Por: Caroline Hilgert*, colunista sobre Povos Indígenas
Por mais que sejam numerosos e sabidos, seus médicos não poderão fazer nada. Serão destruídos aos poucos, como nós teremos sido, antes deles. Se insistirem em saquear a floresta, todos os seres desconhecidos e perigosos que nela habitam irão vingar-se. Vão devorá-los, com tanta voracidade quanto suas fumaças de epidemia devoraram os nossos. Vão incendiar suas terras, derrubar suas casas com vendavais ou afogá-los em enxurradas de água e lama. (A morte dos xamãs in A Queda do Céu – Palavras de um xamã yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert, 2015. p. 492)
Davi Kopenawa, xamã yanomami, anunciou a Queda do Céu em seu livro de mesmo nome, produzido a partir de vinte anos de entrevistas gravadas com o antropólogo Bruce Albert, transcritas por ele a pedido de Davi, para dialogar com os não indígenas que só entendem a palavra escrita. No livro, o xamã explica tudo sobre a cultura e a cosmovisão yanomami e profetiza o fim dos tempos, caso o capitalismo inescrupuloso continue avançando e destruindo os povos e a natureza.
Depois da sua leitura, dia após dia, vejo a concretização da queda, seja com a lama, seja com a desgraça, seja com as tragédias. No dia em que infelizmente caiu o avião da Chapecoense, em terra muitas pessoas também caíram, mas não por acidente. Em solo as bombas foram propositalmente lançadas.
Era uma terça-feira, dia 29 de novembro, quando os Munduruku, guerreiros, mulheres e crianças, no primeiro horário da manhã, já faziam danças e cantos em protesto na esplanada de Brasília. Como se mexessem num formigueiro, muitos ônibus e pessoas não indígenas também foram chegando. Todos estavam unidos contra a votação da PEC 241-51/2016, dizem que pelo menos 35 mil pessoas estavam nas ruas de Brasília contra a PEC do FIM do MUNDO.
Entre a Queda do Céu e o Fim do Mundo parece realmente haver uma ligação, pois que no dia de maior manifestação na esplanada, infelizmente caiu o avião da Chapecoense. Assim, o Temer, rapidamente saiu de Brasília e o governo, se utilizando da tragédia, liberou as bombas e a repressão contra tudo e todos que se encontravam em manifestação pacífica em Brasília.
E a grande mídia, por sua vez, apenas divulgou a tragédia da Queda do Avião e os “Vândalos da Manifestação”, sem conseguir jamais entender as profecias de Davi. Uma mulher que se encontrava na manifestação me disse: “olha, eu desmaiei três vezes com as bombas, da próxima vez, vou deixar as criança em casa, a gente não sabia que era guerra, a gente veio para manifestar, mas se é guerra, vou deixar as criança em casa”. Ao que parece, a expressão “pacífica” na verdade é utilizada para substituir a oposição política e ideológica: toda manifestação da direita parece ser pacífica e todas as que são organizadas pela esquerda não. Essa perversidade também vem estampada na manifestação convocada para o dia 04/12/2016 que teve ampla divulgação e cobertura, bem como o mar de verde e amarelo foi considerado pacífica. O mar vermelho incomoda.
Os brancos não se tornam xamãs. Suas imagem de vida nõreme é cheia de vertigem. Os perfumes que passam e o álcool que bebem tornam seu peito demasiado odorante e quente. É por isso que ele fica vazio. (…) Quando dormem, só veem no sonho o que os cerca durante o dia. Eles não sabem sonhar de verdade (…) (A Queda do Céu – Palavras de um xamã yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert, p. 460).
Enquanto isso, no mesmo dia, enquanto participava de uma audiência naquela terça-feira, uma Promotora de Acusação perguntava, informalmente, a uma cacica indígena, ré, antes do interrogatório: “apenas por curiosidade, como é que faz pra virar índio? Por que a senhora não era índia e virou né? Porque eu acho que vocês deviam preservar mais a cultura de vocês, porque eu acho que vocês estão perdendo, né? Lá no Peru, os índios resistiram à colonização espanhola e por isso eles preservam a cultura deles, não é igual aos daqui do Brasil, que não resistiram, vocês deviam preservar mais, eu acho”.
Diante desse nível de preconceito, invoco, inicio e termino, com palavras do xamã Yanomami:
Somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as nascentes dos rios muito antes de os meus pais nascerem, e muito antes do nascimento dos antepassados dos brancos. Antigamente, éramos realmente muitos e nossas casas eram muito grandes. Depois, muitos dos nossos morreram quando chegaram esses forasteiros com suas fumaças de epidemia e suas espingardas. Ficamos tristes, e sentimos a raiva do luto demasiadas vezes no passado. Às vezes até tememos que os brancos queiram acabar conosco. Porém, a despeito de tudo isso, depois de chorar muito e de pôr as cinzas de nossos mortos no esquecimento, podemos ainda viver felizes. (…) Sabemos que eles permanecessem ao nosso lado na floresta e continuam mantendo o céu no lugar. (A Queda do Céu – Palavras de um xamã yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert, p. 78/79).
*advogada na questão indígena e quilombola, atua na defesa criminal de movimentos sociais.
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