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EDITORIAL

Socialismo e democracia em Adolfo Sánchez Vázquez

Adolfo Sánchez Vázquez, filósofo y poeta, maestro e investigador emérito de la UNAM, durante una entrevista en diciembre de 2002 FOTO Cristina Rodríguez

De: Saymon Justo, de Franca, SP

Podemos dizer que a Revolução Russa de outubro de 1917 inaugurou o século XX, pois ao colocar pela primeira vez na História um partido marxista no poder, com a clara possibilidade de construir uma sociedade socialista, a Revolução levou seus ventos aos quatro cantos do globo, abrindo perspectivas até então consideradas apenas do reino da utopia. Porém, por uma séria de razões que podemos abordar em outra ocasião, dada a complexidade do tema, a sociedade que se construiu foi algo bem distante do que imaginavam seus idealizadores.

Tanto na União Soviética, como nos países do Leste Europeu, ou mesmo na China e Coréia do Norte, reservadas as devidas especificidades, o que se observou foi a construção de ditaduras de um partido único, onde uma burocracia entranhada no aparato estatal garantia sua dominação dos meios de produção a partir do controle político. É com base nessa constatação que o filósofo Adolfo Sánchez Vázquez, professor da Universidade Nacional Autônoma do México, faz suas reflexões. Qual a relação da teoria marxiana¹ com o chamado “socialismo real”?² As ditaduras brutais que se instalaram nesses países eram inerentes à teoria marxiana e mesmo ao marxismo? Qual a responsabilidade de Marx por esses regimes?

Em uma série de ensaios de fins da década de 1980 e início da de 1990, o professor Vázquez, de uma forma bastante lúcida e consistente, tenta responder a essas questões. “Entre a realidade e o mito” é um desses livros que lançam o frescor em um embate muitas vezes dominado pelo dogmatismo e pelo apego aos velhos mitos. Com coragem e conhecimento de causa, Adolfo Sánchez Vázquez se debruça sobre a obra de Marx e também sobre a experiência concreta do “socialismo real”, não para ficar na infrutífera repetição de acusações e justificativas, mas sim para revigorar o debate e colocar a possibilidade do socialismo novamente na ordem do dia.

Ao buscar seu instrumental teórico na obra do próprio Marx, o professor Vásquez percebe como a questão fundamental para o filósofo alemão na caracterização de uma sociedade refere-se às relações sociais no setor produtivo. Em “O Capital” e no “Manifesto Comunista”, por exemplo, fica claro como para Marx o aspecto central para definir uma sociedade burguesa é a relação entre o dono das forças produtivas, no caso o patrão, e aquele que só tem sua força de trabalho para vender, o operário. Da mesma forma, é a efetiva relação entre senhor e escravo que define as sociedades da Antiguidade ou as relações senhor e servo que caracterizam o feudalismo.

Conforme já vimos, a produção capitalista só começa realmente quando um mesmo capital particular ocupa, de uma só vez, número considerável de trabalhadores, quando o processo de trabalho amplia sua escala e fornece produtos em maior quantidade. A atuação simultânea de grande número de trabalhadores, no mesmo local, ou, se se quiser, no mesmo campo de atividade, para produzir a mesma espécie de mercadoria sob o comando do mesmo capitalista constitui, histórica e logicamente, o ponto de partida da produção capitalista.³

A partir dessa perspectiva, Adolfo Sánchez Vázquez volta sua análise para o chamado “socialismo real” e questiona a tese de que a União Soviética e os países do leste europeu tenham construído sociedades efetivamente socialistas, uma vez que nesses países a classe operária era explorada pela burocracia e estava alienada tanto do controle do Estado, como dos meios de produção. A partir dessa leitura de Marx, Vázquez questiona inclusive a interpretação de algumas vertentes do marxismo, que caracterizam a União Soviética como “Estado Operário Degenerado”. Para esses marxistas, a União Soviética constituiria um Estado Operário, uma vez que aboliu a propriedade privada, tornando-a estatal e também aboliu as relações capitalistas de produção, porém degenerado pelo domínio político da burocracia.

Na leitura do professor Vázquez, que está em sintonia com autores como Paul Sweezy e Charles Bettelheim, a despeito da propriedade estatal e do fim das relações burguesas de produção, a União Soviética e os países do leste da Europa jamais poderiam ser considerados Estados Operários, uma vez que, efetivamente, os operários constituíam a classe explorada da sociedade. Para o professor Vázquez, esses Estados não seriam nem capitalistas, pela abolição da propriedade privada e das relações burguesas, mas tampouco seriam Estados Operários.

Uma sociedade não pode ser definida pelo que ela diz de si mesma ou pelo que afirma sua Constituição, mas sim e tão somente, pelas relações efetivas na produção. Com essa perspectiva, Adolfo Vázquez percebe que apesar de a burocracia soviética em teoria não ter a propriedade dos meios de produção, na prática tinha seu efetivo controle e, de acordo com sua leitura de Marx, isso seria o essencial para definir a burocracia como uma classe, no caso, a classe que explora o proletariado. Nem capitalismo e nem socialismo, mas uma sociedade de um novo tipo, caracterizada pelo domínio burocrático dos meios de produção e pela exploração da classe operária. Eis a conclusão do professor Vázquez.

Nesta sociedade – a do chamado socialismo real – a abolição da propriedade privada conduz à propriedade estatal absoluta; à plena eliminação do mercado e a uma economia totalmente planificada. Conduz mesmo assim à onipotência do Estado e do coletivismo burocrático, à desaparição da liberdade do indivíduo com a consequente exclusão das liberdades de todo tipo e em todos os níveis, o que sob o regime do partido único tornou impossível toda forma de democracia. Em suma, o pretendido socialismo acabou sendo a própria negação dos princípios e valores da ideologia socialista, como ideologia da liberdade, igualdade, democracia e efetiva justiça social.4

Vázquez mostra como o capitalismo é inerentemente excludente e está em sua raiz a exploração da maioria em proveito de poucos. Desnuda a hipocrisia do liberalismo em seu discurso por liberdade, liberdade limitada apenas aos donos dos meios de produção. Dessa forma, apesar da degeneração do ideário socialista no modelo soviético, o socialismo, como proposta de emancipação da humanidade e de superação das misérias do Capital, estaria mais vivo do que nunca. Aliás, seria a única alternativa disponível no momento para evitarmos o horizonte sombrio que o capitalismo nos expõe: colapso ambiental ou catástrofe nuclear.

Mas ,que socialismo seria esse que Adolfo Sanchez Vázquez tem em mente? A partir de sua leitura da obra de Marx o professor Vazquez ressalta a ligação umbilical entre socialismo e liberdade. Dessa forma, uma sociedade realmente fundamentada nos princípios marxistas não poderia nunca ter a liberdade e a democracia como questões secundárias, sob a pena de degenerar nas burocracias ao modelo soviético. Socialismo e democracia, não a democracia formal da sociedade burguesa, mas uma democracia de fato, fundada nas possibilidades econômicas para seu efetivo funcionamento. Democracia e socialismo, duas vertentes de um todo, que só se realizam de fato unidos em uma mesma equação. Eis a “alma” das reflexões de Adolfo Sánchez Vásquez.

Na verdade, não se pode falar em socialismo sem o controle da economia pela sociedade e, em particular, pelos produtores, tanto no nível de cada unidade de produção como no da economia nacional. Mas isso requer por sua vez, como assinalamos, o controle do Estado pela sociedade, a socialização do poder político, a participação efetiva dos membros da comunidade, em suma, democratização de toda vida social.. O socialismo é por isso inseparável da democracia, não só da formal, representativa ou política, como também da direta, econômica e autogestora.5

1 Por marxiana nos referimos especificamente a Karl Marx e por marxista as diversas correntes interpretativas que se desdobraram das obras de Marx e Engels.

2 Por “socialismo real” nos referimos aos regimes que, fundamentados no marxismo, se auto-proclamaram socialistas. União Soviética, países do europeu, China e Coréia do Norte são compreendidos neste conceito.

3 MARX, Karl. O Capital. Livro I. Volume I. o Processo de Produção do Capital. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2001. p. 375.

4 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre a Utopia e a realidade: ensaios sobre política, moral e socialismo. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2001. p.261.

5 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Idem. p. 343.