suas relações com Trump depois da medida presidencial que baniu os refugiados.
Os ataques de Trump à grande imprensa do país, tentando desacreditá-la, faz parte de uma estratégia de reconfigurar a imprensa nacional. Seu principal apoiador, o Breitbart News, é um grupo ainda reduzido, que faz sucesso apenas com o público mais à direita e tem como estratégia atacar a grande imprensa acusando-a de “esquerdista”, fábrica de mentiras, etc. O novo governo parece entender que é impossível fazer tudo o que pretende se não minar a influência da imprensa tradicional e joga todas as suas forças para promover grupos como o Breitbart em detrimento de seus adversários.
5) Islamofobia oficial
A medida executiva que proíbe a entrada no país de refugiados, além de todos os cidadãos de sete países de maioria islâmica, demonstra que o racismo de Trump não ficará apenas no discurso. A medida é extremamente prejudicial para os EUA, não possui nenhuma efetividade na prevenção de ataques terroristas (as principais ações foram realizadas por pessoas de outras nacionalidades) e prejudica grandes empresas com funcionários por todo o mundo, como Google e Facebook.
A medida parece ter sido pensada exatamente para dividir a sociedade estadunidense e criar apoio de massas para a ideia de que muçulmanos não são bem-vindos no país. Associar a “Guerra ao Terror” (doutrina criada por George W. Bush e continuada com uma aparência mais amena sob a administração Obama) com o Islã é o grande objetivo ideológico da polêmica medida.
6) Um governo opressor que ameaça as liberdades democráticas
O novo governo não é um regime fascista. Não está em seus planos tomar o poder com milícias extraparlamentares de direita, acabar com as eleições presidenciais, proibir os partidos de oposição, fechar o parlamento, ou seja, não tem um projeto de destruir o regime democrático-liberal do país. Mas isso não quer dizer que Trump queira manter as liberdades democráticas inalteradas. Ele defende que se autorize o uso de técnicas de tortura contra detentos acusados de terrorismo, baniu refugiados e imigrantes de sete países, pode a qualquer momento tentar amordaçar a imprensa e pretende ampliar a vigilância sobre cidadãos americanos restringindo o direito à privacidade.
Os LGBTs, negros, latinos, mulheres e imigrantes têm ainda mais motivos para se preocupar. A presença da “alt-right” no governo e as promessas direitistas de campanha de Trump indicam que retrocessos nos direitos das minorias estão a caminho. Ele se apoia em um sentimento reacionário de amplos setores da população norte-americana branca que pensa que foi amordaçada pelo “politicamente correto”, que foi convencida de que sua vida piorou porque o governo priorizou os negros, as mulheres, etc. A velha ladainha que também ouvimos no Brasil contra os pretensos “privilégios” que o governo concederia às minorias e aos mais pobres.
7) Relocalização Internacional
Ainda não é possível ter total clareza de como Trump vai se posicionar em todas as questões internacionais e demandaria um artigo completo para tocar todas as questões que estão colocadas: conflito sírio, guerra ao terror, relação com a Rússia e o Japão, conflitos com a União Européia e bloco com o Reino Unido, disputas com a China, e um longo etcétera. Hoje, é possível dar como certo apenas duas coisas: primeiro, a política de Trump não será mais do mesmo e ocorrerão grandes mudanças na política internacional estadunidense. Ele está preparando o terreno para um novo papel dos EUA no cenário internacional; e segundo, a ilusão que tinha parte dos americanos (inclusive seus eleitores) de que Trump iria se preocupar com a política interna e “deixar o resto do mundo pra lá” provou-se falsa. Está evidente que teremos um imperialismo tão intervencionista e ameaçador quanto com Bush e Obama, ainda que com uma localização diferente nos principais conflitos.
8) Começaram as lutas contra Trump
A polarização da sociedade e a visível ameaça que Trump representa para os direitos do povo estadunidense já começaram a provocar ondas de manifestações nos Estados Unidos. As mulheres recepcionaram o governante machista com marchas gigantescas pelas grandes cidades, os negros e o movimento Black Lives Matter já começaram a se mover, os taxistas de Nova York, em sua maioria árabes, se recusaram a trabalhar no Aeroporto JFK no dia que o presidente decretou o “Muslim Ban” e começamos a ver as primeiras greves operárias do ano, ainda que por motivações próprias da categoria.
A direita e os racistas levantaram a cabeça para eleger Trump e criar uma base de sustentação para seu governo, mas não tardou para que a esquerda, os trabalhadores e os movimentos sociais demonstrassem que também estão dispostos a irem às ruas contra esse governo.
Ainda há indefinições
Os primeiros dias de Trump nos permitem tirar as conclusões acima, mas ainda há incógnitas importantes. A política internacional ainda não está plenamente definida, tanto por que a equipe que governa o país ainda não revelou toda a sua estratégia, quanto por que não sabemos qual serão as reações dos outros governos. A relação institucional entre os poderes também pode obrigar Trump a ser mais comedido. A decisão da Justiça Federal de suspender temporariamente todo o decreto de banimento dos muçulmanos é uma amostra disso. Ele conseguiu as primeiras aprovações no Senado para nomear os principais cargos do governo, mas a boa vontade do Partido Democrata parece ter acabado e a relação com os republicanos do establishment também mostra sinais de deterioração. Fora isso, não temos como prever como se desenvolverá a luta dos oprimidos e da classe trabalhadora estadunidense nos próximos meses. Se as grandes mobilizações se ampliarem é possível que sua rejeição fique tão grande que torne seus principais projetos inviáveis. E é para isso que a esquerda deve trabalhar.
* Alt-Right (Alternative Right): Direita Alternativa – Nome criado para representar os grupos de extrema direita dos EUA, que vão da Ku-Klux-Klan a setores do Tea Party. Seriam os movimentos considerados fora do espectro “politicamente correto” por defenderem abertamente ideias preconceituosas ou anti-democráticas. Seu principal porta-voz no país é o veículo de comunicação Breitbart, cujo editor-chefe era Steve Bannon até sua nomeação para a Casa Branca.
1 – Ford, Tesla, Google, Apple, Starbucks, Amazon.com, General Electric, Netflix, Uber, Nike, Twitter, Airbnb e outras empresas já se pronunciaram contra a medida presidencial.
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