Por Bernardo Boris Vargaftig, de São Paulo, SP
…mais do que nunca, o povo deve ser contido por meios morais e o primeiro e principal instrumento de ação sobre as massas é e continua a ser a religião. Daí provém as maiorias de eclesiásticos nas comissões escolares, as despesas crescentes que a burguesia assume para encorajar todo tipo de demagogia devota, desde o ritualismo até o Exército da Salvação » extraído da Introdução à primeira edição inglesa (1892) de « Socialismo utópico e socialismo científico », F. Engels.
As religiões desempenham hoje um papel crescente nas sociedades capitalistas. Invadiram as grandes metrópoles, notadamente no Brasil. Há poucas dezenas de anos, o deslizar da sociedade para a direita tem sido acompanhado e até propulsado por « novas » religiões, evangélicas de tipos diversos e em geral provindas dos Estados Unidos. São abertamente pró-capitalistas, estimulam um misticismo declaratório extremo, uma leitura literal da bíblia e um forte individualismo.
Num estudo publicado em 25/12/2016, a « Folha de São Paulo » indica em manchete que « Brasileiros atribuem a Deus sucesso financeiro » ; trata-se de uma diferença fundamental com o catolicismo, pois este promete que a miséria na terra será compensada pela felicidade eterna no além, enquanto os evangélicos prometem aos verdadeiros fiéis (sobretudo que contribuem financeiramente), a felicidade hoje e agora – se possível como pequenos capitalistas conservadores. Estas novas religiões, além de serem dirigidas e usufruídas por indivíduos da categoria de Eduardo Cunha, Malafia ou Edir Macedo (« batizado » em Israel em companhia de Bolsonaro), defendem a integralidade do sistema capitalista.
A religião católica, que fazia o mesmo não há muito, passa a ter um discurso mais « reformista », distante da « teologia da libertação » e também do evangelismo. Há muito a dizer e a discutir a respeito destes desenvolvimentos e minha ambição, nesta nova rubrica de Esquerda online, é fornecer críticas, conceitos e informações a respeito das características destas religiões, procurando a desalienação no sentido marxista. Isto significa uma crítica que inclui os aspectos puramente intelectuais e/ou históricos, do tipo « A Igreja católica impediu realmente o desenvolvimento científico na Idade Média », o desmascaramento ideológico, mas longe do anticlericalismo. Tenho a pretensão de faze-lo com rigor, respeitando um principio materialista que a religião é uma projeção alienada do sofrimento humano e que os trabalhadores e a esquerda em geral não devem ser divididos pelas crenças, mas pelos seus interesses de classe. Como dizia um dirigente ao Partido Comunista Francês antes de ser fuzilado pelos nazistas, sua ambição era « unir os que creem e os que não creem na vida eterna» para viverem melhor aqui e agora».
Neste primeiro artigo faço alguns comentários sobre o Natal, notadamente sua história. Voltaremos a discutir seu significado histórico e social e suas origens, em maiores detalhes.
A comemoração do Natal se integrou aos hábitos, até dos agnósticos (que não decidiram se Deus existe, mas como nunca se sabe[1]…) e ateus (que negam a existência de um ser supremo). Há outros hábitos integrados à vida corrente, mas cuja expressão perdeu seu conteúdo. Assim, diz-se rotineiramente « Vá com Deus » ou « Graças a Deus », mesmo se o interlocutor for agnóstico ou ateu. Estas e outras tradições de aparência inocente exprimem um passado religioso persistente, adaptado à rotina da vida atual e perenizado pela necessidade das classes dominantes manterem o controle ideológico da população.
Aqui não discutirei o aspecto « linguístico » da influência da religião na vida corrente e suas evidentes consequências políticas, mas o significado do Natal e, por extensão, o suposto nascimento de Cristo.[2]
Comecemos por um problema de lógica formal: O Natal comemora o nascimento milagroso de Jesus Cristo: milagroso pela concepção sem pecado, estendida tardiamente pela Igreja ao nascimento de Maria, suposta mãe de Deus, portanto também à sua mãe e avó de Jesus. Fora a evidente impossibilidade biológica, enunciada pelo milagre, já que Deus tudo pode, havia uma incoerência teológica: a virgem Maria teria concebido sem pecado mas, como todos, nascera maculada pelo pecado original de Eva, a suposta primeira mulher, transmitido « geneticamente » através de Ana (Santana), sua genitora que o recebera de sua mãe e assim por diante.
A virgindade parece funcionar como uma doença genética, de padrão dominante e transmissão materna. Como evitar a marca infame de que Ana teria forçosamente transmitido o pecado original à Maria que o transmitiria a Jesus, o tornando assim pecador? O papado decretou centenas de anos após os supostos fatos que Maria também fora concebida sem pecado, pelo mesmo espírito santo. Esta sucessão de nascimentos sem coito, implica em que Ana estava desde o início predestinada a gerar Maria e esta a conceber o Cristo. Isto é bem complicado, por que diabo em seus desígnios deus não pulara a etapa de Maria, gerando Jesus diretamente em Ana!
A esterilidade foi historicamente considerada algo de terrível e a fertilidade considerada desde os primeiros sinais de cultura no paleolítico superior como uma marca de favorecimento divino. A imagem de deus foi feminina até em torno de 3.500 AC, quando o papel da mulher passou a ser confinado ao de mãe, esposa e amante de deuses. Fazer com que uma mulher estéril parisse foi considerado milagre e sua criança tocada por deus.
Em todas culturas antigas ocorrem relatos de anunciações de nascimentos miraculosos, como em Luxor no Egito em que se vê o mensageiro do deus Thot anunciando à rainha sua futura maternidade graças ao deus Amon. O rei da Babilônia Gilgamesh (aprox. 2650 AC) nasceu da filha virgem do rei Sakharos, fecundada pelo deus Shamash ; o herói grego Perseu nasceu de Dafne, filha do rei de Argos, e fecundada pelo deus Zeus. Isto continua em longa lista, com Dionísio, Heracles, Asclépio, Mitra. O filósofo e matemático Pitágoras e Platão teriam nascido de mãe virgem. Portanto, não há nada de original em nascer assim! O mesmo pode aliás ser dito da ressurreição, de Osiris reconstituído à partir de seus fragmentos ou de Pitágoras, ressuscitado séculos após sua morte!
A data do nascimento de Cristo é outro problema, pois foi totalmente inventada pelo imperador Constantino no século IV, para unificar o Império romano após uma guerra de sucessão em que o deus dos cristãos supostamente interferira a seu favor. Constantino legalizou e promoveu a Igreja, a opondo às crenças e templos « pagãos ». A data escolhida, do solstício de inverno substituiu a comemoração pagã do Sol Invictus que renasce a partir deste momento. Seu primeiro registro em um calendário romano data de 334 DC.[3] Entretanto, já em 274 era inaugurado pelo imperador romano Aureliano um templo do Sol invencível, em 25 de dezembro, dia do solstício de inverno. O Sol, imagem de Deus, dominaria o mundo como o imperador domina o império. Esta religião foi adotada pela aristocracia temerosa de levantes populares, como o dos operários da casa da moeda em Roma, associados a escravos e plebeus.[4] Portanto esta data não corresponde ao nascimento de Cristo, não existindo evidência alguma que o afirme ; é uma data proveniente de cultos agrários, relacionados com as estações do ano.
A vida de Cristo é oficialmente relatada pelos evangelistas sinópticos, Marcos o mais antigo, Mateus e Lucas[5]. Segundo a Igreja, suas versões se confirmam mutuamente, uma afirmação espantosa vistas as notórias diferenças de temporalidade, de localidade (Cristo nasceu em estábulo ou gruta?) de origem social dos três magos visitantes (eram reis ou camponeses ?) etc.
Da mesma forma, não há registro algum fora do Novo Testamento do suposto massacre dos inocentes, envolvendo milhares de crianças abaixo de 2 anos, perpetrado por Herodes o Grande, adversário de Jesus Cristo, que os Magos haviam reportado como futuro rei dos Judeus.
Que a mitologia, as interpolações[6] tenham existido, ninguém mais contesta. A própria historiografia religiosa criada por estudiosos judeus, católicos ou protestantes o reconhece, mas argumenta contra a conclusão « escandalosa » de que não há base histórica para a parte essencial do novo testamento !
Os crentes não podem existir sem crença e portanto são atingidos em cheio a cada descoberta moderna que invalida alguma de suas teses[7]. Os progressos científicos e na descoberta de evidências históricas que reforçam o materialismo, evidentemente não nos incomodam – como o do Evangelho de Judas, que altera totalmente a visão que se tem deste personagem.
[1] O paradoxo de Pascal exprime bem esta posição: “é melhor acreditar, pois se Ele existe, tenho tudo ganhar e se Ele não existe, nada a perder”.
[2] Esta pequena contribuição por um leitor não historiador é uma compilação e não contém investigações pessoais. Não tem o objetivo de hostilizar os religiosos, notadamente os trabalhadores que junto com seus companheiros marxistas (portanto ateus) combatem para fazer deste mundo o paraíso que as religiões projetam no além – após a morte, o que conforta a ideia reacionária de que é preferível aguentar por aqui, pois mais tarde, no além, será um deleite.
[3] D.E.C = Depois da Era Comum, abreviação que substitui em historiografia moderna e laica o « DC », depois de Cristo, evidentemente portador de um viés cristão
[4] C. Hainchelin, « Les origines de la réligion », Éditions Sociales, 1955, Paris (pg 167-168).
[5] João, que também figura no Novo Testamento, tem outro conteúdo.
[6]Interpolação : procedimento utilizado pelos monges copiadores, que « corrigiam » as supostas carências dos manuscritos que recopiavam, dando-lhes conteúdo ortodoxo, ao eliminarem o que não lhes era favorável.
[7]O chamado Evangelho de Judas, de descoberta e validação recentes, indica o suposto traidor Judas como o melhor auxiliar de Jesus Cristo, cumplice na parodia de crucificação que este teria organizado, possibilitando a ressurreição. Quer se creia ou não nesta versão, o documento existe. Voltaremos a este assunto.
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