Patrick G. de Paula [i] |
Este texto é o primeiro de uma pequena série de 3 artigos sobre desenvolvimento das forças produtivas, sua relação com as relações sociais de produção em três distintos contextos. O objeto da série é oferecer uma interpretação sobre o tema do desenvolvimento das forças produtivas alternativa às concepções mais difundidas no marxismo do movimento comunista, além de apontar no que estas concepções distanciam-se substancialmente de posições que podem ser encontradas na obra de Marx.
A interpretação rascunhada nesta série tem como objetivo formular bases teóricas que permitam a análise das recentes discussões sobre “pós-indústria” e “pós-capitalismo” – debate que será abordado de forma direta do terceiro artigo da série – com vistas a compreender as limitações que estas últimas formulações tem apresentado, de um modo que possibilite alguns passos no sentido de superá-las desde o ponto de vista de um marxismo revolucionário.
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Introdução
A noção de forças produtivas do trabalho social (FP) tem um lugar importantíssimo na teoria social de inspiração marxista. Refere-se, numa descrição simples, a todos os elementos que compõe a capacidade humana de produzir as condições de sua própria existência através do trabalho, ou seja, em sua interação com o restante da natureza para produzir e reproduzir suas condições de existência. Entre os seus elementos, podemos citar as ferramentas e instrumentos de trabalho em geral (assim como as máquinas), a tecnologia e as técnicas de produção e as formas de organização do trabalho, os objetos de trabalho (matérias primas etc) e materiais auxiliares. Sendo assim, é possível afirmar que o principal aspecto das FP é o homem, ou seja, a capacidade humana de produzir através do trabalho.
Mas toda interação com a natureza neste processo de produção dos homens pressupõe que estes também estabeleçam determinadas relações entre si, que possibilitem determinada forma de produzir. Estas relações são usualmente chamadas de relações sociais de produção (ou relações de produção – RP). Incluem as formas de propriedade (formas de apropriação da natureza e dos produtos do trabalho), relações de trabalho etc.
Estes dois são os principais elementos do que os marxistas chamam de modo de produção (MP). O modo de produção expressa, portanto, as condições materiais e sociais sobre as quais uma determinada sociedade funciona. Uma forma de pensar nisso é imaginar que se trata de um nível de abstração: Numa sociedade específica, existente em determinada época, vários modos de produção podem coexistir, com a predominância de um deles. O nível de abstração do modo de produção é a análise de um destes tipos, e de suas tendências internas.
Ao analisar o homem enquanto ser social, portanto, pode-se tratar de pelo menos três níveis de abstração distintos: (1) O primeiro, de considerações gerais trans-históricas aplicáveis a todas as sociedades humanas (que também costuma ser chamado de “teoria da história”, ou “filosofia da história”, sendo este último termo extremamente inadequado). Até hoje todas as sociedades foram sempre formadas por seres humanos viventes e tiveram sua reprodução baseada no trabalho humano, sendo assim necessariamente existirão sempre características comuns a todas elas; (2) O segundo nível, da análise das leis de movimento (tendências internas) de um determinado modo de produção. Aqui, o que temos é a teoria de Marx sobre o capital e a sociedade capitalista (e o marxismo posterior, é claro). Ressalte-se que não existe nenhuma teoria acabada na obra de Marx sobre os outros modos de produção, mas apenas considerações no sentido de um contraste com as características do capitalismo; (3) O nível da uma determinada sociedade concreta (ou “formação social”), que busca analisar uma determinada sociedade em uma determinada época histórica na qual operam determinados modos de produção, com determinadas contradições e tendências principais, mas também determinações advindas de outras esferas etc. Este é o nível mais complexo e mais concreto (teoria do imperialismo, desenvolvimento desigual e relações no mercado mundial, “novas fases” e configurações do capitalismo etc.).
O problema de uma consideração adequada dos níveis de abstração tem sido a base de muitas polêmicas dentro do marxismo. Em geral, existe pouco rigor nos leitores de Marx e em muitos marxistas sobre se determinada inferência causal refere-se a uma consideração sobre as sociedades em geral, às tendências do modo de produção predominante ou a uma circunstância histórico-social particular. Como no século XX (e ainda hoje) o marxismo se tornou uma força social real, levada, bem ou mal, em consideração nas decisões políticas e econômicas que afetaram as vidas de milhões de pessoas, essa falta de rigor pode refletir interesses sociais bem específicos, e não apenas dificuldades de interpretação.
Nesta série de três artigos sobre este tema, nosso esforço será analisar algumas importantes posições dentro do marxismo e do movimento comunista em cada um dos três níveis de abstração acima, buscando apontar não apenas sua adequação às formulações de Marx, mas também os interesses político-sociais que cada leitura parece expressar. Neste primeiro artigo da série começaremos com o primeiro “nível”.
Forças produtivas versus relações de produção: considerações trans-históricas
O fundamental aqui é que para o marxismo os homens fazem a sua própria história, mas em circunstâncias que não são de sua escolha (Marx, 2006; Harnecker, 2012). Isto significa pelo menos duas coisas: a) Que existem determinações materiais que limitam as possibilidades da ação humana; b) Que, dentro destas limitações, é a luta viva dos homens que determina o caminho que será seguido.
Nos termos vistos acima, é possível frasear isto da seguinte forma: A evolução e mudança das forças produtivas e das relações sociais de produção gera contradições entre estas instâncias dentro de determinada sociedade. Características específicas postas pela evolução da técnica, por exemplo, podem entrar em conflito com determinadas relações de propriedade, ou, no sentido oposto, novas relações de propriedade podem favorecer determinado tipo de desenvolvimento técnico. Obviamente, nem sempre os aspectos contraditórios entre as duas instâncias são preponderantes. Por exemplo, por toda uma época a expansão da indústria capitalista e a incorporação dentro dela dos mais diversos ramos produtivos até então dominados pelo artesanato ou pela manufatura fez com que, durante todo um período, as relações sociais capitalistas favorecessem este tipo de desenvolvimento das forças produtivas (i.e. transformação dos setores artesanais em setores dominados pela cooperação característica dos sistemas de máquinas da grande indústria).
Mas, ao longo da história, as contradições entre os movimentos das FP e RP geraram sempre a possibilidade de conflitos, que vão se tornando inevitáveis. O conflito aqui, obviamente, não se dá entre as coisas. São as pessoas que percebem que o desenvolvimento de determinada característica da produção, ou a disseminação de determinada tecnologia ou forma de trabalho poderia favorecer a vida que levam. O mesmo resultado pode ser visto como ameaça por outras pessoas, cujos interesses estão mais voltados para a defesa de determinadas relações de propriedade ou de trabalho. Estas diferentes posições funcionais no processo de produção dão origem ao que Marx chama de classes sociais, e o conflito entre elas é a luta de classes, que para Marx é a principal força motriz da história.
Por exemplo: Marx afirma que, no capitalismo, um dos principais conflitos é aquele que gira em torno à jornada de trabalho, e o outro que gira em torno aos salários. Em ambos os casos, são categorias historicamente e socialmente determinadas, mas que também tem componentes postas pelo próprio movimento da acumulação de capital, ou seja, em ambos os casos, existem limites máximos e mínimos sob os quais uma relação de valorização capitalista pode existir, e a luta por seu estabelecimento – supondo a manutenção da relação social capitalista – se dá no interior desses limites. Isto não significa necessariamente que todas as lutas por salário e jornada estarão restritas aos limites do modo de produção capitalista (embora quase sempre seja assim), mas apenas que, se forem restritas a este modo de produção, precisarão se dar dentro de certos limites. Além disso, é fundamental lembrar que existem os limites da produção e reprodução em geral, inescapáveis em um qualquer momento dado, e aqueles específicos de um determinado modo de produção, estes em geral muito mais estreitos.
Embora haja uma certa precedência lógica e histórica das forças produtivas em relação às relações de produção[ii], não existe neste tipo de considerações trans-históricas de Marx qualquer relação de determinação direta, apriorística, entre estas instâncias em qualquer sociedade específica. Cada modo de produção tem suas tendências internas, suas próprias contradições e possibilidades, mas isto não significa que em nenhum (ou qualquer) deles a síntese específica que ocorrerá entre estes elementos em contradição esteja dada de antemão. A síntese que ocorrerá será determinada pela luta viva entre os indivíduos que cuja atuação expressa um empurrão no desenvolvimento de cada uma de suas tendências contraditórias. Ou seja, a luta de classes é a luta pelo tipo de síntese que será realizado entre as características existentes dentro do modo de produção e reprodução da vida e esta luta, em qualquer momento dado, está sempre em aberto, no sentido de que existem sempre distintas possibilidades para o seu desenrolar.
Não há espaço aqui, portanto, para quaisquer “leis gerais de desenvolvimento” aplicáveis a todas as sociedades, ou muitos menos para uma “filosofia da história” (no sentido de uma visão teleológica da história), de matriz hegeliana, mas também não para uma “multilinearidade aberta” (ou seja, um tipo de visão idealista de que podemos seguir caminhos ilimitados, sendo a ação humana completamente livre de restrições). A percepção das limitações que as condições materiais de nossa existência implica limitações para o desenvolvimento humano, mas dentro desses limites sempre existem distintas possibilidades.
Esta não é, entretanto, a interpretação da maior parte do marxismo, em especial daquele que ocupou as posições majoritárias dentro do movimento de trabalhadores de inspiração marxista ao longo do século XX.
Desenvolvimento das forças produtivas como “força motriz” da história
A interpretação aparentemente mais difundida do que seria uma “teoria da história” (essas considerações marxianas de natureza trans-histórica sobre a evolução das sociedades em geral) é a que supõe uma determinação, em última instância, do modo de produção e das relações de produção pelo movimento das forças produtivas.
Não é possível encontrar em nenhum texto de Marx qualquer passagem que endosse, de forma inequívoca, este tipo de interpretação[iii]. É possível, entretanto, apontar a primeira geração de marxistas posterior a Marx e Engels, ou seja, aquela de Kautsky e Plekhanov (em seus escritos da década de 1890), como os pensadores de onde se origina este tipo de interpretação. Mas ela pode ser encontrada em boa parte da literatura marxista vinculada à social-democracia e ao reformismo da segunda internacional, assim como nos manuais do estalinismo e no chamado marxismo analítico de Cohen (1978)[iv].
Plekhanov, embora rejeite expressamente qualquer teleologia histórica como “idealista” (Plekhanov, 1977, p. 45), ao mesmo tempo afirma que as relações econômicas são uma “função das forças produtivas da sociedade” (Plekhanov, 1977, p. 45) e, excetuando a especificidade asiática relacionada ao papel do Estado derivado das condições geográficas[v], parece admitir a possibilidade de uma história que descreve etapas idênticas por toda parte decorrentes do “estado das forças produtivas” (Plekhanov, 1977, p. 53).
Kautsky parece formular o problema de uma forma um pouco mais sofisticada. Ele afirma que o desenvolvimento das forças produtivas, ao entrar em contradição com as relações de produção existentes, coloca as questões sociais que precisarão ser resolvidas pela luta de classes. Sendo assim, não existiria uma determinação direta do modo de produção e das relações sociais de produção pela evolução das forças produtivas, mas a adequação das RP e do MP às FP, ainda que determinado pela luta viva, seria o requisito da todo avanço histórico. Como a humanidade “deve avançar”, então o movimento das forças produtivas “deve determinar” as relações de produção (Kautsky, 1988, p. 450-464)[vi]. Aqui a vontade progressista acaba por se sobrepor a uma análise racional.
Este tipo de formulação parece se harmonizar bem com um tipo específico de concepção do que seria a transição ao socialismo: Uma visão reformista na qual o socialismo surgiria “naturalmente”, a partir do desenvolvimento das forças produtivas sob o próprio capitalismo. Como o desenvolvimento das forças produtivas é visto como a força motriz da história e não pode ser evitado, a evolução e o surgimento de novos modos de produção são também inevitáveis e não dependem de qualquer papel subjetivo, nem de qualquer iniciativa individual. Trata-se, portanto, de uma visão adequada a um certo tipo de projeto político que não busca apontar a necessidade de um revolucionamento das próprias forças produtivas pelo movimento revolucionário do proletariado, exatamente o tipo de visão que caracterizou a maioria da segunda internacional e dos partidos social-democratas como o SPD na Alemanha e os mencheviques na Rússia[vii].
Este tipo de visão determinística que reduz ou anula a importância da luta de classes (ou melhor, da revolução decorrente dela) no processo de surgimento de um modo de produção socialista (ou pós-capitalista, para evitar confusões) possui uma outra variante, que é aquela presente nos manuais do estalinismo e também, ainda que de forma modificada, em autores que expressavam de alguma forma a defesa das posições do estalinismo no ocidente (como Althusser).
O próprio Stálin defendeu, por diversas vezes, a idéia de “leis gerais da sociedade”, de caráter trans-histórico, ou supra-histórico (referentes aos diversos modos de produção). O maior exemplo disso é a defesa da manutenção da “lei do valor” (ou seja, do critério mercantil de divisão do trabalho mediante um mecanismo de preços ou similar) no “modo de produção socialista”, na qual esta característica fundamental do capital (e da sociedade mercantil de tipo capitalista) é vista como uma “lei da ciência”, uma “lei da economia política” que não poderia ser jamais abolida pelo Estado soviético, nem ter sua atuação por este contrarrestada (Stálin, 1972, p. 1-2).
Já no “manual de marxismo-leninismo” de O. Kuusinen (uma espécie de livro-texto das posições oficiais de Moscow), pode-se ler:
Tarde o temprano, el conflicto es resuelto por otro camino, el único posible: la supresión revolucionaria de las viejas relaciones de producción, que son sustituidas por otras en consonancia con el carácter de las fuerzas productivas y con las necesidades de su ulterior desarrollo. Da comienzo un nuevo ciclo que atraviesa las mismas etapas y, si se trata de una sociedad de clases antagónicas, de nuevo culmina con la desaparición del viejo modo de producción y con la aparición de otro nuevo (Kuusinen, 1961, p. 63).
Ou seja, assim como na visão de Plekhanov e Kautsky, o “manual” vê uma determinação direta do desenvolvimento social pelo desenvolvimento das FP, que cedo ou tarde leva a supressão das “velhas relações de produção”. A diferença aqui será a exceção feita ao “modo de produção socialista”, que demandará toda uma série de novas elaborações[viii].
Mas, seja na forma mais direta, seja na forma condicional na qual Kautsky apresenta a questão, este tipo de concepção na qual o movimento das FP determina as relações sociais e a evolução do modo de produção pode ser criticado nos seguintes termos:
a) Este tipo de visão leva a uma concepção teleológica da história:
Não é por outro motivo que esteja muito associada com a noção de que as sociedades humanas evoluem todas sobre a mesma linha histórica, na qual ocupam apenas pontos diferentes (evolução social unilinear[ix]). Se as forças produtivas determinam todo o desenvolvimento social, então as todas as sociedades dariam sempre o mesmo passo ao descobrir as mesmas técnicas, ou desenvolver determinado tipo de produção. Isso faria com que o desenvolvimento histórico-social fosse completamente “previsível” e mero reflexo do desenvolvimento técnico.
São inúmeros os trechos da obra de Marx nos quais ele rejeita expressamente qualquer tipo de concepção teleológica do desenvolvimento histórico[x]. O centro da crítica de Marx a este tipo de posição é que ela visa substituir a análise teórica e histórica dos distintos modos de produção / sociedades concretas (“formações sociais”) por um passe-partout, uma chave que abre, de forma mágica, todas as portas[xi].
No tipo de argumento que defende a existência de “leis gerais da sociedade” ou de um desenvolvimento social linear parece prevalecer um tipo de pensamento completamente oposto à dialética materialista, no sentido de que ao olhar para trás e ver como as coisas se deram, imagina-se que não poderiam ser de outra forma, num evolucionismo mecânico e idealista. Entretanto, em cada época histórica as sínteses possíveis entre os distintos aspectos postos pela evolução das forças produtivas e das relações sociais são diversas, e apontam em sentidos diversos. Nem toda “evolução”, ou seja, nem toda síntese é igualmente “para melhor” ou idêntica[xii]. Marx ressalta isso em diversos de seus escritos. Ainda que não seja possível fazer a história “voltar para trás” (no sentido de que toda síntese histórica, ainda que recoloque algumas das questões existentes, sempre o faz num patamar distinto e superior em temos lógicos) a resolução da luta de classes não é necessariamente o “avanço da humanidade”, mas também pode ser uma evolução que implique em retrocessos em sentidos diversos (inclusive do ponto de vista do desenvolvimento social) e perda de forças produtivas anteriormente desenvolvidas[xiii] ou, até mesmo, na “aniquilação mútua das classes em luta”.
b) Este tipo de visão supõe que as forças produtivas teriam sempre um desenvolvimento autônomo em relação às relações sociais de produção:
Este ponto foi especialmente debatido no interior do marxismo a partir dos anos 1960 e 1970[xiv], quando os efeitos da assim chamada terceira revolução industrial (ou revolução científico-técnica), em especial da informatização e robotização da produção começaram a ser mais sentidos. Surgiu então toda uma literatura que apontava que as forças produtivas da “revolução científico-técnica” entrariam cada vez mais em contradição com o capitalismo (o que não é necessariamente falso), mas chegam à conclusão equivocada de que isto levaria de forma inevitável à superação deste modo de produção e/ou ao desenvolvimento de um modo de produção especificamente socialista[xv]. Da mesma forma, apareceram mais recentemente diversas interpretações que vêem indícios da superação tendencial, inevitável e quase natural do capitalismo pelo desenvolvimento das forças produtivas posto pela Internet e pelo trabalho colaborativo em rede (pós-grande indústria, etc.)[xvi].
A visão da “neutralidade da técnica” aqui presente poderia ser resumida da seguinte forma: As forças produtivas seriam socialmente neutras e seu desenvolvimento estaria submetido a leis próprias, de caráter técnico e independente das relações sociais nas quais estão imersos. Assim, o caráter social das forças produtivas dependeria apenas do uso que se faz delas. Se utilizadas para a produção de mais-valor e para a obtenção de lucros a serem apropriados de forma individual, adquiririam um caráter capitalista; Se submetidas a um plano nacional dentro de uma economia planificada, seriam socialistas[xvii]. Como as FP determinam, ainda que em “última instância” as RP, então elas não podem ser por estas determinadas. Seu desenvolvimento deve, assim, ser “autônomo”.
A melhor refutação desta visão de forças produtivas neutras ou autônomas em relação às relações sociais e em um sentido mais geral da própria noção de que elas sempre determinam as relações sociais de produção foi produzida pelo próprio Marx em obras como os Grundrisse, nos manuscritos conhecidos como “capítulo VI inédito” e, em especial, nos capítulos 11, 12 e 13 de O Capital. Em suma, Marx defende uma visão de que o capitalismo como um modo de produção específico só surge quando há uma adequação entre o desenvolvimento das forças produtivas (no caso, o surgimento dos sistemas de máquinas da grande indústria) e as relações de produção de tipo capitalista. Marx busca mostrar que foram as relações de produção capitalistas operando sob a base da produção pré-capitalista que determinaram o surgimento de forças produtivas adequadas a este tipo de relação social (tais FP correspondem ao tipo de cooperação existente no sistema de máquinas da grande indústria), e que somente com o surgimento deste tipo de força produtiva é possível falar em um modo de produção especificamente capitalista. Aqui fica claro que os defensores deste tipo de interpretação ficam em uma situação difícil para explicar o surgimento do modo de produção capitalista em termos que não signifiquem uma ruptura completa com esta análise de Marx[xviii].
A relação entre as instâncias das FP e RP é obviamente muito mais íntima e de determinação mútua, de uma forma que não pode ser descrita adequadamente pela visão de que FP determinam as relações sociais, e que seu desenvolvimento é autônomo em relação a elas. Como não se trata aqui de recusar a possibilidade de que o movimento das FP determine as RP e o MP, mas apenas de recusar este tipo de determinação como uma “lei geral da sociedade”, um único exemplo contrário já bastaria para rejeitá-la.
Conclusões (parciais)
No início desta exposição apontou-se que ao considerarmos as circunstâncias comuns a todas as sociedades humanas cuja reprodução depende e se fundamenta no trabalho humano, então existirão certas características que necessariamente estarão presentes.
Estas características podem ser resumidas assim:
- As forças produtivas do trabalho podem entrar em contradição com as relações sociais de produção estabelecidas dentro de uma sociedade, dando origem a um conflito, a luta de classes;
- Este conflito só poderá ser resolvido ou por algum tipo de síntese entre as características postas por seus próprios pólos, sejam estas características já maduras ou ainda existentes apenas de forma embrionária, ou pela aniquilação mútua das classes sociais em luta (aniquilação aqui do ponto de vista funcional, não necessariamente uma aniquilação física);
- Esta síntese nunca está determinada de antemão, ela é produto da luta viva e das soluções históricas que são construídas no calor dela. Não existem quaisquer leis trans-históricas ou supra-históricas sobre como este tipo de conflito se resolverá.
- O desenvolvimento das forças produtivas não é “a força motriz da história”. Ele pode fornecer elementos que possibilitem que o conflito se resolva de uma forma superior, que amplie o raio de ação do homem (sua capacidade de transformação da natureza, seu patamar de sociabilidade e seu desenvolvimento no sentido da formação de um gênero humano, cada vez mais diferenciado do restante da natureza). Mas é a luta de classes que determina se estas potencialidades serão desenvolvidas ou negadas.
- Dentro desta perspectiva é a luta de classes, portanto (para o bem ou para o mal), a força motriz da história.
No próximo artigo desta série temática a questão do desenvolvimento das forças produtivas será abordada do ponto de vista de sua relação com as leis de movimento específicas do modo de produção capitalista.
Referências:
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Bukharin, Nicolai (1974). Teoria del materialismo histórico: Ensaio popular de sociologia marxista. Madrid: Siglo XXI de España.
Cohen, Gerald (1978). Karl Marx’s Theory of History: A Defence. Princeton: Princeton University Press, 1978.
De Paula, Patrick (2014). Duas teses sobre Marx e o conceito de desenvolvimento. Revista Outubro (São Paulo), 22, pp. 165-199. http://outubrorevista.com.br/duas-teses-sobre-marx-e-o-desenvolvimento-elementos-para-uma-analise-marxiana-do-desenvolvimento/
________. (2015) Desenvolvimento, progresso e o marxismo de Marx. Blog convergência: http://blog.esquerdaonline.com/?p=5388
Dos Santos, Teotônio (1984). Forças produtivas e relações de produção: Ensaio introdutório. Petrópolis: Vozes.
Germer, Klaus M. (2009). Marx e o papel determinante das forças produtivas na evolução social. Crítica Marxista, n. 29, p.75-95.
Harnecker, Marta (2012). Stages and production forces. In: Science & Society, Vol. 76, No. 2, Abril de 2012, p. 219–242.
Kautsky, Karl (1988). The Materialist Conception of History. New Haven & Londres: Yale University Press.
Kosik, Karel (1986). Dialética do concreto. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e terra.
Kuusinen, Otto (1961). Manual de Marxismo-Leninismo. México: Grijalbo.
Lukács, Georgy (1979). Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
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Marx, Karl. (2006). O dezoito brumário de Louis Bonaparte. 4ª edição. São Paulo: Centauro Editora.
Mason, Paul (2015). Postcapitalism: A Guide to Our Future. Londres: Penguin.
Moreno, Nahuel (1992). Teses para a atualização do programa de transição. São Paulo: CS editora.
Plekhanov, Georgi (1977). A concepção materialista da história. Da filosofia da história. Da concepção materialista da história. O papel do indivíduo na história. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra.
Richta, Radovan (1972). Economia socialista e revolução tecnológica. Rio de Janeiro: Paz e terra.
Stálin, Josef (1972). Remarks on economic questions connected with the November 1951 discussions. In: Economics problems of the socialism in the USSR. Peking: Foreign Languages Press.
Sweezy, Paul et al (1977). A Transição do feudalismo para o Capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Trotsky, León (1939). O marxismo em nosso tempo: o pensamento vivo de Karl Marx. https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1939/marxismo/cap01.htm
Notas:
[i] Contato: [email protected]. O autor deixa aqui um especial agradecimento ao camarada André Bucaresky por compartilhar seu extenso levantamento de trechos sobre o tema em obras clássicas do marxismo revolucionário.
[ii] No sentido de que para que sejam desenvolvidas ou negadas, certos aspectos das forças produtivas precisam primeiro existir, ainda que de forma embrionária ou incompleta, algo que seria chamado por Lukács de prioridade ontológica (Ver Lukacs, 1979, p. 41; 155). Ver também, sobre isso, Augusto & Carcanholo (2014).
[iii] O requisito para a existência de tal passagem é que ela permita a interpretação de que o movimento das forças produtivas determina o movimento das relações sociais de produção, mas que, ao mesmo tempo, permita excluir a interpretação defendida neste texto.
[iv] É curioso notar que mesmo nestas formulações mais conhecidas, a visão de uma determinação apriorística (como “lei geral da sociedade”) das relações de produção e do modo de produção não aparece de forma tão direta como em textos mais recentes, como, p. ex., em Germer (2009).
[v] Plekhanov (1977), buscando levar em consideração a elaboração por Marx da categoria do modo de produção asiático, defendeu uma tese sobre a existência de um “ciclo europeu” do qual a Ásia havia se afastado de seus inícios em comum devido a circunstâncias geográficas e climáticas que promoviam o poder do Estado fundado no controle das águas (grandes obras públicas).
[vi] Esta formulação é bem semelhante à de Bukharin, quando este afirma que: “a condição necessária para um ulterior desenvolvimento é também chamada com muita freqüência de necessidade histórica. É neste sentido do termo ‘necessidade histórica’ que podemos falar da ‘necessidade’ da revolução francesa, sem a qual o capitalismo não teria continuado seu crescimento, ou da ‘necessidade’ da chamada ‘libertação dos servos’, em 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar seu desenvolvimento. Neste sentido podemos também falar da necessidade histórica do socialismo, desde o momento que sem ele a sociedade humana não pode continuar seu desenvolvimento. Se a sociedade deve continuar sua marcha, o socialismo é inevitável” (Bukharin, 1974, p. 143).
[vii] Aliás, no caso dos mencheviques, este tipo de visão vai ter uma conseqüência ainda mais grave: A ideia de que o movimento do proletariado no início do século XX deveria esperar até que as forças produtivas estivessem suficientemente desenvolvidas, e, portanto, deveria dar o seu apoio para que, durante todo um período, o país fosse governado pela burguesia e por suas organizações políticas.
[viii] Por uma questão de rigor na apresentação do ponto de vista dos níveis de abstração, esta especificidade da visão do estalinismo sobre o “modo de produção socialista” será tratada no terceiro artigo desta série temática (que abordará a questão do desenvolvimento das forças produtivas e o “pós-capitalismo”).
[ix] O exemplo mais categórico deste tipo de visão unilinear do desenvolvimento social está no “manual” de Kuusinen:
“El concepto de formación político-social tiene un valor formidable para toda la ciencia de la sociedad. Nos permite comprender por qué, a pesar de toda la variedad de detalles concretos, la totalidad de los pueblos recorren en líneas generales a un mismo camino. La historia de cada uno de ellos, en resumidas cuentas, viene condicionada por el desarrollo de las fuerzas productivas, que se subordina a unas mismas leyes internas. La sociedad avanza mediante una sucesión consecutiva e sujeta a leyes de las formaciones económico-sociales; y el pueblo, que vive dentro de una formación mas avanzada muestra al resto su futuro, de la misma manera que fuere de él ve su pasado” (Kuusinen, 1961, p. 64).
[x] Em outro trabalho foi feita uma demonstração mais detalhada da evolução do pensamento de Marx sobre o tema. Ver De Paula (2014, p. 173-179).
[xi] Ao contrário do reformismo e do estalinismo, León Trotsky, assim como Marx, foi também um duro crítico da busca por “leis gerais da sociedade”, de caráter trans-histórico:
A finalidade de Marx não era descobrir as “leis eternas” da economia. Ele negou a existência de tais leis. A história do desenvolvimento da sociedade humana é a história da sucessão de diversos sistemas econômicos, cada um dos quais atua de acordo com suas próprias leis. […]. Em seu Capital, Marx não estuda a economia em geral, mas a economia capitalista, que tem leis específicas próprias. Refere-se a outros sistemas apenas de passagem e com o objetivo de pôr em evidência as características do capitalismo (Trotsky, 1939).
[xii] É preciso reconhecer como necessária, para a crítica aqui apresentada, uma determinada noção de desenvolvimento. Esta noção é aquela que, em nossa opinião, está presente na obra de Marx, e que também foi desenvolvida de forma mais aprofundada na obra de G. Lukács, e que engloba três aspectos, ou três tendências: do aumento das forças produtivas do trabalho (ou seja, a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e reprodução das condições de vida humana), o caráter progressivamente social deste processo de reprodução (o “recuo das barreiras naturais”, o processo de reprodução da vida humana se torna cada vez mais social e menos “natural”) e a formação do gênero humano, no sentido da unificação da humanidade e formação de uma “especificidade humana”, resultado contraditório das “ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as sociedades singulares originalmente pequenas e autônomas” (Lukacs, 2009, 237-238). Ver também De Paula (2015) e Kosik (1986), este último, em especial, sobre a “realização do homem na história”.
[xiii] Um exemplo clássico aqui são as perdas de forças produtivas que se seguiram à desagregação da sociedade escravista com o final do império romano e o início da idade média na Europa.
[xiv] A questão é tratada aqui apenas no que diz respeito ao nível de abstração das sociedades em geral (trans-histórico), as considerações específicas sobre a questão dentro do modo de produção capitalista estão na seção 3.
[xv] O mais conhecido estudo deste tipo foi o organizado pelo tcheco Radovan Richta (Richta, 1972). Ver também Dos Santos (1984).
[xvi] Ver, em especial, o livro de Paul Mason (Mason, 2015), uma reedição dos argumentos do reformismo do início do século XX aplicada à sociedade “pós-industrial”.
[xvii] Esta visão que atribui um caráter “neutro” à evolução das forças produtivas parece ter alcançado certa influência inclusive dentro de organizações revolucionárias do movimento trotsquista. Ver, por exemplo, Moreno (1992, p. 65).
[xviii] Boa parte das dificuldades do debate historiográfico marxista sobre a transição do feudalismo ao socialismo que teve em Maurice Dobb e Paul Sweezy seus principais expoentes parece ter em sua base, de ambos os lados, justamente um distanciamento neste aspecto da perspectiva marxiana da transição. Conferir em Sweezy et al (1985).
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