Editorial de 20 de janeiro,
Depois de pouco mais de dois meses de especulações, declarações inusitadas e, o mais importante, de frenéticas negociações e tramas nos círculos burgueses e no topo do aparelho de estado americano, Donald Trump assume hoje o governo do país mais poderoso da Terra.
Abre-se um período de incertezas, de rupturas, mas também de continuidades. Após uma campanha em que esboçou uma política internacional mais tendente a apoiar soluções bilaterais que favoreçam ainda mais os Estados Unidos, muitos são os pontos incertos e obscuros.
No terreno nacional, seu programa aponta para um reforço das políticas privatistas, xenófobas e antidemocráticas em todas as áreas. A composição de uma equipe de governo que contém uma fina flor dos bilionários do país e uma boa quantidade de reacionários extravagantes, aponta para um cenário que pode indicar um giro importante em termos de políticas nacionais e mundiais. Mas a complexidade do que está em jogo é de tal monta que reina muita dúvida mesmo entre os círculos mais restritos da política dominante nos EUA e no mundo sobre os alcances e a implementação de algumas mudanças.
Posto esse alerta, listamos alguns pontos para se observar o que está em jogo na política mundial:
1) qual será a política em relação à Rússia? Haverá uma tentativa de melhorar as relações e de pactuar uma nova divisão regional de influência na Europa Oriental e no Oriente Médio? A crescente abstenção americana que se observou frente ao regime de Assad na Síria se aprofundará como anunciou o então candidato ou permanecerão as tensões e as disputas como falou o Secretário de Estado de Trump, Tillerson? Levando em conta a clara confrontação com a China, até que ponto se suavizará a relação com a Rússia?
É importante levar em conta que a posição de supremacia americana no mundo é menor do que foi até pelo menos a queda do Muro de Berlim, pela diminuição de seu peso econômico (em 1945, os EUA tinham a metade da produção industrial do mundo e hoje não passam de 20% dela, por exemplo), ainda que seu peso militar continue superior a todos os demais combinados. Mas mesmo os EUA não podem sustentar guerras importantes simultâneas como se viu no Iraque e no Afeganistão.
2) em relação à China: está claro que será um dos pontos centrais da política de Trump.
Há nesse sentido um elemento de continuidade, pois não devemos nos esquecer que o “giro ” para a Ásia e a concentração de 60% da marinha americana naquela região já foram a política oficial dos EUA durante o governo Obama.
O debate é: até que ponto o novo governo irá tensionar as relações com a segunda economia mundial? O telefonema à presidente de Taiwan e as ameaças de Tillerson em sua audiência no Senado no sentido de impedir o acesso às ilhas artificiais do Mar do Sul da China que o gigante oriental construiu serão a tônica ou são apenas o blefe de quem quer negociar de forma mais dura? E como comporá o necessário leque de países aliados na Ásia para se contrapor à China?
Recordemos que a China conta com a facilidade geográfica de estar defendendo uma região bem próxima de suas fronteiras, apesar de ter uma clara inferioridade frente aos americanos quanto à produtividade do trabalho e do tamanho de suas forças armadas. Como compor o delicado equilíbrio de rivalidades, por exemplo, entre Japão e Coreia do Sul? O novo incidente diplomático desta semana sobre o tema da reparação e da memória das centenas de milhares de mulheres escravizadas pelo império japonês na Ásia é uma amostra dos problemas e das tensões. Diga-se, de passagem, que o governo da Coreia foi derrubado há pouco por gigantescas manifestações que contaram com a presença dos sindicatos, da juventude e dos (pequenos) partidos de esquerda do país.
3) as declarações de negação à crescente tragédia ambiental fomentada pelo regime capitalista darão a tônica de sua política ou manterá algo do jogo de meias medidas, no fundo inócuas dada a gravidade da situação, das últimas administrações?
4) que relação Trump estabelecerá com a União Europeia e sua crise cada vez mais grave? Oferecerá alguma compensação em termos de parceria econômica ao aliado mais tradicional, o Reino Unido ou aproveitará para recompor alianças em detrimento fundamentalmente da Alemanha (e também da França)?
5) seguirá com o sentido mostrado pela indicação do novo embaixador em Israel, um sionista fanático que pretende dar via livre aos setores mais fascistas daquele país e transferir a embaixada para Jerusalém, uma verdadeira declaração de guerra aos palestinos e aos muçulmanos do mundo em geral? Ou seguirá com a política de apoio total a Israel, mas mantendo a ficção das eternas negociações que só dão tempo (e armas e dinheiro) para a expansão da dominação sionista sobre toda a Palestina Histórica? Ainda no Oriente Médio, será revisto ou revogado o acordo nuclear com o Irã como declarou o candidato Trump?
No terreno nacional, o grande capital, especialmente o de Wall Street, está exultante com a perspectiva do corte abrupto de impostos, de incentivos a um plano de investimentos em infraestrutura. A questão em discussão é que não há uma clareza de como financiar o plano. Com o pequeno espaço de aumento da dívida pública, depois do aumento exponencial com o salvamento dos bancos e das indústrias automotoras por Obama, a alternativa apresentada pela equipe de Trump é o estímulo à repatriação de capitais, mas seus alcances são imprecisos.
No terreno da educação e da saúde, a orientação é clara: privatização. O alvo mais concreto é o fim abrupto do imperfeito e privado seguro de saúde para 18 milhões de pessoas, o chamado Obamacare.
No terreno migratório, ameaça deportar 11 milhões de imigrantes e endurecer o controle de fronteiras, além de adotar medidas discriminatórias específicas contra alguns imigrantes em particular, como os muçulmanos e os latinos. Um aumento qualitativo em relação ao governo Obama, que já havia expulsado 2,5 milhões durante seu período como presidente. Quanto à construção do infame muro na fronteira com o México, há dúvidas se será levada à prática.
Na área ambiental, espera-se a tentativa de derrubar algumas barreiras à exploração de recursos energéticos, como a que impediu o oleoduto que passava pelas terras dos Sioux em Dakota do Norte.
As dúvidas sobre a implementação desse tipo de medidas são quanto a alcançar o consenso necessário entre as frações burguesas e de ter a correlação de forças social para implementá-las.
Um fascismo à americana?
Dentre os exageros que se escuta entre setores da esquerda, e mesmo entre os trabalhadores organizados e na juventude, esse é um dos mais desorientadores. Se é verdade que nada de bom podem esperar os trabalhadores e o povo americano, em particular seus setores mais oprimidos e reprimidos, como os negros, os imigrantes e as mulheres (espantadas e enojadas com a retórica abertamente misógina do agora presidente), a afirmação de que se trata de um governo fascista não é uma analogia que ajude a explicar e muito menos lutar contra os seus atos e efeitos.
A analogia com os anos 30 e ascensão dos movimentos fascistas não nos parece correta e não ajuda a compreender o que está acontecendo. Trump (e a maior parte dos seus assemelhados na Europa) não chegou ao governo no bojo de um movimento fascista, que se caracteriza pelas hordas paramilitares e por seus atos violentos para acabar com todo tipo de organizações dos trabalhadores, do povo e democráticas em geral. Não estamos perante o que seria um governo da Aurora Dourada grega ou do Pegida alemão.
O que se pode esperar de imediato é um aumento no papel do enorme aparelho repressivo do estado americano, de sua polícia militarizada e de seus incontáveis serviços secretos. Mas nesse sentido seria uma continuidade piorada do que já existe desde os atentados do 11 de setembro de 2001. Dito isso, pecaríamos pela superficialidade ao negar a importância das ações de semelhante governo no país mais poderoso do mundo. Mesmo com os contrapesos da institucionalidade do estado americano, o peso das ações do executivo é imenso e pode piorar qualitativamente a vida de nações inteiras e de milhões de pessoas dentro e fora dos EUA.
Lutar, unificar e defender os direitos
Os ataques estão programados, o que se saberá em muito breve serão seus alcances concretos. Com esse panorama, o que se pode esperar em termos de resistência?
Em primeiro lugar, não é verdade que Trump tenha significado uma imensa onda direitista que tenha tomado conta do gigante da América do Norte. Sua eleição se deu mais pela falta de entusiasmo na candidata tradicional do establishment, Hillary, do que por uma súbita conversão de massas a Trump. Nas mesmas áreas que lhe deram o triunfo no Meio-Oeste americano, Bernie Sanders, o candidato que se declarava socialista dentro do partido Democrata, havia vencido.
Na verdade, não houve maior entusiasmo dos setores mais explorados e conscientes do povo americano para enfrentá-lo em razão de que a alternativa era Hillary, a candidata mais claramente vinculada ao establishment. E as esperanças de uma recuperação do antigo nível de vida dos trabalhadores daquela região, assim como de todo país, não poderão ser atendidas, porque os empregos gerados pelo capital em todo o mundo, e também nos EUA, são precários e mal pagos, mesmo que haja diferenças muito importantes de país para país.
Não é por acaso que há índices de confiança significativamente mais baixos em Trump (só 40% dos americanos têm expectativas otimistas quanto a seu governo) do que nos últimos 40 anos. As manifestações espontâneas contra sua eleição, em particular por parte da juventude, das mulheres e dos imigrantes são uma fonte de esperança. Vamos observar como serão as manifestações previstas em todos os EUA para o dia da posse e os subsequentes.
Mas o desafio da esquerda americana será o de impulsionar a resistência, unificar as lutas, construir alianças de luta com muita democracia de base e que se espelhem no melhor da tradição americana do movimento sindical dos anos 30, da luta pelos direitos civis dos anos 50 e 60, da luta contra a guerra do Vietnam. É por esta América que estamos torcendo. É ela que poderá resistir aos desejos e atos do candidato a Bonaparte (ou bufão, na interpretação menos perigosa) misógino e racista que assume o governo americano.
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