O Esquerda Online tem o prazer de publicar o artigo de Jonathan Cook, o único jornalista estrangeiro com base em Nazaré, onde reside desde 2001. Nazaré é a principal cidade palestina nas fronteiras de Israel. O artigo versa sobre um acontecimento símbolo do auge do crescimento da extrema-direita mais radical dentro do estado sionista com a eleição de Trump. Trata-se do julgamento de um soldado que assassinou a sangue frio um palestino ferido já controlado na Cisjordânia. Um evento banal que as tropas de ocupação praticam correntemente, que em geral não é nem julgado, mas que deu origem a uma disputa que mostrou a real força dos colonos dentro do estado sionista. Jonathan Cook é autor de inúmeros artigos que podem ser lidos em seu blog e de importantes livros como Disappearing Palestine (Palestina em desaparecimento) , Israel and the clash of civilizations (Israel e o choque de civilizações) e Blood and Religion – the unmasking of the Jewish and democratic state (Sangue e Religião – o desmascaramento do estado judeu e democrático), infelizmente ainda não traduzidos ao português. Agradecemos especialmente ao autor pela permissão para publicar seu artigo.
Publicado em 10 de Janeiro de 2017 no jornal The National, de Abu-Dhabi
O Reino Unido tem o Brexit. Os Estados Unidos, um próximo presidente, Trump. E Israel agora tem Elor Azaria. Pode não ter o mesmo alcance, mas, ao final das contas, o ponto de inflexão poderá demonstrar-se decisivo.
Duas narrativas falaciosas saudaram a condenação do médico do exército por homicídio involuntário na semana passada, depois que foi filmado disparando uma bala na cabeça de um palestino ferido indefeso, Abdel Fattah Al Sharif, de 21 anos.
Os primeiros dizem que o caso Azaria é uma maçã podre no meio de frutas frescas, um soldado que perdeu suas reservas morais em março passado sob a pressão de servir em Hebron. Os segundos – populares entre os liberais em Israel – sustentam que a condenação prova a força do estado de direito em Israel. Mesmo um soldado transgressor será responsabilizado pelo “exército com a mais elevada moral do mundo”.
Na realidade, no entanto, a reação popular à decisão da corte foi bem mais reveladora do que a decisão em si mesma.
Somente massivos contingentes da polícia de choque salvaram os três juízes do linchamento pela multidão do lado de fora do tribunal. Os comandantes do exército receberam a proteção de guarda-costas. Exigências para anular a decisão e perdoar Azaria são ensurdecedoras – e estão sendo lideradas pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Azaria não é um soldado descontrolado. Ele é como “o filho que todos desejam”, de acordo com boa parte da opinião pública. A natureza não excepcional de seu ato é confirmada pela completa indiferença dos seus colegas quando Azaria puxou o gatilho. As pesquisas de opinião mostram um apoio esmagador – 84 por cento – para Azaria entre as pessoas de 18 a 24 anos, a idade de conscrição no exército de Israel.
Por outro lado, o julgamento refletiu não a inviolabilidade da lei – há 12 anos o último soldado, um Beduíno, foi condenado por homicídio involuntário. Ele somente revelou as crescentes pressões sobre Israel. As câmeras nos celulares estão tornando mais difícil encobrir os crimes dos soldados. Ao processar Azaria em um caso em que as evidências filmadas são inequívocas, Israel tem a esperança de evitar as investigações por crimes de guerra pela Corte Criminal Internacional.
Como observou o colunista israelense Nahum Barnea, a equipe de defesa de Azaria também errou. Ao surfarem em uma onda de indignação populista, eles acusaram os superiores de Azaria de mentiras e assédio. Os promotores já tinham reduzido a acusação de assassinato para a de homicídio involuntário. A corte provavelmente teria acordado em condenar o arrependido Azaria pelo mau uso de uma arma de fogo. Mas, dada a formulação do caso feita pela defesa, os juízes tinham que decidir: ficar do lado do soldado ou do exército.
Assim como o Brexit e Trump, o julgamento de Azaria expôs não somente uma profunda fratura social, mas também um momento de transição. Aqueles que veem um sistema virtuoso punindo uma maçã podre são agora minoria frente aos que veem um sistema podre vitimizando um herói.
As pesquisas mostram que a fé da opinião pública israelense está despencando em relação à maioria das instituições, desde os tribunais até a imprensa, que são vistos, mesmo que equivocadamente, como sendo dominadas pela “extrema esquerda”. Somente o exército ainda é amplamente reverenciado.
Isso é em parte porque tantos genitores israelenses devem confiar seus filhos e filhas a ele. Duvidar do exército seria questionar a lógica fundacional da “Fortaleza Israel”: que o exército é a única coisa que impede os “bárbaros palestinos” como Sharif de tomar de assalto o país.
Mas também, ao contrário daquelas instituições crescentemente repudiadas, o exército rapidamente se adaptou e se conformou às mudanças mais amplas na sociedade israelense.
Mais do que de colonos, devemos falar de “colonialismo”. Há muito mais colonos do que os 600 mil que vivem nos assentamentos. Naftali Bennett, líder do partido dos colonos Casa Judaica e ministro da educação, vive em Ranana, uma cidade em Israel, não uma colônia.
O colonialismo é uma ideologia, que acredita que os judeus são um “povo escolhido”, cujos direitos bíblicos à Terra Prometida se sobrepõem aos dos não-judeus como os palestinos. As pesquisas mostram que 70 por cento dos judeus israelenses pensam que eles são escolhidos por Deus.
Os colonos tomaram conta do exército, tanto demográfica quanto ideologicamente. Eles agora dominam seu corpo de oficiais e dirigem sua política no terreno de ação.
O testemunho de Azaria mostrou quão profundo é hoje este vínculo. Sua companhia, incluindo seus comandantes, frequentemente passam seu tempo livre na casa de Baruch Marzel, um líder do Kach, um grupo banido nos anos 1990 por sua plataforma genocida anti-árabe. Azaria descreveu Marzel e os colonos de Hebron como uma “família” para os soldados.
Por sua própria natureza, exércitos de ocupação são brutalmente repressivos. Por décadas, o comando do exército deu via livre a seus soldados contra os palestinos. Mas como o número de colonos cresceu, a imagem do exército de si próprio também mudou.
Ele se transformo de um exército de cidadãos defendendo os assentamentos em uma milícia de colonos. Os oficiais médios ditam hoje o etos do exército, não o alto comando, como o destituído ministro da Defesa Moshe Yaalon descobriu quando tentou colocar-se contra à maré montante.
Este novo exército não é mais minimamente contido por preocupações sobre a sua imagem “moral” ou por ameaças de investigações de crimes de guerra internacionais. Ele pouco se importa com o que o mundo pensa, da mesma forma como a nova safra de políticos que deu seu apoio a Azaria.
O julgamento do soldado, longe de ser uma prova do estado de direito, foi o último suspiro de uma ordem que está morrendo. Sua sentença, que deverá ser proferida nos próximos dias, será provavelmente leniente para apaziguar a opinião pública. Se a condenação for anulada por um perdão, a vitória dos colonos será completa.
– Ver mais em http://www.jonathan-cook.net/2017-01-10/elor-azaria-verdict-moment-transition-israel/#sthash.X4pserMm.dpuf
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