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CULTURA

O lugar da literatura no espaço do discurso revolucionário

Por: Paulo César de Carvalho*, de São Paulo, SP

Nas condições de uma cultura (…) na qual intervém como oposição fundamental a oposição entre o “correto” e o “errôneo”, pode não se verificar em geral a tendência para a expansão (em condições análogas pode resultar mais característica a tendência da cultura para não sair do seu próprio âmbito, para entrincheirar-se contra tudo aquilo que lhe é oposto, para fechar-se em si própria sem estender o próprio raio de difusão). A não-cultura (…), pela sua própria essência, não pode ser percebida como área potencial de expansão da cultura (Iúri Lótman e Boris Uspenski, “Sobre o mecanismo semiótico da cultura”, Ensaio de Semiótica Soviética, p.51).

Quando se escreve periodicamente para um fórum digital, se um texto tem relação com o anterior, é sempre necessário retomar os pressupostos, para garantir a progressão do debate: na internet, os textos sempre correm o risco de dispersão, seja pela “quantidade” de informações, seja pela “fragmentação” das mensagens. Assim, nessa situação comunicativa, é fundamental encontrar uma solução de continuidade; isto é, um recurso discursivo que funcione como um antídoto contra a perda da linha de raciocínio, unindo as pontas do início de um artigo com o fim de outro (parafraseando Machado de Assis).

Por falar do mestre na periferia do capitalismo, abrimos parênteses para uma digressão (expediente retórico tão caro ao escritor): para começar este artigo, justificando a necessidade de retomar o primeiro, começamos da mesma maneira que o outro – justificando-nos. Lembrar isso, pois, é uma possível solução de continuidade para “atar as pontas”: nos dois casos, antes de tratar do objeto desta seção (as relações entre a literatura e a revolução), falamos sobre o próprio “falar”, isto é, refletimos sobre a própria linguagem.

Seria mais paradoxal, se não fosse tão revelador, dizer que em ambos começamos antes de começar (do ponto de vista metalinguístico), exatamente no começo do movimento por uma alternativa independente socialista (na perspectiva política). Esse momento exige uma atenção particular, para que não cometamos os mesmos erros, não só no “plano do conteúdo” (isto é, das ideias, dos conceitos), mas também no “plano da expressão” (que se refere aos modos de dizer, aos cuidados com a linguagem em si). Em outros termos, além de nos preocuparmos com “o que discutir”, temos que atentar também para o “como discutir”.

Posto isso, enfim, para enfrentar o problema da descontinuidade das discussões nos meios digitais, relembremos alguns tópicos do artigo de estreia. No parágrafo introdutório, sob o pretexto de refletir sobre as dificuldades de começar um texto, porque isso implica fazer escolhas, que, por sua vez, dependem do “objetivo programado”: nessa perspectiva, as alternativas retóricas funcionam como táticas para alcançar a estratégia discursiva.

No parágrafo introdutório, partimos da reflexão sobre as dificuldades para começar um texto, porque isso implica escolhas, que dependem, por sua vez, do objetivo programado. Nessa perspectiva, as escolhas retóricas funcionam como táticas que se articulam a uma estratégia discursiva. Mas, claro, como marxistas, esta questão particular da construção textual só faz sentido combinada com a questão geral da reconstrução da esquerda revolucionária. Em outros termos, para podermos tratar da literatura e de suas interfaces com a revolução, é necessário entender o contexto político do debate: afinal, considerando que o “lugar é o espaço habitado”, para ocupá-lo, é necessário conhecê-lo.

Em síntese, a natureza do espaço determina a escolha (no plano textual e no político). Nos termos de Michel Foucault, podemos concluir assim: “(…) conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (A Ordem do Discurso, Coleção Folha Grandes nomes do pensamento, volume 6, p. 84).

O que nos interessa, de fato, é pensar as relações entre as duas ordens de discurso, isto é, a política e a literária (que se inscreve na ordem geral das questões estéticas), no “universo de discurso” revolucionário: logo, antes de abordar diretamente a literatura, é preciso considerar os “procedimentos de exclusão”, os mecanismos de “interdição” que operam na esfera política. No artigo anterior, começamos a discutir isso a partir da oposição entre as categorias estruturais “abertura” e “fechamento”: articulando essas noções, conclui-se que o regime discursivo marcado pelo traço dominante de sentido deste implica um maior grau de “coerções” (ou “regras de dizer”).

Isso pode ser enxergado em relação especular com o regime de partido: o centralismo democrático está para a abertura assim como o centralismo burocrático está para o fechamento. Se o propósito é discutir a literatura no contexto do discurso revolucionário, pois, não dá para desconsiderar que ela não pode ocupar o mesmo “lugar” em dois “espaços” diferentes. Esses distintos “modos de funcionamento”, enfim, condicionam tanto “o que pode ser dito” quanto o “como pode ser dito”, seja sobre questões políticas ou estéticas (que também são políticas): como dissemos, os diferentes regimes determinam o campo de “escolhas”.

Complementando, é importante destacar que a ordem caracterizada pelo traço de sentido do “fechamento” carrega também outras marcas, como a da “estaticidade”, da “exclusividade”, da “transparência”, presentes no conceito de “verdade”. A propósito, já que estamos falando de “discursos políticos” e “políticas dos discursos”, de “fechamento” e “verdade”, retomemos Foucault: “Em resumo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria Canguilhem, no verdadeiro” (idem, p.93).

O problema é como definir o que significa este “verdadeiro” (aliás, um perigoso precedente). Resgatando nosso objeto, nessa linha de raciocínio, eis a questão: se a literatura não tem compromisso com a “verdade”, está excluída da “disciplina revolucionária”? Sendo ainda mais específicos, se entendermos que “verdade” é sinônimo de “revolução”, o estatuto do discurso literário está subordinado à necessidade de reprodução do “real”, à exigência da propaganda política?

Nos termos propostos na epígrafe por Iúri Lótman (professor de Literatura Russa, na Universidade de Tártu, na Estônia), a produção literária só deixa de ser lida como “não-cultura”, incorporando-se à “cultura” (para nós, a “revolucionária”), ajustando-se às regras do “correto” (outra forma de “expressão” da “verdade”?). Do outro lado do espelho, é este o negativo da imagem: “errôneo” é o que é entendido como “falso” ou “mentiroso”.

Esclarecendo a sutil diferença: na “cultura” do realismo socialista, qualquer obra que não seja a expressão direta do trabalhador ou não represente o “culto à personalidade” é “falsa”; na “cultura” do trotskismo, na época específica de Literatura e Revolução (1924), qualquer produção artística que seja “contra a revolução”, é “mentirosa”. Esta concepção estética é caracterizada por uma maior “abertura”, uma vez que a arte pode não tratar diretamente da revolução, diferentemente da noção stalinista, mas não pode tratar de qualquer tema, já que existe uma “interdição” (lembrando Foucault): o “procedimento de exclusão” é o julgamento de seu conteúdo “contrarrevolucionário”. Nos próximos artigos, detalharemos essas questões.

*Paulo César de Carvalho é mestre em Linguística pela USP e professor de Língua Portuguesa. Publicou seis livros de poesia (o último, em 2016, “O som da cor da letra” – Editora Patuá). Foi militante da Convergência Socialista.