Fábio José de Queiroz |
Introdução
A burguesia brasileira, notadamente nos anos 1990, agasalhou a tese da necessidade de se abrir a economia brasileira, e deixar o mundo entrar. Para ela, o mundo era o capital estrangeiro que, em sua visão comum, deveria nos fazer crescer e iluminar, e, por tabela, abrandar a nossa vulnerabilidade externa.
Vista à distância, a transferência de ativos nacionais, privados e estatais, não representou tão somente o incremento do investimento direto estrangeiro (IDE), no Brasil, mas, concomitantemente, maior sujeição da economia nacional ao capital internacional, com maior razão em sua configuração financeira. Nesse sentido, há de se admitir que, de fato, as portas se abriram.
Efetivamente, é exagerada a tese de que a economia brasileira se pautava por uma espécie de “proteção incondicional”. No limite, ela relutava abrir mão de certo recato. Nos anos 1990, no entanto, o governo e o empresariado se desembaraçaram da discrição mínima de tempos passados, e, nesse aspecto, passaram a esgrimir o argumento de que só a entrada massiva de capital estrangeiro socorreria à combalida economia nacional. Eis a contribuição corajosa da burguesia autóctone e do seu sociólogo mais carismático.
No que diz respeito às questões há pouco expressas, há de se dizer que as privatizações e aquisições de empresas privadas nacionais, de resto, representaram a forma mais eloquente de desnacionalização da economia brasileira, que, definitivamente, adentrou ao cenário da internacionalização econômica com trajes, que os seus ideólogos mais versáteis, tomaram como os mais adequados.
Vinte anos se passaram pela janela, o que é tempo mais do que suficiente para se examinar o Brasil, depois dessa violenta transição de rumos. A paisagem lá fora mudou, mas, para uns, o Brasil se avigorou e deve ser compreendido em sua nova localização – rigorosamente distinta e favorecida; para outros, não há mudanças que mereçam ser estudadas com afinco e determinação (posição que, aqui, merecerá pouco desvelo). Se, por fim, há uma terceira posição, é com ela que nos alinhamos: reconhecemos as mudanças que se processaram, embora manejemos a conjectura de que a localização privilegiada do Brasil não fez mais do que contribuir para incliná-lo a uma maior subordinação ao capital financeiro internacional.
Tratar dessas questões, entretanto, exige responder a perguntas decisivas e obrigatórias, tais como: Onde estamos? Qual o lugar do Brasil na economia mundial e no concerto de nações? Consideradas as mudanças, em curso, a noção de época imperialista segue vigente? Elaborar um sistema de análise, capaz de dar conta dos fenômenos em sua demanda teórica, reclama responder aos problemas expressos há instantes.
Acompanhando tal linha de raciocínio, neste artigo analisamos o Brasil em sua dinâmica no mundo, levantamos o seu lugar na economia e no sistema de estados, abordamos os seus laços com o capital financeiro, e, portanto, com o que Lênin demarcou como imperialismo; e, por fim, debatemos o tema das possíveis saídas perante o domínio do capital adventício, à luz das transformações mais recentes, notoriamente aquelas que distinguiram a transição do século XX para este.
O lugar do Brasil no mundo e sua peculiar dinâmica no capitalismo contemporâneo
Nos últimos decênios, o Brasil foi atingido por um novo, e mais letal, bacilo de Koch, que começou a dizimar um pouco mais da débil economia nacional. Há quem pense, no entanto, que o Brasil se fortaleceu, malgrado a contradição na qual o País perdeu ou dividiu ramos inteiros da sua economia,[1] que antes controlava, diante da robusta ocupação do capital estrangeiro; certas interpretações, inclusive, sugerem que “o colosso do sul” viu serem reforçadas as suas posições no sistema mundial de nações.
Ainda assim, o fato de o Brasil haver se relocalizado no âmbito da Divisão Internacional do Trabalho, depois da Segunda Guerra, e, com maior ênfase, nos últimos vinte cinco anos, é um dos argumentos esgrimidos em prol da tese do fortalecimento da economia nacional e da burguesia nativa. Aqui, no entanto, não caberia perguntar: houve uma repartilha do mundo, da qual o Brasil se revelou beneficiado? Ora, mas se a repartilha recente, iniciada nos anos 1990, se traduziu em maior desnacionalização da economia brasileira, conduzindo-a, em larga medida, a uma situação de cada vez mais dependência com relação aos principais centros econômicos do capitalismo, como nutrir esse raciocínio?
É hora de conceder a palavra aos que analisam esse quadro com inarrável euforia. Vejamos como a mídia burguesa mais robustamente ideológica aborda esse problema.
Nos últimos seis anos, 1.100 empresas brasileiras eram compradas por multinacionais. A história do capitalismo registra poucos processos de transferência de controle tão intenso quanto esse, num prazo tão curto. Houve vendas em 34 setores da economia, entre os quais agroindústria, alimentação, autopeças, embalagens, eletrodomésticos, produtos químicos, metalurgia, supermercados, tecelagem. Símbolos da indústria brasileira, como a Cofap, a Metal Leve, a Arisco e Arno passaram a ostentar, respectivamente, bandeira italiana, alemã, americana e francesa. (VEJA edição 1650, 24/05/2000)
E a que conclusão se chega à vista desse processo de desnacionalização?
Para a revista antes citada, “as pessoas ficam com a impressão de estarem assistindo ao funeral da economia nacional. Não é isso que está acontecendo”. (IBIDEM) Mais do que isso, para o semanário, corriqueiro apologista do capital internacional, haveria motivos para comemorar e não para se entristecer. Ao contrário dessa visão, não estaríamos diante das exéquias da economia nacional? Voltaremos a essa questão e tentaremos esmiuçar esse nosso raciocínio. Por ora, fiquemos com a descrição dos pontos de vista dos defensores do capital internacional.
A revista Exame aponta em direção idêntica, quando comparamos a sua avaliação com a da Veja: “Quanto mais dinheiro estrangeiro entrar, mais bem sucedido estará sendo o Brasil em seu esforço de modernização” (In: Não chore pela Metal Leve, 03/07/1996). Nesta perspectiva, a questão é tomada como o “epitáfio do Brasil velho”. Na perspectiva de Exame, o Brasil “velho” é o da economia seminacional, ao passo que o “novo” é o Brasil com “Z”, fortemente internacionalizado, por meio de um processo no qual, por suposto, o País transita do passado escuro ao presente luminoso.
O rigor científico e a honestidade intelectual exigem de nós, antes de tudo, estudarmos o Brasil, não apenas como realidade em mutação, efetividade em movimento, mas, igualmente, como totalidade. Aqui, em primeiro lugar, é preciso definir sua condição geral e quais são as tendências fundamentais do processo em curso. Nesses termos, há de se reconhecer que, num determinado momento, o capital imperialista seleciona alguns pontos e, para lá, avança, em sua dinâmica avassaladora, transformando esses lugares em plataformas de exportação, por intermédio das quais alcança as colônias e semicolônias mais débeis. Essa dinâmica complexifica e escalona as relações dos países que constituem o sistema internacional de nações, sem alterar, aparentemente, o conteúdo da dominação, ressaltando o quadro contraditório no qual se figuram as relações de países opressores e países oprimidos.
Se “o custo do verdadeiro amor nunca é suave”, o que dizer então das ligações pouco idílicas do capitalismo mais avançado com as suas porções menos expandidas?
Nesse quadro, é possível, por meio de uma longa marcha, longa e pacífica, salvo as pequenas escaramuças, comuns a toda família, que um país dependente, perpassado pelo domínio dos monopólios, atravesse o Rubicão, tornando-se membro, ainda que de segundo grau, do agrupamento dos maiores estados capitalistas?
Dir-se-ia que a hipótese de novas adesões ao seleto grupo de potências imperialistas, para usar uma expressão cara a Lênin, é uma abstração morta, ou, sendo menos vigoroso, é uma conjectura improvável; mas, como Lázaro ressuscitou e, também, ocorreram revoluções, que expropriaram a burguesia, sem que fossem encabeçadas por direções revolucionárias, algo que, antes da Segunda Guerra, parecia pouco provável, conforme se pode comprovar das quebráveis presunções de Trotsky a esse respeito, de plano, não é de todo conveniente descartar a hipótese de novas adesões ao circuito imperial, pelo menos, de modo absoluto e irrevogável.
Esse panorama histórico, aparentemente intricado, exige a elaboração de um sistema de análise teórica capaz, não apenas de dar conta da estrutura mais geral do fenômeno, mas, junto disso, enriquecer a capacidade de compreensão crítica da sua dinâmica naquilo que lhe é mais corrente.
De feito, o Brasil pode não ser um elo hipersecundário da cadeia de operações do capital financeiro, mas também não ocupa aí posição de destaque. No máximo, se situa num plano intermediário, preservando, em tese, uma relativa autonomia político-diplomática, mas, ressalte-se, sofrendo de uma brutal dependência financeira.
Oferece um subsídio importante, no terreno das analogias históricas, aferir o Brasil, do começo do século XXI, com a Argentina, da dobra inicial do século passado. Ora, a Argentina chegou a ocupar – na sequência de classificação – o 5º ou 6º lugar,[2] entre as maiores economias do mundo. Isso não constituiu impeditivo, no plano teórico-histórico, para que Lênin a definisse como colônia financeira da Inglaterra. Observando o Brasil, hoje, seria válido, ou não, empregar o método de Lênin?
Responder a essa questão pressupõe trazer a lume o seguinte problema: Onde estamos? Este problema sugere uma nova (e mais precisa) interpelação: qual é o lugar do Brasil no sistema de estados? Essas indagações, antes de qualquer coisa, são a resultante mais incisiva de um problema-chave: como pensar os principais temas do País sem pensar o seu lugar no sistema internacional de nações?
A vitalidade do tema, em parte, decorre da maior intensidade das conexões do mercado brasileiro com o capital financeiro, não somente no plano dos investimentos diretos, mas, do mesmo modo, no terreno das relações desse mercado com as formas voláteis mais pujantes deste capital aparentemente apátrida. Essa base material – acredita-se – constituiria o alicerce da relativa potência política brasileira.
Considerando essa realidade, diversos estudiosos, em geral, muito sérios, tentaram categorizar o Brasil no campo dessas relações, por meio de estudos e pesquisas, resultando daí categorias teóricas como as de subimperialismo (Ruy Mauro Marini) e capital-imperialismo (Virgínia Fontes), que, na sua arquitetura textual, e cada qual no seu tempo, ajudaram o País a refletir e se conhecer.
Mais adiante, pretendemos dedicar atenção no que concerne aos estudos há pouco apontados. De imediato, trata-se de examinar mais de perto o lugar do Brasil na economia mundial e no sistema internacional de nações.
À primeira vista, o Brasil não é um país dotado de potência financeira. Ademais, “na feroz corrida atrás das riquezas e dos grandes mercados da terra”, o Brasil não se encontra no primeiro grupo de corredores, composto unicamente pelos expoentes imperialistas e as suas corporações grandemente ímpares.
Assim, malgrado as mudanças ocorridas, no Brasil, depois da Segunda Guerra, e, especialmente, no derradeiro quartel do século XX e primeiros anos da centena em curso, a hipótese que amparamos é de que o País mantém a estrutura básica anterior de corte semicolonial. Essa presunção, se constatada, demonstra que as formas de subordinação variam ao longo de toda época imperialista. A analogia da Argentina de 100 anos atrás, com o Brasil de hoje, deve ser considerada, não somente para destacar as aproximações, mas, igualmente, matizar as diferenças. O país da bacia do Prata conheceu o seu auge de 1870 a 1940, intervalo de tempo que Fiori (2014) descreveu como do “milagre econômico argentino”, assentado numa taxa média de crescimento de 6%;[3] Já o Brasil viveu experiência semelhante no período de 1937 a 1980.[4]Ambos adotaram estratégias bem próximas, incluindo o rearmamento das FFAA e o revigoramento da economia, iluminando o caráter de “competição econômica e militar, pela hegemonia do Cone Sul”. (FIORI: 2014:272)
Nos dois casos, estamos perante situações à parte no âmbito da periferia do capitalismo, com a presença de situações e elementos irregulares, hibridados, enredados, enfim, fortemente matizados, exigindo análises concretas dos seus distintos momentos, nos quais o aspecto semicolonial, mais do que indício teórico difuso, constitui quase uma nódoa histórica.
A esse propósito, definindo os países semicoloniais, Lênin (2002) escreve que eles “dão-nos um exemplo das formas de transição que encontramos em todas as esferas da natureza e da sociedade” (P. 62); logo em seguida, ele completa:
O capital financeiro é uma força tão considerável, pode-se dizer tão decisiva, em todas as relações econômicas e internacionais, que é capaz de subordinar, e subordina realmente, mesmo os Estados que gozam de independência política… (LÊNIN, 2002:62)
Isso é particularmente verdadeiro no que diz respeito aos dias que correm, porquanto o capital financeiro não deixou de ser uma força considerável e decisiva, mas, em última análise, se tornou – no plano da época histórica e no terreno da sua ação – mais categórico e definitivo.
Com efeito, o Brasil é um país capitalista industrializado, urbanizado, ponto médio de acumulação de capital, politicamente independente, no plano formal do sistema de estados, mas subordinado a essa força considerável e decisiva, o capital financeiro, que, comumente, determina e esclarece o caráter geral do capitalismo contemporâneo. O que o distingue da maioria dos seus pares semicoloniais, é que, embora faça parte da periferia do capitalismo, ao longo das últimas seis ou sete décadas, recebeu acolhimento diferenciado, o que lhe permitiu constituir não só uma base material peculiar, da mesma forma que uma relativa distinção política, mas, também, atribuições diferenciadas no âmbito latino-americano.
Essa peculiaridade histórica outorgou ao Brasil um parque industrial relativamente poderoso, e as indústrias instaladas ao longo do seu território, de ordinário, não se contentam, unicamente, devassá-lo, mas, dotadas de voracidade quase inigualável, alargam o seu campo de ação e excedem a jurisdição nacional.
Nesse quadro, os países centrais levaram 100 anos, ou mais, para se industrializar, ao passo que o Brasil cumpriu esse desiderato em poucos decênios de frenesi industrializante. Essa é a nossa aparente glória, pois, na essência, é possivelmente a cara-metade da nossa tragédia. A sua resultante, de fato, não é maior autonomia, mas, ao contrário, maiúscula dependência.
Mais oportuno do que nunca, vale a pena recordar que a burguesia autóctone incorporou a ideia de industrialização como desdobramento da expansão dos países centrais, notadamente dos EUA, tomando-a com indiscutível legitimidade, e, desse modo, se comportou como uma Burguesia–Macunaíma, isto é, sem nenhum caráter.
Assim, ao entretecer com o capital internacional uma sólida coadjuvação, a moderna classe dominante brasileira ajudou a definir a nossa condição na economia mundial e no sistema de nações. Buscando merecer o direito a certos pequenos privilégios, nomeadamente na América do Sul, essa burguesia, segundo a aparência inicial, se confessou pouco audaciosa, mas nem por isso desprovida de quaisquer lances de aspiração e cobiça.
Se para as burguesias dos países centrais, o céu se tornou o limite, para a sua congênere brasileira, as primeiras nuvens já lhe serviram de baliza. Em suma, a ideia norteadora da dependência nunca desapareceu do seu horizonte prático e ideológico. Submetendo a nação a seu controle, reservou-lhe este afrontoso destino.
Neoliberalismo, privatização e desnacionalização
Finda a década de 1990, o balanço não é nada estimulante. Do ponto de vista aqui desenvolvido, o capital internacional se apoderou de trincha considerável do patrimônio nativo. Lacerda (2000) organizou um trabalho, para o qual contou com a colaboração de um grupo de economistas, em que é analisado o processo de desnacionalização da economia brasileira.[5] Nesta seção, pretendemos dialogar criticamente com as conclusões principais presentes nas elaborações de alguns dos seus autores.
Furtado (2000), por exemplo, insere a desnacionalização no panorama mais geral da “constituição de um sistema produtivo transnacional”, sob a égide de “um regime econômico hierarquizado e fortemente restritivo”. A importância dessa ilação se liga à ideia de que, diferentemente do que pensam os mais otimistas quanto ao lugar do Brasil na economia mundial, o autor é persuasivo na compreensão do posto coadjuvante da nação latino-americana no âmbito do capitalismo contemporâneo.
Trabalhando com o inusitado conceito de “tecnofagia restauradora”, Furtado ressalta a proeminência das grandes empresas centenárias, dos países imperialistas, nos processos de reestruturação industrial e “constituição de um sistema produtivo transnacional”. Nesse debate, chama atenção a sua inferência de que “nenhum país se desenvolveu sem empresas”. Ora, no Brasil aconteceu precisamente o inverso, uma vez que empresas ancestrais – Metal Leve, Cofap, Arno etc. – foram adquiridas pelo capital transfronteira e, desse modo, não cumpriram papel semelhante àquele desempenhado, a título de ilustração, pelas empresas centenárias, em países como Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra. A busca, por parte do Brasil, “de um reposicionamento industrial e nos mercados”, não se fez pelo reforço das posições de antigas empresas, mas pela aquisição delas por firmas estrangeiras.
Além disso, como seria de se esperar, as funções corporativas centrais seguiram nas mãos das grandes empresas monopólicas, situadas, em regra, nos estados imperialistas. Manteve-se aí a norma de um “controle central estrito”, por parte da sede, a quem cabe o controle da pesquisa e das decisões. Nestes lugares, estão empresas que comandam e, não raro, foram elas que adquiriram centenas de firmas brasileiras, nos anos 1990,[6] gerando o que Furtado descreve nos seguintes termos: “Por certo, as modificações societárias e patrimoniais foram substanciais e terão efeitos importantes, permanentes, estruturais”. (2000:38)
Essa conclusão lapidar postula uma breve reflexão. A aquisição de empresas brasileiras pelas multinacionais define mudanças que vão além de meras implicações conjunturais. O Brasil que migrou de um século para o outro, não o fez com a armação que o caracterizou ao longo da maior parte do século passado. Houve mudanças estruturais. Parcela do núcleo industrial, e, também, do setor de serviços, mudou de mãos; i.e, saiu do controle nacional e estatal e se desterrou, tornando-se estrangeira em sua terra. É uma mudança estrutural e, em sendo de estrutura, acarretou desarranjos de cunho histórico. O antigo Brasil foi enterrado nas tumbas da história. O “novo” País nasceu entranhadamente adstrito ao capital forâneo e, nesse nível, furiosamente mais dependente.
Por quê? Pois bem, se antes, nas etapas anteriores da industrialização brasileira, a tríade capital nacional/estatal/multinacional, encarregou-se do compartilhamento dos encargos necessários de uma tarefa dessa magnitude, nos dias de hoje, a assimetria das partes constituintes é um fato inconteste. As aquisições de empresas privadas nacionais por grupos internacionais, com sede nos países centrais, de um lado, e as privatizações da propriedade estatal, de outro, simbolizaram o ponto de ruptura e de desequilíbrio. A isso é impossível caracterizar de modo hesitante. Terminantemente, estamos ante um fenômeno de mudanças estruturais na economia do Brasil.
Moreira (2000), outro autor que colaborou com a obra antes citada, reforça essa questão, quando, por exemplo, admite a “importante mudança estrutural” ocorrida na economia brasileira. Não concordamos com a sua caracterização de que o Brasil, antes dos anos 1990, era um país fechado, perpassado por uma “proteção incondicional”. De fato, tínhamos um quadro menos desproporcional, se considerados os distintos estratos formadores da velha tríade; trinca que há pouco nós fizemos referência.
Esse antigo panorama inculcava apenas certas precauções no trato com o capital forâneo, ainda que não devamos nos iludir quanto à situação analisada. Ao inverso das possibilidades mais otimistas, a ideia de certa circunspecção sugere o caráter relativo dos anteparos de cunho nacional. Indicamos, portanto, que era uma proteção relativa e não incondicional. Esta era a base estrutural da economia brasileira. Por que falamos de uma mudança em sua estrutura? Precisamente, porque essa relativa proteção lhe conferia um significado específico, moldava-lhe o caráter. A sua liquidação impiedosa, à luz das políticas típicas do neoliberalismo, representou a alteração desse caráter, imprimindo-lhe outro sentido e, por essa via, infundindo-lhe outros suportes.
Não obstante o fato de Moreira reforçar o mito de que as privatizações significaram “melhorar a gestão e a eficiência da indústria brasileira” (2000:46); bem como incensar “a presença dominante do capital estrangeiro na indústria e na economia brasileira”, concluindo-a como “fato consumado” que “reflete uma opção clara de industrialização e desenvolvimento” (P. 56); ele, porém, acerta quando assegura que “o locus de tomada de decisão das empresas estrangeiras está fora do país” (P. 56) e, da mesma forma, no momento em que afirma que o Brasil se insere na categoria de países cujos mercados de capitais “são poucos desenvolvidos”. (P. 60).
Seria enfadonho examinar em detalhes cada um desses itens, mas não estaria também correto ignorá-los por completo. Portanto, façamos algumas perguntas, até como modo de não desmerecê-los. Ora, é possível pensar o desenvolvimento de um país quando o “locus de tomada de decisão” se encontra fora dele? Podemos falar de industrialização e desenvolvimento quando se processa a transferência de indústrias e serviços nacionais para as mãos do capital estrangeiro? Mais ainda: a presença dominante do capital estrangeiro equaciona o problema do insuficiente desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil?
Por certo, a participação do capital estrangeiro na economia brasileira sempre foi elevada, como reconhece Laplane (2000), no artigo “Internacionalização e vulnerabilidade externa”. Essa participação, entretanto, aumentou e, em sua dinâmica, acentuou o grau de dependência da principal economia latino-americana. Estaria Moreira voltando à tese de Enzo Faletto e Fernando Henrique Cardoso, admitindo a possibilidade de desenvolvimento a expensas de uma situação de impetuoso dependentismo?
No artigo de Laplane, elaborado com o apoio de outros três pesquisadores, há de se destacar o esmero com o que ele localiza o processo de desnacionalização da economia brasileira como uma das faces do seu processo de internacionalização. Ali se lê:
A transferência da propriedade de empresas de capital nacional privado e público para empresas estrangeiras e a redução da importância relativa das empresas remanescentes de capital nacional são a outra face do processo de internacionalização da economia brasileira (LAPLANE et al., 2000: 71/72)
Efetivamente, o que se toma como industrialização, desenvolvimento e internacionalização da economia brasileira, em última hipótese, não é outra coisa senão o processo de desnacionalização e, junto disso, de crescimento exponencial do grau econômico de subalternidade. Com arrimo nesse movimento geral há pouco descrito, as multinacionais usam o Brasil como plataforma de exportação, particularmente em direção a América do Sul. Sob o pretexto de reduzir a vulnerabilidade externa da economia brasileira, não raro, se acentuou o grau de sua fragilidade histórica. O Brasil não está menos, mas, muito mais vulnerável.
Encarada desse prisma, a desnacionalização da economia brasileira se inserta na estratégia das multinacionais de se posicionar apropriadamente na disputa por mercados, como reconhece Zockun:
(A) fusão, aquisição e associação transfronteira com empresas já instaladas tem sido uma das estratégias adotadas pelo capital estrangeiro para ingressar em novos mercados em todo mundo, visando melhorar a sua competitividade global. (2000:97)
A discussão não diz respeito a supostas estratégias desenvolvimentistas para os países ditos emergentes. Inversamente, estamos perante políticas agressivas dos grandes conglomerados, com vistas à ampliação das suas escalas de produção e de negócios. Nesse âmbito, a desnacionalização, longe de favorecer os “países em desenvolvimento”, em última análise, contribui para aumentar a sua já histórica dependência.
Um capítulo a parte diz respeito às privatizações, quando ativos públicos brasileiros foram arrebatados por empresas, em geral, situadas nas regiões nucleares do capitalismo, gerando uma letal transição no plano econômico interno, com desdobramentos além-fronteiras. Em referência a esse processo, Harvey (2014) o incluiu naquilo que nomeou de “acumulação por expropriação”,[7] para a qual a privatização atuaria como o “braço armado”. Para ele, “o surgimento da teoria neoliberal e a política de privatização a ela associada simbolizaram grande parte do tom geral dessa transição”. (2014:129) Ademais, questiona: “O que teria acontecido com o capital sobreacumulado nos últimos 30 anos sem a abertura de novos terrenos de acumulação?” (P. 124) Longe de tornar o Brasil um novo gigante da ordem mundial, as desnacionalizações e privatizações tornaram o País um dos tantos “novos terrenos de acumulação”, cabendo-lhe a imensa tarefa de liberação de ativos, franqueados à sanha do capital sobreacumulado nas regiões nucleares do capitalismo.
Nos dois casos – desnacionalização das empresas privadas de bandeira verde-amarela e privatização das estatais – se impôs a chamada liberalização do mercado, quando o governo brasileiro, como na metáfora de Galeano, atuou como a sentinela que abriu as portas para que o exército inimigo pudesse adentrar. Seja como for,
O recente ciclo de desenvolvimento de IDE concentrou-se em setores industriais já bastante internacionalizados e em setores de serviços em que a presença de capital estrangeiro fora historicamente irrisória. (MATESCO et al. 2000:124)
Neste sentido, a presença do capital estrangeiro se fez mais forte no Brasil, não com vistas a desenvolver o país sul-americano, mas com o desígnio de tonificar as posições das multinacionais na disputa por mercados da mal denominada globalização. Problematizando o subtítulo do livro, organizado por Lacerda, diríamos que, se os mitos, riscos e desafios todos ficaram por aqui, os lucros extraordinários migraram, especialmente, para o norte, assim como as correntes quentes que migram do golfo do México e minimizam o frio profundo que afeta certas regiões britânicas.
Os debates teóricos acerca do imperialismo, da posição do Brasil no sistema de Estados e dos projetos de ruptura com o domínio do capital
Há cem anos, o principal líder da Revolução de Outubro, escreveu:
O imperialismo é a época do capital financeiro e dos monopólios, que trazem consigo, em toda parte, a tendência para a dominação, e não para a liberdade. A reação em toda a linha, seja qual for o regime político; a exacerbação extrema das contradições também neste esfera: tal é o resultado desta tendência. (LÊNIN, 2002:90)
Passado precisamente um século dessa vigorosa explanação, teria o capitalismo contemporâneo adquirido traços marcadamente distintos, sugerindo uma nova fase do domínio do capital?
Antes de empenhar-se na resposta a esse quesito, não custa rememorar que, para Lênin, o imperialismo não era uma simples política ou um mero artefato da conjuntura do começo do século XX; mais do que isso, era uma fase (ou grau)[8] da economia, típica do capitalismo contemporâneo. Numa perspectiva ampliada, o imperialismo corresponderia a toda uma época histórica; época de guerras (“reação em toda linha”) e revoluções (“exacerbação extrema das contradições”).
Como se nota, o imperialismo não emergiu de “fora” do capitalismo, mas, é resultante do seu desenvolvimento, ainda que, em seu furioso avanço, transforme algumas das características fundamentais da estrutura da qual ele floresceu. Além de tudo, o signo que, em última instância, o define é o predomínio do capital financeiro.
Na passagem, há pouco expressa, consta uma síntese. Decorrida uma centena de anos, é certo que o mundo deu uma imensidão de voltas, e é justo indagar: manteria essa síntese algum grau de utilidade teórico-histórica ante uma realidade em franca mutação?
É possível constatar esforços no sentido de dotar a teoria leninista do imperialismo de novos enfoques. Nos anos 1970, por exemplo, Ruy Mauro Marini desenvolveu a tese do subimperialismo, que, grosso modo, situava o Brasil num plano privilegiado no campo das nações economicamente dependentes. A explicitação dessa tese teve o mérito de olhar o problema desde outro ângulo, o dos países periféricos de economia mais complexa. Assim expresso, na leitura proposta por Marini, o subimperialismo se define como a forma que assume a economia dependente ao chegar à etapa dos monopólios e do capital financeiro. Além da composição orgânica média, outro traço presente nos países subimperialistas, seria a sua política expansionista relativamente autônoma. Passados mais de 40 anos, as hipóteses contidas nessa teoria parecem ter adquirido não menor expressão, mas, maior vigor, afinal, o Brasil alargou a sua influência, principalmente na América do Sul, e, à primeira vista, se aproximou mais da ideia de uma “potência capitalista média”. Importa, contudo, recordar as cautelas de Marini na aplicação de sua coordenada teórica, do caráter provavelmente inconcluso de sua pesquisa, e, em especial, do quanto ele privilegiava em sua análise o elemento da dependência.[9]
Por outra via, que aprofunda a senda aberta pelo marco teórico de Ruy Mauro Marini, Virgínia Fontes expõe minuciosamente a sua tese do Brasil como parte do chamado capital-imperialismo, uma vez que o País entrou de cheio na dinâmica dos monopólios. Desse modo, a sua hipótese de trabalho, embora se ligue à de Marini, adquire autonomia e alça voo próprio.
Fontes (2010) explica que o aumento da concentração de capitais e, doutro lado, a internacionalização das empresas brasileiras, tout court, conduziram o País a tornar-se componente, embora em situação subalterna, do seletivo grupo de países imperialistas. Aliás, a autora trabalha a categoria de capital-imperialismo, com a qual ela designa a fase em exercício do capital; fase esta que começa logo depois da Segunda Guerra Mundial e que se caracteriza pelo predomínio do capital monetário ou fictício. Logo, a expressão capital-imperialismo não é somente um novo conceito, mas, em larga escala, demarca as mudanças no fenômeno do imperialismo, analisado por Hobson, Hilferding, Bukharin e Lênin. Noutro trecho, ela afirma que a sociedade brasileira, desde os anos 1980, experimenta o predomínio do capital monetário, alcançando, por essa via, definitivamente, a forma capital-imperialista.
Grosso modo, tais constatações permitem alinhar as nações em três grupos principais: os países centrais, os centros medianos de acumulação e os demais. Nesse quadro, o Brasil se assenta no agrupamento do meio, uma pequena associação de “potências médias” que, ao aprofundar a sua associação com o capital estrangeiro, alcança a posse de um lugar, ainda que secundário, na categoria dos países que compõem o universo difuso do capital-imperialismo. A inserção da burguesia brasileira na “frente capital-imperialista”, no entanto, não lhe reduz a dependência ou subalternização. Ao contrário, adverte Fontes, o processo de desnacionalização, aprofunda a subalternidade. Nesse estádio, se confirma “a manutenção do país como plataforma de expansão do capital multinacional aqui sediado”. (PP.249/250). Em sintonia com essa declaração, não nos cabe perguntar: qual então a necessidade de incluir o Brasil no “pequeno clube dos países mais ricos e poderosos”?[10]
Cadinho de ideias velhas, nesse quesito o Brasil é lugar de honra no processo de elaboração de teorias que se empenham em caracterizá-lo com o máximo de exatidão histórica, inscrevendo-se aí as preciosas contribuições de Marini e Fontes, apesar de nelas, decerto, constar imprecisões e lacunas que reclamam novos esforços de análise e interpretação.
No caso de Fontes, particularmente, as tarefas ligadas à independência nacional são subdimensionadas, ainda que ela acredite que a burguesia brasileira tem o controle político do mercado interno e se pauta pela “expansão de sua influência ideológica”. Tudo somado, esta burguesia poderia minimamente confrontar a sórdida maquinaria da opressão externa. Não o faz, pois, para a autora, esta classe está mais estreitamente vinculada ao capital financeiro internacional. Por conseguinte, ao contrário do que diz Virgínia Fontes, a burguesia brasileira tem menor controle político do mercado interno e parca efusão ideológica.
Isto posto, arrostar o domínio externo é tarefa que não lhe diz respeito, mas, essa conclusão não tem a propriedade mágica de diminuir a importância da luta pelas demandas nacionais, especialmente “a derrubada do jugo imperialista”, como enfatizou Trotsky (1979). Ao fim e ao cabo, a questão se lança para as mãos de outra classe que, na tradição inaugurada pelo principal inspirador da IV Internacional, é o proletariado.
Para Leon Trotsky, os países coloniais e semicoloniais, que adentraram o capitalismo, quando este estava plenamente desenvolvido, nos seus núcleos centrais, reúnem em si “as formas econômicas mais primitivas e a última palavra da técnica e da civilização capitalistas”. É impossível que uma mudança tão decisiva, como a que o Brasil experimentou no último quartel do século XX, não afete a nossa compreensão desse fenômeno. A questão de fundo é se essas mudanças, nas quais, mais do que nunca, o País incorporou “a última palavra da técnica e da civilização capitalistas”, de fato, modificou o seu status econômico e o seu lugar no sistema de nações.
As inter-relações recíprocas da burguesia brasileira com a técnica e a civilização do capital não imputaram ao País, e a esta classe, digamos que, mais soberania; em sentido contrário, talvez se devesse falar menos de associação absoluta do que de subsunção relativa. Em outras palavras, a burguesia brasileira subsumiu à violenta agitação do capital financeiro internacional e, como nunca antes, se tornou sócia minoritária de negócios que não respeitam fronteiras nem lugares. Premida por essas condições, essa representação da classe burguesa, tão pouco audaciosa, se revelou inepta para realização das tarefas nacionais. Não há o menor motivo, entretanto, para abandonar ou tornar secundárias tais tarefas. Elas somente mudaram de mãos e de classe. Apenas deste modo será possível entender a argumentação de Trotsky, quando ele diz que:
É isto que determina a política do proletariado dos países atrasados: ele é obrigado a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. Nessa luta, as palavras-de-ordem democráticas, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas históricas distintas, mas decorrem umas das outras. (1979:102)
É impossível encarregar-se aqui da difícil tarefa de tentar descrever essas questões que, neste artigo, são avocadas, mas, tão somente, para indicar um caminho, e não com o propósito de esmiuçá-lo. De feito, as conexões da burguesia brasileira com o imperialismo, em suas múltiplas configurações, não têm o poder de reduzir o peso que, comumente, tiveram as bandeiras nacionais no programa revolucionário para os países dependentes. É o exato oposto: o grau de subsunção dessa burguesia unicamente reforça esse aspecto teórico-histórico-programático.
Além do mais, no concerto das nações, efetivamente, o Brasil segue desempenhando papel sofrível, não obstante espasmos de força diplomática que, de ordinário, expandem-se, unicamente para, em seguida, retomar a corriqueira posição de quase serena mediocridade. Ora pleiteando uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, ora se lançando a tentativas mediadoras em conflitos que se desenrolam mais além da zona de fronteira latino-americana,[11] o Brasil restringe a sua “vontade de potência” na circunvizinhança, onde, com efeito, a sua força relativa adquire ares menos modestos.
Rastreando, com certa cautela, a trajetória histórica político-diplomática brasileira, não custa marcar o fato de que, na Monarquia, a política de buscar estabelecer um lugar de força, no âmbito do subcontinente, era uma constante; processo esse reforçado, e não deixado de lado, com a chegada da República. As movimentações que marcaram o longo período do barão do Rio Branco, no Ministério do Exterior, estiveram a serviço de granjear posição hegemônica no plano regional. A confortável situação econômica da Argentina, bem como as relações privilegiadas deste país com a Inglaterra, no começo do século XX, não só dificultaram, mas, também, obstruíram os anelos brasileiros.
O Brasil teria que esperar dois episódios, no decurso histórico pós-2ª Guerra, para, só então, pondo-se no bico dos pés, alcançar o seu objetivo. O primeiro desses episódios correspondeu ao período de usurpação militarista que, de resto, atingiu quase toda seara latino-americana. No tempo, durante o qual o poder ditatorial imprimiu ao Brasil a sua marca sangrenta, precisamente ali, o País começava a ver se realizar as suas aspirações hegemonistas na região. O segundo episódio representou o golpe de misericórdia contra a Argentina, que, habitualmente, disputava o direito de supremacia sobre os vizinhos. Findo o século XX, a economia Argentina estava reduzida a pó. O furacão neoliberal, que desnacionalizou o Brasil, no caso do país platino cumpriu papel ainda mais danoso, arrastando e liquidando direitos sociais obtidos ainda na época das vacas gordas; hecatombe social derivada do aniquilamento da velha base econômica.[12]
A Argentina não se transformou em departamento da economia brasileira, como Francisco de Oliveira admite com relação ao Paraguai (2006), mas, em grandes linhas, esteve próximo desse infortúnio. A natureza mais complexa de sua estrutura econômica, as tradições políticas e a ligeira recuperação de meados da primeira década do século XXI, de certo modo, conseguiram frear essa tendência, sem, entretanto, cerzir por inteiro a velha roupa rasgada. Acrescente-se, porém, que o MERCOSUL se tornou ponte para que empresas brasileiras penetrassem na antiga fortaleza portenha e até adquirissem firmas de larga tradição nos negócios locais.[13] Essa dinâmica recente, por suposto, reforçou a tese do Brasil como potência capitalista média com, no mínimo, inclinações imperialistas, fato reforçado amplamente pela presença acachapante de empresas, com bandeira brasileira, no mercado regional, como se observa nos casos de Argentina, Bolívia, Paraguai etc.
Por seu turno, a participação da diplomacia dos herdeiros de Rio Branco, se intensificou por toda América Latina, situação observada em países aparentemente tão distintos como Honduras, Venezuela e Bolívia; participação esta, na maioria das vezes, estimulada pelos EUA. Vale lembrar ainda a tarefa, nada airosa, cumprida pelo Brasil na atual ocupação do Haiti. Aliás, o Brasil faz hoje no Haiti o que ensaiou na República Dominicana, em meados dos anos 1960.
Feitas estas precisões, há de se concluir que o lugar do Brasil no sistema de estados não pode ser confundido com aquele ocupado pela imensa massa de países semicoloniais. Trata-se de um lugar diferenciado. Esta localização individualizada, no plano regional, esclarece o sentimento de desconfiança que só cresce em relação às movimentações brasileiras. Esse fato não torna mais fácil, mas complexifica, ainda mais, qualquer horizonte estratégico com relação à bandeira da segunda independência latino-americana, preconizada por José Martí, desde fins do século XIX.
Não por acaso, a grande mídia não se extenua da tarefa de semear melindres e suspeitas, em relação aos povos da região, junto à população brasileira, distorcendo fatos com o propósito de cavar trincheiras ideológicas e reforçar a ideia de que o lugar do Brasil não é ao lado dos países latino-americanos, mas, sim, dos EUA. No começo do século XX, na obra A ilusão americana, Eduardo Prado argumentava que o nosso entorno não era a América do Sul, mas a Europa. Muda o sujeito da dominação, mas não a ideia de que a localização privilegiada do Brasil é ao lado das grandes potências, se esquecendo, conscientemente, os defensores dessa tese, de que uma semicolônia apadrinhada e favorecida não pode deixar de ter o seu destino cruzado com as semicolônias pouco aforadas. Destino este perpassado pelo domínio imperialista.
Considerações finais:
Indubitavelmente, o que tentamos, ao longo do texto, foi examinar vivamente, por meio de reflexões estratégicas, as características fundamentais da burguesia autóctone, bem como o seu enquadramento de classe na história das aspirações brasileiras, submetendo a um crivo crítico a tese geral da existência de um padrão periférico de desenvolvimento autônomo (Argentina, primeiro, e, Brasil, depois).
Outro ponto, que se liga ao anterior, se sintetiza na seguinte questão: ante a reorientação dos investimentos das grandes corporações, não estaríamos na presença de uma história pelo avesso, na qual uma parte do andar de baixo sobe para o andar de cima, engendrando um “novo imperialismo”, mais espalhado e democrático?
No começo do século XXI, nos dias que mais proximamente precederam a “guerra preventiva” de Bush Jr. contra o Iraque de Saddam Hussein, David Harvey concluiu o seu trabalho intitulado “O novo imperialismo”. Nesta obra, ele examina a constituição do novo imperialismo, depois da débâcle que conduziu ao funeral do velho império britânico. O seu foco, evidentemente, se volta para os EUA e o estudo da constituição do seu projeto de supremacia mundial. Na leitura do livro, dois pontos chamam a atenção.
Em primeiro lugar, a conclusão que a sua pesquisa alcança no que diz respeito ao “novo” imperialismo: “Se assim é, o ‘novo imperialismo’ mostra não passar da revisitação do antigo, se bem que num tempo e num lugar distintos”. (HARVEY, 2014: 148) Essa ilação esboça levemente a ideia de que as diferenças não seriam nem de conteúdo nem decisivas, mas apenas circunstância acidental (tempo e lugar). Em suma, o “novo” imperialismo é o antigo com trajes novos. É óbvio que ele está comparando, de maneira fortemente delimitada, o imperialismo britânico com o estadunidense, mas, ainda assim, nunca é demais o leitor se lembrar de que ambos, em suas entranhas, trazem os traços essenciais que lhes definem o caráter histórico, e, por extensão, o caráter de uma época. Eis aí a chave mais importante que, dificilmente, não legitima a atualidade do fenômeno do imperialismo, e, em vista disso, das não modestas decorrências histórias, dentre elas a de que o núcleo imperial tende mais a se estreitar do que, de repente, se alargar distraidamente, aceitando novos sócios.[14]
Em segundo lugar, quando ele chama a atenção para o fato de que toda uma ala do movimento antiglobalização “considera a luta pelo domínio do aparelho do Estado não só irrelevante, mas um ilusório desvio de rota”. (P. 143) Ora, é exatamente o domínio do aparelho de Estado que permite às burguesias dos países imperialistas, mais facilmente, expandirem a acumulação do capital, dando-lhe amplo padrão geográfico, para usar expressões bem caras a David Harvey. Doutro lado, é o domínio do aparelho de Estado que consente à burguesia brasileira manejar as ferramentas necessárias que, devidamente usadas, a serviço desse projeto, aceleram os processos de subordinação da economia do País. Mais do que antes, a história atribui razão a Lênin; “fora do poder, tudo é ilusão”.
Essa não é a história de um período sumido (muito ao contrário) e, até por isso, sugere a necessidade de um debate que tende a se encaminhar em direção a uma simples pergunta: é possível lutar contra o imperialismo, sem lutar pelo poder? Dela, provavelmente, decorra outras tantas, mas uma em particular nos é cara: de que mundo carece o Brasil?
Referências:
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ZOCKUN, Maria Helena. Desnacionalização e vulnerabilidade externa, in: Desnacionalização – mitos, riscos e desafios (org.: Antônio Correia Lacerda), São Paulo: Contexto, 2000.
Notas:
[1] O setor de autopeças, historicamente controlado pelo capital privado nacional, sofreu amplamente os efeitos da desnacionalização; mas, decerto, esse processo não cessou por aí. A entrada do capital francês no setor de supermercados é outro sintoma da ocupação de posições vantajosas por parte do capital estrangeiro, que, mais recentemente, se instalou no novo mapa da mina: o agronegócio. Doutro lado, a aquisição de empresas mineradoras, ainda nos anos 1990, e a ofensiva sobre a Petrobrás, que começou com os governos do PSDB e seguiu com os governos petistas, em particular, via política de leilões, revelam a magnitude do processo de absorção de partes consideráveis da economia brasileira pelas multinacionais. Por fim, as privatizações, ocorridas nos últimos 25 anos, transferiram parte enorme do patrimônio público para mãos estrangeiras.
[2] Entre os estudiosos da questão argentina, há variações dentro do mesmo tom: todos reconhecem a antiga pujança de sua economia, mas, quando entram no terreno classificatório, ocorrem variações. Fiori (2014), por exemplo, fala de 6ª ou 7ª economia do mundo, tomando como parâmetro a aurora do século XX.
[3] Fiori (2014) descreve com propriedade os traços essenciais dos anos de ouro da Argentina: a arrancada acontece depois da Guerra da Tríplice Aliança, quando, progressivamente, o país se torna o mais rico do continente sul-americano, “com renda per capita quatro vezes maior do que a dos brasileiros”. (P. 271) Para Fiori, esta arrancada “obedeceu a uma estratégia geopolítica claramente expansiva e de disputa pela hegemonia do Cone Sul com o Brasil e o Chile”. (IDEM)
[4] Este período corresponde aos anos dourados do desenvolvimentismo, no Brasil, perpassado pela tensão histórica das distintas formas de capital: privado, estatal e estrangeiro. O crescimento econômico, à época, contribuiu para que o País figurasse no catálogo das economias mais dinâmicas do século passado. Sobre isso, escreveu Fiori (2014): “No século XX, o Brasil deu um passo enorme e sofreu uma transformação profunda e irreversível dos pontos de vista econômico, sociológico e político. No início do século, era um país agrário, com um Estado fraco e fragmentado, e com poderes econômico e militar muito inferiores aos da Argentina. Hoje, na segunda década do século XXI, o Brasil é o país mais industrializado da América Latina e a sétima economia do mundo”. (P.277)
[5] O trabalho organizado por Lacerda se fixa nos anos 1990. Por consequência, não abarca o período da frente popular. Não é nossa intenção estudar especificamente este ou aquele governo, mas, com suporte em dados e informações de escala mais abrangente, verificar as transformações por que passou o Brasil e, nesta linha, determinar o seu lugar no capitalismo contemporâneo e no sistema de estados. De antemão, concebemos o processo de desnacionalização como um amplo movimento que engloba distintos períodos governamentais, ainda que centremos o nosso foco nos anos 1990. Basta que se tome, por exemplo, o caso da Petrobrás, em que os leilões privatizantes começaram com FHC e seguiram com Lula e Dilma (com se viu no leilão do Campo de Libra, na Bacia de Santos, em 2013).
[6] Para que o leitor tenha ideia das ligações da economia brasileira com as chamadas empresas globais, basta que lembremos que “Das quinhentas maiores empresas globais, 405 estão instalados no território nacional”. (MATESCO et al, 2000: 110). Considerando que esses dados são de quinze anos atrás, e que, de lá para cá, essas interconexões se intensificaram, essa presença, provavelmente, se ampliou de modo considerável.
[7] Sobre a delimitação do movimento histórico de acumulação por expropriação, Harvey esclarece: “Embora eu não julgue que a acumulação por espoliação esteja exclusivamente na periferia, é indubitável que algumas de suas manifestações mais viciosas e desumanas ocorrem nas regiões mais vulneráveis e degradadas do âmbito do desenvolvimento geográfico desigual”. (2014:142)
[8] Diz Lênin: “É um novo grau da concentração mundial do capital e da produção, um grau incomparavelmente mais elevado que os anteriores”. (2000:51)
[9] A noção teórica de subimperialismo pode induzir o leitor incauto à ideia de que, hoje, o país se insere na categoria de “sub”, mas, amanhã, provavelmente, constará do catálogo de nações imperialistas, oferecendo, assim, a falsa imagem de uma potência em formação, diluindo o aspecto mais essencial e decisivo, qual seja: o da dependência com relação ao núcleo de poder da economia mundial. Com efeito, Marini se empenhou em não passar recibo a esse tipo de ilação.
[10] Expressão retirada de Fiori (2014).
[11] Um episódio que ilustra esse empenho deu-se durante o segundo mandato de Lula da Silva, quando, junto com a Turquia, o Brasil, em 2010, firmou entendimento com o Irã, relativo ao problema nuclear envolvendo este país do leste asiático e as potências ocidentais, manifestamente os EUA.
[12] Esse é um diálogo em curso na historiografia brasileira. Fiori (2014) associa a imposição dos interesses do Brasil, ou a “afirmação da sua liderança”, no Cone Sul, à transformação profunda e irreversível que o País sofreu ao longo do século XX, mas, principalmente, de 1937 a 1980, período em que ele começa a criar as condições para, nas palavras do autor, se tornar “o principal player internacional do continente sul-americano”.
[13] Em 2005, a Friboi adquiriu participação majoritária da Swift Armor, a maior empresa produtora e exportadora de carne da Argentina, enquanto, em 2013, a Braskem comprou parte majoritária da Solvay Indupa, fabricante de PVC. Além disso, o setor de cervejaria brasileiro e de bancos – faz algum tempo -, ingressaram com força no mercado portenho. Esses são exemplos, não somente da fragilização crescente da economia argentina, mas, por suposto, revela a pujança de empresas instaladas, centralmente, no Brasil; a análise desse quadro exige o máximo de prudência, posto que a internacionalização da economia brasileira, concretamente, a transformou em válvula de escape para o grande capital, oriundo do núcleo de nações centrais, que usam o País para dominar mercados menores à sua volta, como é o caso da Braskem, teoricamente uma empresa nacional, mas com forte presença de capital estadunidense.
[14] A crise capitalista em curso, sublinhada, em parte, pelo desmantelamento do “modelo social europeu”, enseja o “surgimento, nos próprios centros, de periferias capitalistas”, como registra Valência (2009), sinalizando, não para o abrandamento da dependência, mas, como assegura o autor antes citado, para a redefinição da “dependência estrutural” em benefício de um grupo de gigantes econômicos. Provavelmente, a relação da Alemanha com a maior parte dos seus pares europeus, guarda estreitos nexos com a hipótese aqui expressa. Evidentemente, não se deve descartar a conjectura da ampliação do seleto grupo de potências centrais, desde que se faça com enfática prudência, i.e, tratando-a como presunção improvável. Com efeito, a transformação dos elos mais débeis da cadeia imperialista, como mínimo, em virtuais candidatos a compor o mundo semicolonial, prova a fragilidade da tese que toma como mais plausível a tendência à ampliação do espectro imperialista. Por fim, não custa lembrar que parte daqueles que baralham a tese da ampliação, objetivamente, já julgam que ela está em curso, que é um fato, inclusive contando com a esquadra brasileira. Há o caso chinês, levantado em múltiplas oportunidades, mas, nos limites deste trabalho, não é viável sequer pensar em abordá-lo.
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