Por: Carlos Zacarias, colunista do Esquerda Online
Tudo bem, o golpe de 2016 começou em 2013. Mas convenhamos, o fato de ter começado nas Jornadas de Junho não autorizam as narrativas que associam as lutas que ensejaram a maior revolta popular da história recente do Brasil a um processo consciente de desestabilização de um governo que gozava de grande popularidade até abril daquele ano.
O fato de que as direitas tenham tido a capacidade de se articularem e que tenham sido capazes de capitalizar o legítimo sentimento de repúdio ao partido do governo, transformando no repúdio puro e simples aos partidos de esquerda e suas bandeiras vermelhas, não deve tolher a nossa capacidade de compreender que processos complexos exigem explicações igualmente complexas.
Nos últimos meses, uma recorrente narrativa tem repetido que começamos a ser derrotados em 2013. Afirma-se, em tom de chacota, que os 20 centavos foram o prenúncio dos tantos trilhões que estamos em vias de perder com a entrega do patrimônio público à iniciativa privada pelos golpistas. Há quem diga que o golpe só foi possível porque Dilma recusou o acordo com Eduardo Cunha; que o imperialismo conspirou e que as direitas fomentaram as manifestações; que o Movimento Brasil Livre (MBL) não seria nada mais do que uma corruptela pela direita do Movimento do Passe Livre (MPL) e que a autocrítica da Globo quanto ao apoio ao golpe de 1964, preparava o terreno para a defesa do impeachment que a emissora dos Marinho faria.
Há narrativas para todos os gostos, mas o lugar de fala é sempre o mesmo: são ex-governistas que incapazes de explicar os limites do governo petista, ensaiam uma narrativa que prepare o caminho para a volta de Lula em 2018. Ou seja, o pano de fundo dessas intepretações é sempre que o PT caiu por suas qualidades, nunca pelos seus defeitos.
As narrativas são vãs, mas não se pode ignorar que venham causando alvoroço e arrebanhando seguidores. Ainda mais porque em comparação ao governo golpista de Temer, os mandatos de Lula e Dilma passam efetivamente por serem populares e de esquerda para os incautos. Então, a impressão que fica é que a derrubada de Dilma era indispensável para que a burguesia fizesse o ajuste e atacasse os direitos dos trabalhadores.
Mas, não é bem assim: Dilma caiu porque as classes dominantes que estiveram divididas durante todo este tempo, optaram por assumir os riscos de levar adiante o projeto do golpe quando perceberam que o PT havia perdido a capacidade de garantir a paz social e quando as intermináveis denúncias de corrupção produziam permanente instabilidade. É verdade que o ponto de inflexão ocorreu em 2013, quando a espontânea entrada em cena de setores massivos manifestando repúdio aos governos de plantão sinalizou para os petistas e os movimentos sociais seus aliados, sobre os limites da conciliação.
Mas, lembremos que até dezembro de 2015, para as frações das classes dominantes, não havia acordo quanto à melhor saída e muitos ainda preferiam uma outra solução que não o impeachment, que implicava em riscos de resultados incertos. A propósito, quem não se lembra das notas públicas divulgadas pela FIESP e pela FIRJAN que buscavam uma solução moderada diante das denúncias de corrupção? Quem não recorda dos editoriais da Folha e do Estadão que pediam responsabilidade ao Congresso na condução da crise? Como esquecer que o jornal O Globo pediu “condições de governabilidade ao Planalto” em editorial de 07/08/2015?
Se não havia acordo quanto ao golpe, por que ele foi necessário? Obviamente que ainda levaremos tempo para que tenhamos condições de ter uma “definitiva” radiografia do golpe, mas é possível ensaiar algumas hipóteses. Em primeiro lugar, parece ser necessário confrontar a tese enredada pelos petistas e demais ex-governistas, pois o golpe não desferido porque o PT governou para os pobres. Nunca antes na história desse país os ricos ganharam tanto dinheiro, costumava dizer Lula, e não estava errado.
Os dados de todos os governos petistas sempre demonstraram que apenas uma pequena parte dos recursos era destinada aos programas sociais. Se universidades públicas foram criadas e vagas expandidas, a contrapartida necessária de recursos sempre foi denunciado como insuficiente pelos trabalhadores das IFES. Um governo de um Partido dos Trabalhadores que não criou nenhum direito, deve merecer um julgamento menos parcimonioso, porque a destinação de milhões de reais para campanha de Dilma (e também de Lula) da parte de empreiteiros, banqueiros, latifundiários e grandes empresários deve dizer alguma coisa.
No final das contas, era a sangria de recursos para o pagamento da dívida pública, que consumia quase 50% de tudo que era arrecadado, além dos generosos programas de isenções fiscais para empresas, que garantia o acordo de governabilidade com frações das classes dominantes e permitia ao governo repactuar sua direção política com os subalternos, através das direções dos movimentos sociais, algo que faliu em 2013.
As Jornadas de Junho efetivamente puseram fim ao período da hegemonia fraca burguesa sob a direção do PT, mas não significou que os Estados Unidos demonstrassem desconfiança do seu aliado ao sul do Equador. Então parece improvável que tenha havido conspiração do imperialismo em 2013. Tampouco a Rede Globo ensaiou uma limitada autocrítica porque preparava o novo golpe e não foi o Executivo que recusou o acordo com Eduardo Cunha, mas os parlamentares que ficaram em dificuldades diante das pressões das suas bases nos estados.
O golpe foi possível porque os movimentos sociais perderam a capacidade de iniciativa e atuaram apenas de forma reativa na defesa do governo. De sua parte, o estelionato eleitoral aplicado depois da campanha de 2014, aquela do “Coração valente” e do “Dilma, muda mais”, só podiam preparar o terreno para a perda de apoio popular, algo que se agravou com o ajuste fiscal de Joaquim Levy e as políticas impopulares que vinham sendo anunciadas.
Devemos buscar a explicação nas nossas próprias fragilidades e as organizações que estiveram à esquerda do PT também não foram capazes de apesentar soluções melhores, de modo que o resultado foi o pior possível. Em todo caso, não parece correto propor uma explicação sem base na realidade. Para a esquerda como um todo, uma conscienciosa autocrítica é sempre um bom caminho para um correto e indispensável balanço sobre os nossos próprios erros. De nossa parte, o que nos cabe fazer é seguir tentando compreender os complexos meandros da conjuntura, denunciando as manobras narrativas dos que preparam novas derrotas.
Foto: Paulo Pinto, Agência PT
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