Por Manuel Afonso, de Lisboa, Portugal
Cada vez mais, os dias 31 de dezembro e 1 de janeiro são dias normais, de trabalho. É assim para os trabalhadores da restauração, dos bares, da hotelaria, mas também nos call-centers, nos transportes ou em algumas fábricas. É para estes que vai a nossa primeira saudação.
Mas estas são também tradicionalmente datas dadas ao balanço dos tempos recentes e a traçar as perspetivas dos tempos futuros. 2016 foi um ano que clama por esse balanço: demasiadas mudanças e conflitos inesperados irromperam à superfície nos últimos 366 dias – sim, foi um ano bissexto! – para que não paremos para pensar.
Neste ano muitos dos desequilíbrios latentes após a crise de 2008 expressaram-se à superfície, mostrando a cara feia e os dentes arreganhados do capitalismo. Uma nova relação entre os grandes estados do mundo parece começar a desenhar-se, embora os contornos da nova ordem ainda sejam incertos. O papel agressivo da Rússia, primeiro na Ucrânia e depois na Síria é evidente. Assim como as tensões entre China e EUA, sobretudo após a eleição de Donald Trump. A corrida armamentista, nos mares do Sul do pacífico, mas não só, começou silenciosa, e terminou o ano nas bocas de Trump e Putin. A decadência da União Europeia também teve um novo e qualitativo revés, o “Brexit”, surfado pela direita xenófoba. A subida eleitoral e a capacidade de iniciativa da extrema-direita, em Inglaterra, na Alemanha ou na França, Holanda e Áustria, são sinais de que a desfragmentação da ordem política tradicional está a ser agressivamente disputada pelas frações mais reacionárias das classes dominantes. A vitória de Trump nas presidenciais norte-americanas é o exemplo mais evidente da saída agressiva que o capitalismo prepara para a sua própria crise. É também sinal da abertura do maior império para negociar rearranjos na hierarquia entre estados, aceitando um equilíbrio tenso com a Rússia – por quanto tempo? 2016 foi o ano em que fica evidente que as relações mundiais herdadas de Breton Woods e da queda do muro de Berlim podem ser postas em causa. Não necessariamente para mudar para melhor.
A Europa vive um renascer dos nacionalismos, sobretudo dentro dos países imperialistas centrais, despertando os mais ameaçadores fantasmas do século XX. O surto de ataques terroristas no centro da Europa alimenta e alimenta-se desse ciclo vicioso: 2016 voltou a lembrar-nos que a Europa é demasiado grande, diversa e desenvolvida para as barreiras a que se autoimpôs. Desde os tratados austeritários da UE ao bloqueio de refugiados no porto de Calais, esta é uma Europa que prende os povos e por isso reforça a divisão e os nacionalismos. Mas também o clamor por justiça e igualdade.
A degeneração da Guerra Civil Síria e o seu culminar no cerco e bombardeamento de Aleppo foi talvez o palco onde as contradições que marcaram todo o ano se tornaram mais gráficas. Revolução e contrarrevolução, a guerra por procuração de várias potências mundiais – Rússia e EUA principalmente – ora dispostos a negociar ora a combater-se, o acirrar dos conflitos religiosos e nacionais assim como ao reforço do exército-partido fundamentalista e fascista ISIS. O golpe contra Erdogan e o seu contragolpe, ao serviço de um endurecimento do regime e de uma aproximação à Rússia. E um povo isolado de quase toda a solidariedade que rejeita a rendição, apesar de todas as forças no terreno se terem empenhado em reduzir a sua revolução a escombros. As imagens de protestos civis, em Damasco e Aleppo, parcos, mas reais, já após a queda da cidade, mostram bem o espírito de 2016 naquela região que, há poucos anos, foi palco de poderosas revoluções. A incapacidade da esquerda mundial em levantar uma verdadeira campanha de solidariedade com Aleppo – já nem dizemos com a revolução síria – é o mais recente sinal de como a esquerda ainda não se localizou perante o ritmo das mudanças nos equilíbrios de força mundiais.
É, no entanto, o adensar das nuvens de chumbo da reação, que nos permite ver de forma mais cristalina a força dos trabalhadores que saem à luta. Em 2016 voltou a reerguer-se o movimento Black Live Matters nos EUA, assim como lutas por salários ou a vitoriosa greve dos professores de Chicago. Essa nova agitação das classes populares norte-americanas dos últimos anos inflou a primeira campanha presidencial de esquerda, como peso de massas, nos EUA em muitos anos. 2016 foi o ano de Trump mas também de Bernie. Uma onda tremendamente progressiva que só não foi mais além por o próprio Bernie Sanders se encontrar inabalavelmente ligado ao Partido Democrata de Hillary e Obama. Na Grã-Bretanha um fenómeno semelhante expressou-se no Labor Party, onde Jeremy Corbyn consolidou a maioria do partido com uma orientação fortemente à esquerda da Terceira-Via Blairista. Este foi, até agora o caminho encontrado por uma parte dos jovens e trabalhadores britânicos para intervir na crise económica e política que tem abalado a Ilha de Sua Majestade nos últimos anos. 2016 viu as mulheres trabalhadoras saírem à rua em massa, com as suas reivindicações próprias – fim da violência machista, igualdade salarial e direito ao aborto – usando métodos da classe trabalhadora, com greves e paralisações na Polónia, Argentina e Islândia. Em terras Belgas e sobretudo na França foi classe operária, com poderosas greves, manifestações e confrontos com a polícia que lembraram que o melhor ariete dos oprimidos para romper o cerco da reação é a mobilização coletiva encabeçada pelos batalhões assalariados e operários. Também em Portugal foi a poderosa e prolongada greve dos Estivadores a única a romper o avanço da apatia e a normalização da austeridade. A classe trabalhadora organizada é quem pode, em 2017, fazer com que os pratos da balança voltem a pender para o lado dos povos.
2016 foi mais um ano em que se aprofundou a polarização social mundial. De um lado, cada vez mais audazes, as forças mais obscuras do capitalismo, armadas da xenofobia, da demagogia e da força bruta, para impor mais austeridade e exploração. Do outro, os trabalhadores, os povos e, sobretudo os mais oprimidos, as mulheres, os LGBT’s, os negros e os emigrantes, resistindo à ofensiva, tentando virar o tabuleiro e passar à ofensiva. Devemos assumir, porém, que em 2016, foi o polo mais reacionário quem esteve na ofensiva. Não quer dizer que tenha sido assim em todos os momentos e lugares, mas globalmente, os trabalhadores saíram amargurados deste ano e os governantes do mundo mais confiantes. Em anos recentes foi o oposto: as revoluções árabes, o ascenso operário e juvenil na Europa, depois no Brasil e os movimentos Ocuppy e outros por todo o mundo colocaram o sistema na defensiva. Pode voltar a ser assim. O ano de 2016 mostra que a ofensiva da direita – chamemos-lhe assim – não se deve a que esta tenha mais força que antes. Depois da crise aberta em 2008, as classes dominantes debatem-se em crises, perdas e divisões internas. Porém 2016 mostrou que quem tem direção, convicção e ousadia marca pontos. E a burguesia mundial começou a fazê-lo. Trump, Putin e Le Pen são os rostos mais conhecidos dessa agressividade reacionária. Já aos trabalhadores e os povos tem faltado essa ousadia, essa organização e ideias claras, enfim uma direção política que os leve à vitória. A velha esperança depositada nos partidos clássicos da esquerda desvaneceu-se – este foi também o ano da grande crise do PT Brasileiro ou do PSOE espanhol. Mas a fé nas novas alternativas eleitorais de esquerda viu-se grandemente abalada pela capitulação total do Syriza na Grécia, hoje um dos grandes implementadores da austeridade. Se em 2016 a balança pendeu para o lado da reação foi porque faltaram direções à esquerda capazes de tirar conclusões anticapitalistas da crise económica e apontar saída socialistas. Os auditórios de massas insatisfeitas com o sistema foram lançados nas mãos da direita, por omissão da esquerda.
Isso não nos autoriza a entrarmos cabisbaixos em 2017. Pelo contrário! Ainda existem reservas para lutar, os que trabalham estão longe de estar derrotados e podem disputar a saída para a crise. Faz falta retomar a ofensiva e apontar as saídas estratégicas que façam os trabalhadores sentirem que podem vencer. Nesse momento, não nos faltarão à chamada.
Neste cenário, terminados recordando as palavras do jovem revolucionário Leon Trotsky, na viragem do século XIX para o XXI quando as convulsões que se já previam no horizonte faziam os cépticos duvidar e os timoratos recuar:
“Parece até que o novo século, este gigante recém-chegado, está determinado mesmo no momento do seu surgimento a levar o otimista ao absoluto pessimismo e a um nirvana cívico.
– Morte à Utopia! Morte à fé! Morte ao amor! Morte à esperança! Esbraveja o século vinte em salvas de fogo e ao retumbar das armas.
– Renda-se seu patético sonhador. Aqui estou eu, o seu tão esperado século vinte, o seu “futuro”.
– Não, responde o inabalado otimista: você, você é apenas o presente.”
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