EDITORIAL 15 DE DEZEMBRO | Aleppo tornou-se o centro das notícias no globo. As barbáries da guerra, os vídeos que apresentam uma cidade em destroços, o sangue de civis e o desespero dos que tentaram fugir. Queremos, a partir deste texto apresentar nossa opinião sobre a tragédia de Aleppo.
O que é o regime de Assad?
É um dos mais antigos governos ditatoriais da região, uma espécie de monarquia secular, pois o pai do atual ditador Bashar Al-Assad chegou ao poder em 1971 ficando até sua morte em 2000. Seu filho o sucedeu e governa até hoje.
Como o conjunto dos regimes liderados pelo chamado nacionalismo árabe, após a derrota contra Israel em 1967, girou para uma colaboração cada vez maior com o imperialismo. As reformas neoliberais a partir dos anos 1990 aumentaram o grau de pobreza no país: às vésperas do levante de 2011, um terço da população se encontrava abaixo da linha de pobreza oficial, 15% desempregados, o que na juventude entre 15 a 24 anos chegava a 1/3 do total.
Como o regime de Ben Ali na Tunísia, de Mubarak no Egito, o regime sírio era extremamente corrupto e dominado pelo clã ligado aos Assad (seu primo Rami Makhlouf é a pessoa mais rica do país e se considera que controle cerca de metade da economia(!). Esse é o caldo de cultivo que levou às mobilizações de 2011 na Síria e em quase toda a região. Uma particularidade do regime é que constituiu o núcleo das forças armadas composta pelas tropas de elite de forma estreitamente ligada ao clã dos Assad, que se baseia na minoria alauíta. Por isso, se manteve leal ao regime, ao passo que em regimes similares como os da Tunísia e do Egito rapidamente se livraram dos ditadores para manter o regime.
Um regime cada vez mais pró-imperialista
Ao contrário do mito, as relações de Assad com o imperialismo eram cada vez melhores, ao ponto de ter sido recebido com honras oficiais por Sarkosy no Palácio Champs Elisees para o desfile de 14 de julho de 2007. O regime sírio apoiou ambas as guerras do Iraque e colaborou estreitamente com o programa de tortura de prisioneiros elaborado pela CIA a partir da invasão do Iraque
O regime sírio não é pró-palestino
Em primeiro lugar, após a guerra de 1973, a fronteira com Israel é a mais segura para o regime sionista. Os palestinos exilados na Síria são estreitamente controlados. Durante a guerra civil no Líbano, que enfrentou em um primeiro round a esquerda e os palestinos lá refugiados contra a direita maronita, as tropas sírias entraram para impedir a vitória da esquerda e perpetraram um terrível massacre no campo de Tal Al-Zaatar em 1976. Durante a guerra civil, o campo de Yarmouk, o maior deles, com 100 mil refugiados, foi bombardeado pela artilharia do exército e hoje está praticamente deserto.
Qual é a posição do imperialismo americano?
Após a invasão do Iraque, os planos de controle mais direto do Oriente Médio pelo imperialismo norte-americano sofreram um importante abalo, na medida em que os custos materiais e as perdas humanas estavam além do que estavam dispostos a sustentar. Ainda restava o trauma da derrota no Vietnã e porque não poderia controlar outras partes do planeta simultaneamente.
No começo do levante no mundo árabe, o imperialismo inclusive defendeu os antigos regimes, em particular o de Mubarak, no país mais importante da região, o Egito. Com a queda, procuraram evitar o desastre ocorrido no Iraque, em que desmontaram todo o aparelho de estado construído por Sadam Hussein e o caos reinante dificultou sobremaneira dominar o país. Sua posição era de uma “transição ordenada” em todos os países, ou seja, uma aspiração que se chocava diretamente com as motivações das massas.
No último período, a política americana passou a ser a procura algum tipo de compromisso com os russos para uma transição com ou sem Assad. A política anunciada por Trump é a de negociar com os russos um acordo mantendo Assad. Era a política a que tendia Obama e mais ainda a política abertamente enunciada por Trump. A declaração de Assad à TV russa difundida ontem, 14/12, é certeira: “se Trump puder lutar genuinamente contra o terrorismo, ele pode ser nosso aliado natural”. Mais claro, impossível. Não por acaso, também na Europa, começa-se a falar de Assad de forma mais respeitosa, como na entrevista recente que a RTP portuguesa fez com ele, aproveitando-se da oportunidade da eleição do Guterres como Secretário-Geral da ONU.
Ao mesmo tempo, apoiou-se nas potências regionais, particularmente a Arábia Saudita, a Turquia e o Qatar. Israel, pelo rechaço que possui no mundo árabe, só foi chamado a atuar de forma indireta. Ao não poder invadir a Síria para controlar os movimentos populares, procuraram cooptá-los, utilizando a carta da divisão sectária entre os diversos ramos religiosos e/ou étnicos, em particular a oposição entre xiitas e sunitas. Para as monarquias do Golfo e para a Turquia, o levante nos países árabes era também um perigo mortal e usaram a cartada sectária para desviar o seu caráter democrático e social. Nesse ponto, tinham total acordo com o regime de Assad.
Ao contrário das esperanças dos que começaram as imensas mobilizações de 2011 na Síria, o regime reagiu com uma repressão brutal das forças policiais, o que levou a que os comitês revolucionários locais se armassem para enfrentar a repressão. A aposta do regime foi ainda mais brutal e colocou as forças armadas e a aviação. As cenas que todos vimos das cidades destruídas em bombardeios aéreos mostram a brutalidade de um regime que não hesita em bombardear os seus cidadãos. A utilização de produtos tóxicos, as execuções sumárias, as vinganças terríveis sobre as áreas que resistiram levaram a que haja 11 milhões de refugiados (5 milhões fora do país) em uma população de 23 milhões. Como pode ser considerado um regime como este?
A militarização do conflito facilitou a conquista da supremacia por parte dos grupos islâmicos. Desde as mais “moderados”, como a Irmandade Muçulmana, patrocinados pelo Qatar e Turquia, aos vários tipos de salafistas e jihadistas receberam grande apoio da Arábia Saudita. Quem tinha armas para distribuir conquistou mais espaço.
Sobraram ainda grupos não fundamentalistas na resistência? É difícil afirmar com certeza, mas até março deste ano ainda ocorreram manifestações anti-governamentais coordenadas contra o regime e contra o sectarismo fundamentalista em 100 lugares na Síria, incluindo Damasco, Aleppo e outras grandes cidades.
O Estado Islâmico faz parte da coalizão que luta contra o regime?
Em primeiro lugar, a posição do regime foi a de estimular diretamente o fortalecimento das alas mais extremistas. Para isso, em 2011, libertou centenas de presos jihadistas, inclusive alguns que lideraram as duras organizações mais radicais, o autodenominado Estado Islâmico (EI) e a Nusra, filial da Al Qaeda na Síria.
O EI adotou a tática de não combater o regime e procurar conquistar áreas da oposição. E o regime em nenhum momento os atacou. Por isso, mantém uma pequena capital provincial, Raqah, há mais de dois anos sem serem incomodados pelas tropas e pela aviação do governo.
Suponhamos que o regime seja anti-imperialista pelo menos parcialmente, isso justifica o bombardeio de áreas civis?
A utilização desses métodos é inaceitável por qualquer regime. Os marxistas não são indiferentes aos problemas humanitários, apenas acham que o enfoque apenas humanitário não resolve os problemas mais centrais da sociedade. Mas na situação atual na Síria, ninguém pode se recusar a exigir saídas humanitárias. O fim imediato dos bombardeios, o suprimento de víveres e remédios, o fim das execuções sumárias e as vinganças que já começaram não são questões secundárias. Não é por outra razão que Trotsky, ainda jovem, dizia ao ver os horrores da Guerra dos Balcãs no início do século passado que os marxistas não são indiferentes aos massacres.
Os acontecimentos de Aleppo terão uma enorme repercussão na região, significando uma imensa derrota para os levantes iniciados em 2011, talvez até marcando o final desse período. Mas a mensagem é que não se pode ser de esquerda de forma consequente e não se opor radicalmente a uma catástrofe infligida pelo governo à população. Também é uma demonstração sobre que tipo de sociedade e que métodos que a esquerda pretende apresentar para a sociedade. Massacres certamente não são aceitáveis, descredencia quem os apoia: suja de sangue inocente a mão de seus entusiastas.
Foto: Omar Sanadiki / Reuters
Comentários