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Colunas

A Narrativa Figurada da Reforma da Previdência

Direito e (In) Justiça

Juliana Benício Xavier e Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira são advogadas populares e compõem o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Não há melhor ditado popular capaz de refletir a razão das expectativas que a sociedade brasileira tem depositado no Poder Judiciário. Em terra em que as esperanças com o parlamento e com o Executivo vêm sendo historicamente esmagadas, o Judiciário assume o lugar de mestre e feitor da decência.

Não podemos nos esquecer, PRIMEIRAMENTE, que esse Judiciário interpreta, ou pelo menos deveria, as leis criadas pelos dois outros poderes da República. Além disso, a função de defensor incansável da moralidade segue as premissas éticas relacionadas ao individualismo e à segmentação social, premissas do liberalismo político, teoria que está na gênese de sua existência como um poder independente dos demais.

Será acertada a decisão de deixar nas mãos de um conjunto de indivíduos que ocupam lugar privilegiado na sociedade os rumos das nossas vidas? Os posicionamentos assumidos pelo Judiciário são realmente técnicos e imparciais, justificando que abramos mão de um ativismo social em favor do ativismo judicial? Essas são algumas das indagações que Juliana Benício e Larissa Vieira, advogadas populares voltadas à defesa dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores, de comunidades atingidas por megaempreendimentos, de população em situação de rua, de mulheres, de negras e negros, pretendem responder semanalmente na coluna ‘Direito e (in) Justiça’.

Por Larissa Vieira e Juliana Benício

Para inaugurar a coluna do ano pensamos em escrever uma fábula, aproveitando sua característica de trazer uma lição de moral ao final, muitas vezes, em forma de ditado popular.

A ansiedade é tanta, todavia, que não esperaremos até o final para apresentar nossas conclusões, já as exibimos: “Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que está em conformidade com o direito é justo, não existe direito adquirido dentro do capitalismo financeiro internacional”.

Já que apresentamos a conclusão tão logo iniciado o texto, vamos abrir mão, também, da fábula. George Orwell já teve a oportunidade de escrever uma estória que mimetiza a realidade desta colônia chamada Brasil, com seus tiranos que nunca se cansam de exercer seus podres poderes.

Focando no que realmente interessa, perguntamos ao (à) leitor (a): o que você entende por direito adquirido? Certamente alguém ousará dizer que se refere a um direito definitivamente incorporado ao patrimônio jurídico de seu (sua) titular, ou seja, uma vez integrado, não pode jamais ser excluído.

Talvez emende afirmando que a garantia de que não pode haver lei ou modificação constitucional alterando direito adquirido é uma cláusula pétrea constitucional, o que quer dizer que não pode haver alteração constitucional para excluir o direito ao direito adquirido.

Ledo engano! Direito adquirido é uma ficção, é letra morta, é um símbolo desconstituído de valor que foi colocado no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição brasileira como um álibi, para criar confiança em um sistema jurídico administrado por um Estado completamente desinteressado em cumprir compromissos assumidos em nome do povo.

Ora caríssimo (a) leitor (a), a mente humana é capaz de infinitas elucubrações. E quando o objeto de análise é o direito à previdência social, o poder inventivo é aguçado.

Em outros tempos já foi possível pensar, por exemplo, que qualquer alteração nas regras de aposentadoria que as tornem mais rigorosas não poderá ser aplicada a quem já é contribuinte do sistema, sob pena de inconstitucionalidade.

Todavia, ainda em 1946, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 359 (reeditada em 1963, sem alteração substancial no conteúdo) que abriu a porteira para se dizer que enquanto todos os requisitos para a aposentadoria não estejam consumados, o beneficiário detém, tão somente, uma expectativa de direito.

Com esse argumento e vários no mesmo sentido, assistimos ao desmantelamento contínuo da previdência social, iniciado pelo governo FHC com a Emenda Constitucional – EC nº 20/1998 que aumentou o tempo de serviço para fins de aposentadoria tanto para o (a) servidor (a) público (a), quanto para o (a) trabalhador (a) beneficiário (a) do Regime Geral de Previdência Social (RGPS).

Lula e Dilma também assinaram seus nomes na lista dos sinistros. Para trazer apenas um exemplo, ele taxou os (as) servidores (as) inativos (as) – EC nº 41/2003 – e ela reviu a fórmula de cálculo do auxílio doença, de forma que muitos benefícios tiveram seus valores substancialmente diminuídos (Lei 13.135/2015).

Passados os últimos três parágrafos, reformulamos a pergunta: pode-se, realmente, confiar na existência de direitos adquiridos no Brasil?

O atual imperador colonial, também chamado por alguns de mordomo, por seus fiéis serviços prestados à burguesia internacional, na proposta de emenda à constituição enviada ao congresso nacional (PEC 287/2016), afirma que estão sendo preservados os direitos adquiridos, relacionados aos (às) beneficiários (as) que já implementaram as condições para se aposentarem. Vale a pena transcrever essa passagem da PEC para materializar o flagrante:

Da preservação do direito adquirido e das regras de transição

9. A proposta de Emenda não afeta os benefícios já concedidos e os segurados que, mesmo não estando em gozo de benefícios previdenciários, já preencheram os requisitos com base nas regras atuais e anteriores, podendo requerê-los a qualquer momento, inclusive após a publicação da presente Emenda.

Destaca-se que a proposta acaba com a aposentadoria por idade, benefício instituído em prol da população de baixa renda que passa boa parte de sua vida laboral na informalidade e não consegue se aposentar por tempo de serviço. A contribuição do (a) trabalhador (a) rural aumentará, o que vai na contramão do necessário estímulo à agricultura familiar, indispensável para a queda dos preços dos alimentos e, por consequência, controle da inflação.

Nos textos que haveremos de escrever nas semanas seguintes, pretendemos discutir que a proposta de desmonte (PEC 287) atinge a previdência como um todo, dirigindo-se ao conjunto do povo trabalhador, englobando rurais, informais, celetistas e servidores (as) públicos (as).  

Para além de aumentar, concomitantemente idade e período contributivo; praticamente extingue a aposentadoria especial, principalmente para quem trabalha em situações de risco à integridade física (beneficiários do adicional de periculosidade); impede o acúmulo entre aposentadoria e pensão; possibilita que a pensão por morte seja paga em valor inferior ao salário mínimo.

A proposta em discussão altera substancialmente os direitos de quem já está aposentado, em desconformidade com a promessa de manutenção dos direitos adquiridos acima transcrita.

Suponhamos que seu avô (seja ele funcionário público ou empregado da iniciativa privada) seja aposentado e tenha como dependente, exclusivamente, sua avó. Pelas normas atuais, quando ele morrer, a matriarca receberá uma pensão por morte em valor igual à aposentadoria que ele recebia, se fosse aposentado pelo RGPS, ou igual ao valor da totalidade de seus proventos, até o teto do RGPS, acrescido de 70% da parcela excedente a esse limite, caso ele fosse beneficiário de regime próprio de previdência social. As hipóteses valem ainda que ela também seja aposentada.

Todavia, se passarem as regras da PEC 287, caso sua avó seja aposentada, ela deverá optar entre seu benefício e a pensão pela morte de seu avô. Na hipótese de ela não ser aposentada, receberá 50% do valor do benefício auferido pelo seu avô, acrescido de 10%, limitado ao teto do RGPS, fosse seu avô servidor público ou trabalhador celetista.

Ora, as condições para se aposentar terão sido atingidas, o direito terá sido adquirido, mas ainda assim, caso o (a) aposentado (a) não tenha falecido à data da promulgação da PEC 287, o (a) pensionista não terá o direito ao benefício segundo as regras vigentes à data que seu (sua) companheiro (a) aposentou-se.  

E onde entra o capitalismo financeiro internacional, mencionado no início do texto?

É ele que gere as finanças públicas no Brasil e no mundo. É para sanar sua sede por recursos que se cria o mito de que a previdência é deficitária, mobilizando a opinião pública para abrir mão de direitos historicamente conquistados, para que sobrem recursos a serem destinados à remuneração do capital financeiro, ou seja, ao pagamento da questionável dívida pública.

Foto: Thomas Leuthard