Por: Paulo César de Carvalho*, de São Paulo, SP
Ver com olhos livres
(Oswald de Andrade: Manifesto da Poesia Pau-Brasil, 1924)
Um artigo pode começar de várias maneiras, mas não de qualquer modo: por exemplo, com uma apresentação sumária do tema, com uma exposição dos pressupostos do debate; ou sem explicar nada, indo direto ao ponto. De um modo ou de outro, enfim, não importa, contanto que não seja de qualquer maneira: por isso é que o começo é a parte mais difícil do texto.
Nesta estreia no Esquerda Online, poderíamos ter iniciado comentando as razões para tratar da Literatura num espaço destinado ao discurso revolucionário, o lugar deste objeto no marxismo; ou discutindo de cara questões literárias, como a poesia de Maiakovski no contexto da Revolução Russa, ou a degeneração da arte sob a hegemonia da estética stalinista do Realismo Socialista. Entre muitas possibilidades, pois, escolhemos começar com uma abordagem metalinguística, problematizando o próprio processo de escrita.
Considerando que a produção textual é uma expressão do pensamento, que há uma relação entre as formas de escrever e os modos de pensar, questionamos também, claro, o processo de reflexão (as “escolhas” do pensamento que se realizam na materialidade do texto). Para retomar a formulação inicial, o fato de esta ser uma das “várias maneiras” possíveis de introduzir o artigo é bem diferente de concluir que ele poderia ter começado de “qualquer modo”.
Os termos, portanto, não são sinônimos: a fim de que não nos acusem de “tautologia”, esclarecemos que eles se distinguem aqui pelo traço de sentido da “gratuidade” (que caracteriza o “começar de qualquer modo”). Em outras palavras, pode-se alcançar o resultado programado de “várias maneiras”; quer dizer, por meio de diferentes “táticas”, é possível conquistar o objetivo “estratégico”. O importante é que a escolha dê uma “orientação argumentativa” ao texto, para que este consiga atingir seu “propósito comunicativo” (na terminologia da Linguística Textual).
Retomando a questão de que partimos, para concluir sua justificativa, começar é difícil porque implica fazer escolhas: escolher não é fácil, porque implica não só ter clareza sobre o objetivo estratégico, mas sobre as táticas mais eficientes para chegar a ele. Se, em sentido literal, estamos tratando do processo de construção textual, em sentido figurado, queremos refletir também sobre este momento político de reconstrução de “uma alternativa independente socialista”.
Para que esses dois níveis semânticos não pareçam gratuitos, pois, precisamos explicar como eles se articulam coerentemente com o “propósito” deste artigo. Esclarecendo, entendemos que o traço comum de sentido entre esses dois planos de análise (o do texto e o da política) é o da “abertura”: o termo “várias maneiras” traduz essa noção (em contrapartida, “uma única maneira” implica “fechamento”).
Isso é muito sintomático para ser desconsiderado: poder escolher novos objetos de reflexão (temas da literatura, da cultura, do comportamento), a forma de abordá-los, o “estilo” (por exemplo, o grau de formalidade da linguagem, o “tom” mais científico ou literário) é reflexo particular do processo de abertura política em que nos inscrevemos (representado, por exemplo, neste fórum digital).
Enfim, se antes não se discutia literatura, não é porque só se discutia política, mas porque não se discutia. O modo de funcionamento hermeticamente fechado de uma organização política (o regime) manifesta o mesmo traço estrutural do “fechamento” presente nos temas que podem ser abordados (limitados) e nas maneiras de abordá-lo (limitadas). Isso significa ver poucas coisas de poucas maneiras; ou, pior, ver uma única coisa de uma única maneira.
Essas redundâncias, aliás, são sintomáticas: empregamos as mesmas palavras (“limitados”, “limitadas”; “poucas”, “poucas”; “única”, “única”) para traduzir no “plano da expressão” a mesma ideia de “repetição” que apontamos no “plano do conteúdo” (conforme as categorias da Linguística, área de conhecimento a que recorreremos muitas vezes nesta seção do Esquerda Online). Queremos dizer com isso que a lógica do “fechamento” opera por “subtração” em todos os níveis: do regime de partido à literatura, da cultura ao comportamento.
Em outros termos, as “escolhas” vão sendo progressivamente “limitadas”, até que, pouco a pouco, de “poucas” se convertem em “única”: as opiniões diferentes vão sendo eliminadas; diminui o espaço de discussão; o “fechamento” conduz à “exclusividade”. Na etapa final deste percurso, resta o “único”: não cabe outro tema; não há lugar para outra abordagem; só há uma opinião. Não há espaço para o “outro”: não há “escolha”, porque a direção escolhe por todos.
Em síntese, essa ordem do “fechamento” leva à “exclusividade”, que conduz à “ditadura do único”: levada ao extremo, guardadas as devidas proporções, é a lógica do regime de partido único, do socialismo em um só país, do realismo socialista. A propósito, diante dessa afirmação, certamente muitos entre nós acusarão a impropriedade do raciocínio, argumentando que estamos confundindo trotskismo com stalinismo.
Em primeiro lugar, podemos replicar que o problema não envolve o trotskismo em geral, mas certo trotskismo em particular. Em seguida, já antecipando a esperada tréplica de que, ainda assim, é incoerente a comparação com o stalinismo, argumentamos que, neste contexto de discussão, as diferenças não passam da superfície. Já que este espaço de debate tem como foco a literatura e a língua, podemos explicar também de maneira mais técnica: na “estrutura aparente”, a diferença está no “plano da expressão”, isto é, nas palavras “trotskismo” e “stalinismo”; na “estrutura profunda”, entretanto, o “plano do conteúdo” revela “valores semânticos” parecidos.
Ressalve-se que não estamos querendo dizer com isso que, em estética, aqueles “trotskistas” defendem o realismo socialista: não nos pautamos por nexos causais simplistas; o nosso desafio é tentar entender as sutilezas dos processos. Assim, quando falamos na semelhança estrutural entre ambos, é partindo de indagações como esta: Há, de fato, diferenças substanciais entre os princípios que regem a literatura do realismo socialista e os que definem que a arte tem “toda a liberdade, exceto contra a revolução”?
Vale lembrar que esta formulação é de Trotsky, na obra Literatura e Revolução. Apesar de não ser tão restritiva quanto a dos stalinistas, por permitir que o artista trate de outros temas que não os que exaltam o trabalhador e professam o “culto da personalidade”, também submete a arte a imperativos políticos, que condicionam, pois, os valores estéticos. Então, resta a pergunta: Será que a maior “abertura”, nesse contexto, não seria um simulacro de “democracia”, com o objetivo (ainda que inconsciente) de esconder outra forma de “fechamento”?
Ainda discutiremos mais essas questões no próximo artigo, considerando que, para refletir sobre o “lugar” da literatura no discurso revolucionário, primeiro é preciso conhecer bem o “espaço” do debate. Afinal, como lembra o historiador Michel de Certeau, “o lugar é o espaço habitado”. Sabemos que não é fácil encontrá-lo, mas sabemos também que existem escolhas que podem encurtar as distâncias: por isso é que é difícil começar.
*Paulo César de Carvalho é mestre em Linguística pela USP e professor de Língua Portuguesa. Publicou seis livros de poesia (o último, em 2016, “O som da cor da letra” – Editora Patuá). Foi militante da Convergência Socialista.
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