Da Redação
Noam Chomsky é professor emérito em Linguística do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), uma das melhores universidades do mundo. Autor de dezenas de obras, em que se destacam análises de teor crítico à política estadunidense e à mídia, além de obras no campo da teoria linguística, Chomsky concedeu entrevista à revista norte-americana Jacobin. Na entrevista, fala sobre reformas progressivas e sobre a relação entre a luta pelo socialismo, a natureza humana e o liberalismo, sobre a Syriza, Cuba e Fidel Castro, bem como sobre a resistência dos movimentos sociais a Donald Trump. Traduzimos e publicamos a entrevista na íntegra.
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A bibliografia de Noam Chomsky continua crescendo enquanto em que ele vai se aproximando dos noventa anos. Para a esquerda internacional, felizmente, ele continua concedendo entrevistas.
No início deste mês, menos de uma semana antes de seu aniversário de 88 anos, Chomsky sentou para uma conversa em seu escritório em Cambridge, Massachusetts. Entrevistado por Vaios Triantafyllou, um estudante da Universidade da Pennsylvania, Chomsky debateu desde socialismo, natureza humana e Adam Smith até o presidente eleito dos EUA (a transcrição foi editada e resumida, para ficar mais clara).
Enquanto Donald Trump nomeia seu gabinete ministerial, Chomsky admite que o futuro pode nos trazer a intolerância e a busca por “bodes expiatórios”. Contudo, ainda nos cabe escolher “se isto vai ou não acontecer”, afirma Chomsky acerca das táticas de dividir para conquistar: “depende do tipo de resistência que será imposta por pessoas como você”.
Como os socialistas deveriam pensar as relações entre as reformas que humanizam o sistema existente de produção (como as propostas por Sanders) e a estratégia de longo prazo da abolição do capitalismo como um todo?
Bem, primeiramente, deveríamos levar em conta que, tal como a maioria dos termos no discurso político, o termo “socialismo” perdeu de certa forma o seu significado. “Socialismo” tinha, antes, um significado preciso. Há muito tempo, esta palavra designava basicamente o controle da produção pelos produtores, a eliminação do trabalho assalariado, a democratização de todas as esferas da vida: produção, comércio, educação, mídia, controle operário nas fábricas, controle comunitário sobre as próprias comunidades e assim por diante. Isto era o socialismo antigamente.
No entanto, esta palavra não tem mais este significado há um século. Na verdade, os países que eram chamados de “socialistas” tinham os sistemas mais antissocialistas do mundo. Os trabalhadores tinham mais direitos nos Estados Unidos e na Inglaterra que na Rússia, e ainda assim chamava-se aquilo que havia na Rússia de socialismo.
Quanto a Bernie Sanders, ele é uma pessoa honesta e decente, e eu o apoiei. Mas o que ele quer dizer com “socialismo” é o liberalismo do New Deal. De fato, suas propostas políticas não teriam surpreendido o General Eisenhower. O fato de que suas propostas tenham sido chamadas de “uma revolução política” é um sinal do quanto o espectro político girou à direita, principalmente nos últimos trinta anos, desde que os programas neoliberais começaram a ser aplicados. O que Sanders estava reivindicando era a restauração de algo como o liberalismo do New Deal, que é algo muito positivo.
Então, voltando a sua pergunta, acho que deveríamos perguntar: as pessoas que se importam com os seres humanos e com suas vidas e anseios deveriam tentar humanizar o sistema de produção existente através dos meios que você menciona? E a resposta é: claro que elas deveriam fazer isto, pois é melhor para as pessoas.
Deveriam estabelecer a meta em longo prazo de abolir a organização capitalista da economia como um todo? Claro, acredito que sim. O capitalismo trouxe avanços, mas é baseado em premissas muito brutais, desumanas. A própria ideia de que deve haver uma classe de pessoas que dão ordens por serem proprietárias de riquezas e outra classe, gigantesca, que recebe ordens e que as segue, porque não tem acesso à riqueza e ao poder, é inaceitável.
Então, é claro que este sistema deveria ser abolido. Mas estas duas metas [a reforma e a abolição do capitalismo] não são alternativas. São coisas que são feitas em conjunto.
Um dos principais argumentos lançados contra o socialismo é que a natureza humana seria, por definição, egoísta e competitiva, e que, portanto, tenderia ao capitalismo. Como você responderia a isto?
Não esqueça que o capitalismo é um curtíssimo período da sociedade humana. Nunca, na verdade, tivemos um capitalismo, sempre tivemos uma variedade ou outra de capitalismo de Estado. A razão para isto é que o capitalismo iria se autodestruir em muito pouco tempo. Então, a classe empresarial sempre exigiu forte intervenção estatal para proteger a sociedade dos efeitos destrutivos das forças de mercado. É muito comum que isto seja levado a cabo, porque eles não querem que tudo se acabe.
Assim, tivemos uma forma ou outra de capitalismo de Estado durante um período muitíssimo breve da história humana, e isto nada nos diz de essencial acerca da natureza humana. Se você observar as sociedades e as interações humanas, encontra de tudo. Você encontra egoísmo, encontra altruísmo, encontra simpatia.
Vamos pegar Adam Smith, o santo padroeiro do capitalismo – o que ele pensava? Ele acreditava que o principal instinto humano era a compaixão. Na verdade, observe a expressão “mão invisível”. Preste atenção no modo exato com que ele usava esta expressão. Na verdade, não é difícil entender, porque ele só a usou duas vezes de forma relevante, uma vez em cada um de seus livros mais importantes.
Em um de seus principais livros, A riqueza das nações, a expressão aparece uma vez, e surge como parte de uma crítica à globalização neoliberal. O que ele diz é que se, na Inglaterra, os industriais e comerciantes investissem no exterior e de lá importassem, eles poderiam lucrar com isto, mas tal prática seria ruim para a Inglaterra. Contudo, seu compromisso com a pátria é o bastante para que eles dificilmente façam tal coisa e, portanto, através de uma mão invisível, a Inglaterra será salva do impacto do que se poderia chamar de globalização neoliberal. Este é um dos usos.
O outro uso está em seu outro grande livro, A teoria dos sentimentos morais (que as pessoas não leem muito, mas que para ele era o livro mais importante). Aqui, ele é um igualitarista, acreditava na igualdade dos resultados, não das oportunidades. Ele é uma figura do Iluminismo, pré-capitalista.
Ele diz: suponha que na Inglaterra um proprietário de terras possuísse a maior parte da terra e outras pessoas não tivessem do que viver. Ele diz que não importaria muito, porque o rico proprietário, graças a uma mão invisível, acabaria numa sociedade bastante igualitária. Esta é sua concepção da natureza humana.
Este não é o sentido com que a “mão invisível” é mencionada por pessoas com quem vocês estudaram ou cujos livros leram. Isto demonstra uma diferença quanto à doutrina, não quanto às fatos, acerca da natureza humana. O que nós realmente sabemos sobre a natureza humana é que ela tem todas estas possibilidades.
Você considera necessário elaborar propostas concretas para uma futura ordem socialista, criando uma sólida alternativa que atraia a maioria das pessoas?
Eu acredito que as pessoas estejam interessadas em autênticas metas socialistas em longo prazo (que não correspondem ao que normalmente é chamado de socialismo). Elas deveriam refletir cuidadosamente sobre como a sociedade projetada deveria funcionar, não de maneira detalhada, porque muitas das coisas simplesmente devem ser aprendidas experimentando-se, e nós não sabemos o bastante para planejar sociedades minuciosamente, de forma alguma. Contudo, as linhas gerais podem ser concebidas, e muitos dos problemas específicos podem ser discutidos.
Basta que estas questões façam parte da consciência das pessoas comuns. É assim que a transição ao socialismo pode acontecer. Quando isto se torna parte do pensamento, da consciência e das aspirações da grande maioria da população.
Então, tomemos o exemplo de um dos maiores êxitos neste sentido, talvez o maior: a revolução anarquista na Espanha, em 1936. Houve décadas de preparação para ela: na educação, no ativismo, e esforços – às vezes reprimidos –, mas quando chegou o momento da ofensiva fascista, as pessoas tinha consciência da forma como elas queriam que a sociedade fosse organizada.
Nós já vimos isto em outras formas, também. Veja, por exemplo, a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial teve um impacto totalmente devastador sobre a maior parte da Europa. Mas não lhes custou muito tempo para reconstruir as democracias do capitalismo de Estado porque a mesma estava na cabeça das pessoas.
Houve outras partes do mundo que foram muito devastadas, mas em que eles não puderam fazer o mesmo. As pessoas não tinham as mesmas concepções. Muito depende da consciência humana.
A Syriza chegou ao poder declarando compromisso com o socialismo, mas acabou por cooperar com a União Europeia e não renunciou ao poder mesmo depois de ter sido forçada a implantar a austeridade. Como você acha que nós podemos evitar acontecimentos similares no futuro?
Acredito que a verdadeira tragédia da Grécia, além da selvageria da burocracia europeia, da burocracia de Bruxelas, dos bancos dos países do norte, que foi realmente selvagem, seja que a crise Grega não precisasse irromper. Poderia ter sido controlada com facilidade bem no início.
Mas aconteceu, e a Syriza chegou ao poder com o compromisso declarado de combatê-la. De fato, convocou-se um plebiscito que aterrorizou a Europa: a ideia de que as pessoas deveriam ter o direito de decidir algo a respeito de seus próprios destinos é um anátema para as elites europeias – como a democracia poderia sequer ser permitida (mesmo no país em que ela foi criada)?
Como resultado desta ação criminosa de perguntar as pessoas o que elas queriam, a Grécia foi punida ainda mais severamente. As exigências da Troika se tornaram ainda mais duras por causa do plebiscito. Eles temiam uma espécie de efeito dominó – se nós levarmos em consideração a vontade das pessoas, outros podem ter a mesma ideia, e a praga da democracia poderia realmente se espalhar, então nós temos que combatê-la, imediatamente, desde a raiz. Assim, a Syriza capitulou e, desde então, vem fazendo muitas coisas que julgo um tanto inaceitáveis.
Você pergunta como as pessoas devem reagir? Criando algo melhor. Não é fácil, especialmente quando se está isolado. A Grécia, sozinha, está numa posição muito vulnerável. Se os gregos tivessem o apoio da esquerda progressista e das forças populares no resto da Europa, eles poderiam ter sido capazes de resistir às exigências da Troika.
Qual a sua opinião sobre o sistema que Castro criou em Cuba depois da revolução?
Bem, quais seriam os verdadeiros objetivos de Castro nós não temos como saber. Ele foi muito pressionado desde o início por um ataque cruel e duro por parte da superpotência dominante.
É preciso lembrar que, literalmente, poucos meses depois de sua chegada ao poder, aviões da Flórida começaram a bombardear Cuba. Dentro de um ano, o governo Eisenhower, secreta, mas formalmente, decidiu derrubar o governo [Cubano]. Então ocorreu a invasão à Baía dos Porcos. O governo Kennedy ficou furioso devido à falha da invasão e imediatamente lançou uma grande guerra terrorista, econômica, que recrudesceu ao longo dos anos.
Sob tais condições, é até surpreendente que Cuba tenha sobrevivido. Trata-se de uma pequena ilha há poucos quilômetros do litoral de uma gigantesca superpotência que está tentando destrui-la e que, obviamente, dependera dos Estados Unidos para sobreviver durante toda a sua história pregressa recente. Porém, de alguma forma, eles sobreviveram. É verdade que é uma ditadura: muita brutalidade, muitos prisioneiros políticos, muitas pessoas mortas.
Lembre-se de que o ataque dos EUA a Cuba foi apresentado ideologicamente como necessário para nos defendermos da Rússia. Tão logo a Rússia desapareceu, contudo, o ataque foi mais duro. Quase não se comentou tal fato, mas isto nos mostra que as justificativas anteriores eram apenas mentiras puras e simples, como se mostraram de fato.
Se você consultar os documentos internos dos EUA, eles explicam muito claramente qual era a ameaça de Cuba. No início dos anos 60, o Departamento de Estado descrevia a ameaça de Cuba como um desafio bem-sucedido de Castro à política dos EUA, até à Doutrina Monroe. A Doutrina Monroe estabelecia a reivindicação – que eles não podiam concretizar à época, mas reivindicavam – de domínio do Hemisfério Ocidental, e Castro estava desafiando esta reivindicação com sucesso.
Isto não podia ser tolerado. É como se alguém dissesse: vamos ter democracia na Grécia, e nós simplesmente não pudéssemos tolerar isto, então teríamos que cortar o mal pela raiz. Ninguém pode, com sucesso, desafiar o senhor do hemisfério, na verdade o senhor do mundo, e daí vem a selvageria. Mas a reação foi diversificada. Houve êxitos, como na saúde, na alfabetização, e assim por diante. O internacionalismo foi inacreditável. Foi a razão por que Nelson Mandela foi a Cuba cumprimentar Castro e agradecer ao povo cubano assim que saiu da prisão. É uma reação do terceiro mundo, e eles entenderam-na.
Cuba desempenhou um enorme papel na libertação da África e na derrubada do apartheid – enviando médicos e professores aos lugares mais pobres do mundo, como Haiti, Paquistão depois do terremoto, a quase todos os lugares. O internacionalismo é simplesmente espantoso. Não acho que tenha havido nada parecido na história. As conquistas na área da saúde foram surpreendentes. As estatísticas de saúde em Cuba eram aproximadamente as mesmas que as dos Estados Unidos, mas observem-se as diferenças de riqueza e de poder.
Por outro lado, havia uma ditadura cruenta. Então, houve ambas as coisas. Transição ao socialismo? Não se pode sequer falar sobre isto. As condições tornavam isto impossível, e não sabíamos se havia esta intenção.
Nos últimos anos surgiram muitos movimentos nos EUA criticando a atual forma de organização social e econômica. Ainda assim, a maioria destes movimentos se uniu contra um inimigo comum em vez de se unir em torno a uma perspectiva comum. Como poderíamos entender a situação dos movimentos sociais e sua capacidade de se unificarem?
Tomemos o movimento Occupy (Ocupe). Occupy não era um movimento, era uma tática. Não se pode sentar num parque próximo de Wall Street para sempre. Não se pode fazer tal coisa por mais que alguns meses.
Foi uma tática que eu não havia previsto. Se as pessoas tivessem me perguntado, eu teria dito: não façam isto.
Mas foi um grande sucesso, um sucesso enorme, com um grande impacto no pensamento das pessoas, nas ações das pessoas. Todo o conceito de concentração de renda (1 por cento e 99 por cento) estava lá, obviamente, como um pano de fundo na consciência das pessoas, mas se tornou proeminente – proeminente até mesmo nos meios de comunicação de massa (no Wall Street Journal, por exemplo) – e levou a muitas formas de ativismo, energizou as pessoas e tudo mais. Mas não foi um movimento.
A esquerda, de uma forma geral, é muito atomizada. Vivemos em sociedades muito atomizadas. As pessoas são muito solitárias: é você com seu iPad.
Os maiores centros organizativos, como o movimento dos trabalhadores, foram seriamente enfraquecidos, nos Estados Unidos muito seriamente, pela política. Não aconteceu de uma hora para outra. Políticas têm sido elaboradas para arruinar a organização da classe trabalhadora, e o motivo não é apenas que os sindicatos lutem pelos direitos dos trabalhadores, mas porque também têm um efeito democratizante. Estas são instituições em que as pessoas sem poder podem se reunir, apoiar-se mutuamente, aprender sobre o mundo, experimentar suas ideias, iniciar programas – e isto é perigoso. É como o plebiscito na Grécia. É perigoso permitir tal coisa.
Devemos nos lembrar de que durante a Segunda Guerra Mundial e a Depressão, houve uma irrupção de democracia popular e radical em todo o mundo. Deu-se de formas diferentes, mas estava lá, em todo lugar.
Na Grécia foi a revolução grega. E tinha de ser esmagada. Em países como a Grécia, foi esmagada pela violência. Em países como a Itália, onde as forças britânicas e estadunidenses entraram em 1943, foi esmagada com o ataque e a destruição das milícias que combatiam os alemães e com a restauração da ordem tradicional. Em países como os Estados Unidos, foi esmagada não pela violência – o poder capitalista não tem esta capacidade aqui -, mas sim, desde os anos 40, por imensos esforços no sentido de tentar minar e destruir o movimento trabalhista. E assim foi.
Estes esforços chegaram a um ápice sob Reagan e, mais tarde, sob Clinton, e agora o movimento dos trabalhadores é extremamente fraco (em outros países, isto se deu de outras maneiras). Mas este movimento era uma das instituições que permitia que as pessoas se reunissem e agissem cooperativamente em mútuo auxílio, e alguns destes movimentos foram totalmente dizimados.
O que nós podemos esperar de Donald Trump? Sua ascensão ao poder põe a necessidade de redefinir e unir um movimento socialista em torno a uma perspectiva como nos Estados Unidos?
A resposta para isto cabe basicamente a você e aos seus amigos. Realmente depende de como as pessoas, especialmente os jovens, reagirão. Há muitas oportunidades que poderiam ser aproveitadas. Não é inevitável, de modo algum.
Considere apenas o que pode acontecer. Trump é bastante imprevisível. Ele não tem ideia do que planeja. Mas o que poderia acontecer, por exemplo, é o seguinte: muitas das pessoas que votaram em Trump, pessoas da classe trabalhadora, votaram em Obama em 2008. Eles foram seduzidos por slogans como “esperança” e “mudança”. Eles não obtiveram esperança; não obtiveram mudança; ficaram desiludidos.
Desta vez estas pessoas votaram em outro candidato que está evocando esperança e mudança e prometeu fazer todas as maravilhas. Bem, ele não vai fazer nenhuma. Então, o que pode acontecer em alguns anos, quando ele não as tiver feito e aquele mesmo eleitorado estiver desiludido?
O que é muito provável é que o sistema de poder faça o que normalmente faz em tais condições: tentar encontrar um bode expiatório mais vulnerável, para dizer: “É isto aí, vocês não receberam o que lhes prometemos, e a causa são estas pessoas inúteis, estes mexicanos, estes negros, estes imigrantes sírios, são os que fraudam a assistência social. São eles que estão destruindo tudo. Vamos persegui-los. Os gays, são eles os culpados.”
Isto poderia acontecer. Já aconteceu diversas vezes na história, com consequências um tanto desastrosas. E se isto vai acontecer de novo depende do tipo de resistência que vai ser imposta por pessoas como você. A resposta a esta questão deveria ser dirigida a você, não a mim.
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