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BRASIL

O menino que conquistou o mundo

Por: Michel Silva, Blumenau, SC

Depois de ter passado com um pequeno público pelos cinemas brasileiras, o filme O menino e o mundo ganhou alguma publicidade no país a partir de sua indicação à categoria de Melhor Animação no Oscar.

Embora a imprensa brasileira tenha destacado principalmente essa indicação, a animação vinha de uma vitoriosa participação em prêmios e festivais em todo o mundo, como o respeitadíssimo Festival de Animação de Annecy (que, no ano anterior, havia sagrado campeão o também brasileiro Canção de amor e fúria).

Em sua batalha no Oscar, O menino e o mundo tinha como maior desafio não o reconhecimento enquanto grande obra cinematográfica – o que havia conquistado em todo o mundo – mas uma ferrenha disputa contra o modelo predominante de cinema de animação, quase que completamente informatizado, que naquela premiação estava representado pelo filme Divertidamente.

Com o passar dos anos, o gosto do público e da crítica parece ter incorporado certa racionalidade técnica que exige traços perfeitos a partir de um padrão estético assumido como padrão.

Na disputa enfrentada por O menino e o mundo havia uma ironia metalinguística, afinal a técnica de animação havia passado por um processo análogo à modernização da sociedade representada no filme. O cinema de animação, a partir da década de 1990, passou a ser dominado por grandes produções que cada vez mais utilizam a computação gráfica.

Essa forma de realizar os filmes contrasta com uma forma artesanal, como os desenhos feitos à mão ou mesmo o stop motion (que, de forma alguma, excluem o uso da informática para algumas ações básicas, como a montagem ou a sonorização, mas em doses muito menores do que a linguagem atualmente dominante).

No público criou-se, comercialmente, a expectativa de que o cinema de animação deve conter certa perfeição, sejam nas linhas bem definidas dos cenários, nas personagens bem delineados e representados de forma realistas em alguns casos e na distribuição equilibrada de cores e objetos.

Certamente não há problema no uso dessa técnica, afinal nas mãos de grandes artistas é possível alcançar belos resultados estéticos. O principal problema desse debate encontra-se no domínio comercial que a animação computadorizada alcançou, tornando-se em certa medida um padrão cultural forçosamente universalizado.

E, com isso, formas de realização que fogem a esse padrão são consideras estranhas, não são assistidas ou até mesmo são consideradas ruins por não possuírem efeitos mirabolantes de computador. Esses filmes, que não exploram um grande aparato técnico, são considerados simples, infantis ou inclusive feios pelo gosto dominado pela racionalidade técnica.

Ademais, não possuem o mesmo aparato publicitário que as grandes produções estadunidenses, fazendo com que parte do público potencial nem sequer saiba da existência daquele filme.

Esse embate entre a racionalidade técnica e uma forma mais artesanal de produção, ao qual O menino e o mundo enfrentou ao adentrar o mundo comercial do Oscar, em grande medida é o tema do próprio filme.

No filme, o protagonista sai de casa em busca do pai, que aparentemente saiu a procura de um melhor emprego. O menino deixa a vida numa comunidade rural e vai conhecendo o mundo. Encontra trabalhadores rurais em ambientes mecanizados, conhece cidades bastante urbanizadas e toma contato com variados equipamentos tecnológicos.

Contraditoriamente, em paralelo, percebe a solidão e a tristeza vivida pelas pessoas, além de problemas sociais, como a violência e a pobreza. Ou seja, ao deixar sua pequena comunidade rural em que vivia, o menino toma contato com as várias facetas da modernização.

Este mecanismo proporciona ao mesmo tanto o desenvolvimento da técnica e da urbanização, como a ampliação de diferentes formas de desigualdade e a dificuldade de acesso ou a marginalização de algumas pessoas.

Esse mundo modernizado passa a ser uma realidade que deve ser aceita como natural pelas pessoas, afinal é considerada melhor do que formas anteriores, tidas como “antigas” ou “primitivas”.

No discurso hegemônico, o mundo moderno é apresentado como sendo melhor, afinal garante acesso a uma infinidade de bens de consumo para as pessoas, distribuídos de acordo com o trabalho realizado por cada um. O moderno é sempre apresentado como melhor, assim como o cinema de efeitos de computador é considerado superior àquela feito utilizando técnicas “antigas”.

Nesse sentido, ao abordar as contradições do processo de modernização vistos pelo olhar do protagonista, O menino e o mundo também reflete acerca de sua própria condição de um produto cultural em meio à sociedade do espetáculo.

Sua situação no Oscar, disputando o prêmio com animações de elevado valor de produção e distribuição, apenas ilustra o contexto mais amplo vivenciado pelas tentativas contra hegemônicas de fazer cinema de animação, que vão ao longo dos anos se enfraquecendo (veja-se, por exemplo, a interrupção na produção dos filmes do Studio Giblin).

Em vez de equilibrar as possibilidades de uso da técnica moderna com a subjetividade criativa de uma estética artesanal, acredita-se que o novo produzido racional e metodicamente é um modelo que deve substituir qualquer forma “primitiva”.

Esse é em grande medida o discurso capitalista, ilustrado em O menino e o mundo, que desde o começo de sua constituição, como modo de produção dominante, procurou destruir as formas antigas de produção da vida e das subjetividades.

Ainda que o menino do filme tenha conquistado o mundo, sua linguagem é estranha àquela naturalizada pela sociedade capitalista, como aquele balbuciar dos personagens dessa brilhante animação brasileira.

Foto: Extraída da internet

Marcado como:
cinema / cultura