Por: Niege Pavani, do PSOL em São Carlos, SP
Para nós, mulheres, fazer política é tarefa duplamente difícil: além de todas as dificuldades que a vida pública e dentro das instituições impõe, temos de exigir, à força, visibilidade dentro de espaços ultra-masculinizados, misóginos, e elitistas. É preciso gritar em meio a uma multidão de homens brancos de meia-idade para nos fazer ouvir. Quando sentimos essa dificuldade, compreendemos com clareza o cenário eleitoral brasileiro: as mulheres somam 51% da população do nosso país, mas têm míseros 11% da representatividade em candidaturas eleitas.
Pouco pode ser feito de imediato para mudarmos essa complexa conjuntura. Mas desse pouco é fundamental garantir que os parcos dispositivos de tentativa de inclusão existentes dentro da legislação eleitoral sejam – de fato – cumpridos.
A lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009 torna expressamente proibida a composição de chapas proporcionais (vereadoras/es e deputadas/os) que não tenham, no mínimo, 30% de candidaturas de um dos dois gêneros. Sendo fato dado que a esmagadora maioria de candidatos são homens, fica patente que a referida lei tem como principal horizonte obrigar os partidos ou suas coligações a comporem processos eleitorais mais igualitários. Nesse sentido, complementando o propósito subjacente à lei, em 2015 foi feita a adição de que, além do mínimo de 30% de mulheres componentes das chapas, é necessário que ao menos 5% dos recursos do fundo partidário sejam destinados à realização de suas campanhas, tentando coibir, por mais essa via, a existência de “candidaturas laranja” ou simuladas.
A tentativa legal está posta, mas a realidade numérica do último processo eleitoral municipal, em 2016, nos mostra que estamos longe de obter êxito em erradicar fraudes na cota de gênero. Neste último processo eleitoral, 16.131 candidaturas não receberam nenhum voto, nem mesmo do próprio candidato ou candidata. Motivos mil podem denunciar essa indiferença diante das urnas: imprevistos e dificuldades pessoais enfrentadas pelos candidatos, falta de recursos financeiros dos comitês dos partidos e coligações, ou ainda a própria candidatura utilitária para cumprir a lei 12.034 – as candidaturas laranja.
Dessas 16.131 candidaturas com zero voto, 14.417 são de mulheres. Uma média de quase 9 mulheres para cada homem candidato com votação zerada. Esses dados preocupam e pedem análise dedicada porque nos obriga admitir o quão difícil e fechada às mulheres é a disputa política e eleitoral. Além disso, quando esses dados são divulgados e debatidos dentro das perspectivas do senso comum, tornam-se uma arma usada contra os movimentos de mulheres; uma espécie de evidência da inaptidão feminina para a política, seja no próprio domínio da gramática do politiquês, seja pela falta de empenho em gerir campanhas sólidas em período eleitoral. Trata-se da legitimação de uma cultura machista e excludente que representa a mulher como estrangeira à vida pública.
Os números, quando vistos sob recortes regionais, denunciam que em certas localidades o quadro da falta de representação e os esquemas de fraude eleitoral são ainda mais graves. No estado de Minas Gerais, por exemplo, 2.178 candidatas não receberam nenhum voto, colocando Minas como o estado em que as candidaturas fraudulentas estiveram mais presente neste último processo eleitoral. Isso nos permite identificar o quão enraizada estão as práticas de diminuição da figura da mulher na política. Por isso, os gráficos de progressão de mulheres eleitas nos últimos processos eleitorais têm evoluções muito discretas: em 2016, 7.803 mulheres foram eleitas vereadoras. Um acréscimo de apenas 2,2% do resultado das eleições de 2012, em que tivemos 7.635 vereadoras eleitas.
Situação de gravidade semelhante se deu na cidade de São Carlos, interior de São Paulo, onde uma chapa de coligação proporcional entre os partidos PROS, PEN e PTN (e que compunham a chapa da majoritária do candidato a prefeito eleito pelo PSB) tiveram 6 candidatas mulheres sem nenhum voto, e uma com um voto.
Neste recorte local de São Carlos, em que temos mais acesso, consegue-se compreender a ordem e a dinâmica das composições fraudulentas das chapas em detalhes: de início, as abordagens para filiação são feitas já com a explícita indicação da necessidade do cumprimento da lei 12.034, não envolvendo em momento algum a mulher em questão dentro de critérios de histórico de militância política, envolvimento prévio com mecanismo governamentais ou institucionais, ou mesmo considerando-se a disposição pessoal das mesmas em participar da disputa eleitoral. Fica evidente que a inauguração da fraude se dá na própria filiação, consumada, muitas vezes, como troca de gentilezas solicitadas por homens da política local com longo histórico de relações clientelistas com seus currais eleitorais.
Uma dessas mulheres componentes da chapa PROS/PEN/PTN em São Carlos, declarou ter recebido ligações do presidente do partido (PROS) pedindo, como favor, para que se filiassem. Assim poderiam atingir a cota de 30% de candidaturas de mulheres e registrar a totalidade da chapa, viabilizando suas candidaturas prioritárias. Quanto ao material e infraestrutura de campanha, a mesma candidata declarou que, apesar de ter sido oferecido a ela uma quantidade de panfletos, recusou, pois teria dito que o acordo, desde o princípio, era a filiação e a aceitação da candidatura como gesto amigo para com o presidente do partido, e não uma disposição para tocar a campanha como um todo.
No caso de São Carlos, o descumprimento da cota de gênero foi violado em duas frentes: a primeira nas candidaturas fictícias que foram registradas para o mero cumprimento burocrático da lei, e segundo pela inexistência de gastos do fundo partidário com a realização da campanha. Por conta de indícios tão evidentes, o promotor eleitoral à época em exercício, seguiu a tendência nacional de oferecer uma denúncia ao Ministério Público, elencando as condutas fraudulentas identificadas no partido PROS e sua coligação. A tendência local sinaliza para um endurecimento na fiscalização e cumprimento da lei 12.034, o que, longe de ser um dispositivo que irá instantaneamente mudar o cenário político regional e nacional, é uma iniciativa que o movimento de mulheres deve endossar.
Tal adesão é importante para nos apropriarmos tanto dos dispositivos jurídicos que inibem práticas objetificadoras das mulheres nos processos eleitorais, quanto para que coloquemos como pauta fundamental do movimento a própria disputa institucional.
Parece inevitável a necessidade de assumirmos que, para alcançarmos a meta de erradicação das fraudes na cota de gênero, nos engajemos na política e (re)construamos a atmosfera da vida pública. Isso parece, novamente, inevitável para um progresso substancial da representatividade feminina em gráficos futuros, sobretudo porque está claro que não será só pela disposição de homens de toga que o feminismo avançará.
Assim, a luta das mulheres deve correr por todos os corredores da sociedade: nossa disposição para diluir cada vez a passos mais largos as estruturas patriarcais que atrofiam as potencialidade de toda e qualquer pessoa, precisa, com dedicação, se infiltrar nas mais distintas esferas governamentais. Será, também, de dentro desses espaços que conseguiremos vocalizar algumas das nossas (muitas) demandas. É preciso que uma política sobre nós seja feita diretamente por nós.
Fontes:
UOL – Ministério Público investiga 128 candidatas que não receberam nenhum voto no RS
EM – Candidaturas de mulheres estão na mira do Ministério Público
Folha UOL – Número de eleitas cai e mulheres perdem representação política
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