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MUNDO

Discutindo a Fundação Ford (Parte 1 de 4)

Marcus Correia, de São Paulo, SP

É espantoso como entidades, ONGs, ativistas e pesquisadores no Brasil, identificados com a esquerda, em sentido amplo, ainda hoje permanecem recebendo recursos da Fundação Ford, mesmo diante de tantas informações e pesquisas disponíveis a propósito da estreita relação existente entre essa entidade, a política externa dos Estados Unidos e seus órgãos de inteligência.

Pressupondo que a razão para esse aparente paradoxo político decorra apenas de um profundo desconhecimento de fatos básicos da história dessa instituição, este artigo procura reunir alguns desses fatos, a maior parte deles recolhidos de importantes trabalhos já publicados.

O artigo apresenta-se dividido em quatro partes: a primeira aborda os primeiros anos da Fundação, do período que vai da sua criação no ano de 1936 até o término da Segunda Guerra Mundial em 1945; a segunda parte se debruça sobre o período entre o início da chamada Guerra Fria até os anos de 1960; a terceira traz fatos a respeito da atuação da Fundação Ford no Brasil, sobretudo, durante a ditadura militar; a quarta parte aborda as atividades da Fundação Ford dos anos 1970 até os dias atuais.

Cabe observar que, nesse delicado momento atual do país, é cada vez mais relevante que se avolumem discussões sobre o imperialismo, uma vez que, ao que consta, o Brasil não é o centro do capitalismo global e está mais sujeito às suas intempéries do que parece a muitos analistas da esquerda autóctone. E aqueles que não concordarem com essa breve história da Fundação Ford, que contem outra mais idílica.

As origens: de 1936 a 1945

Em uma cerimônia solene ocorrida na cidade de Dearborn, em Michigan, nos Estados Unidos, no dia 30 de julho de 1938, o cônsul da Alemanha acreditado em Cleveland, Karl Krapp, e seu congênere em Detroit, Fritz Heller, presentearam o industrial estadunidense Henry Ford pelo dia do seu aniversário. A pedido do führer, ofereceram-lhe a Grã-Cruz da Ordem da Águia Alemã (Großkreuz des Deutschen Adlerordens). Essa alta condecoração do Estado alemão havia sido criada no ano anterior por Adolf Hitler com o intuito de homenagear estrangeiros que desfrutavam da sua admiração. Outros dois indivíduos que receberam a referida medalha honorífica foram Benito Mussolini e o espanhol Francisco Franco.

Adolf Hitler há muito manifestava uma forte simpatia por Henry Ford e manteve uma foto dele em seu escritório em Munique. No início dos anos 1920, Henry Ford escreveu execráveis escritos antisemitas, os panfletos The International Jews: The World`s Problem, transformados ulteriormente em livro e que inspiraram o líder nazista na sua perseguição implacável aos judeus na Europa. Traduzidos para a língua alemã, os escritos de Ford tiveram ampla circulação nos meios nazistas antes de 1933. Por essa razão, a primeira edição de Mein Kampf Hitler, dedicou a Henry Ford.

Afora as concepções lunáticas da existência de uma conspiração judaico-comunista internacional contra a qual ambos lutavam, a admiração de Hitler por Henry Ford advinha também dos métodos de racionalização industrial. Essa racionalização serviria como exemplo tanto ao modelo industrial do Reich, como ao sistema, igualmente fabril, de extermínio bárbaro de milhões de pessoas em campos de concentração, a exemplo de Auschwitz, Sobibor e Treblinka.

Desde os anos 1920, Ford vinha contribuindo com o financiamento do Partido Nacional-Socialista na Alemanha e enviava de 10 a 20 mil marcos alemães como presente de aniversário para Adolf Hitler todos os anos, até 1944. [1]

Nos Estados Unidos, Henry Ford manteve um sistema conhecido pelos críticos como a “Gestapo de Ford”, o que também lhe rendeu o apelido dado pelo New York Times, em 1928, de “Mussolini do Highland Park” [2].

Ford, além de perseguir e reprimir sindicalistas, organizou um sistema de vigilância e controle da vida privada de seus funcionários, por meio da criação de um Departamento de Sociologia da Ford Motor Company. Tal órgão procurava intervir nos aspectos privados dos trabalhadores das fábricas, como moradia, alimentação, lazer e modo de vida. Ford até mesmo contratou um ex-pugilista que serviu como “fiscalizador” do serviço privado de repressão política e social aos trabalhadores da Ford em Dearborn e que lhes fazia visitas inesperadas em seus lares. [3]

A condecoração de Henry Ford com o maior título honorífico dado a estrangeiros pelo governo nazista nada mais foi do que um reconhecimento inter pares. Dois anos antes, no início de 1936, Edsel Ford, filho de Henry Ford e então presidente da Ford Motor Company anunciou a criação da Fundação Ford, que tinha por objetivo dispender recursos “à caridade, à educação e à ciência”. Mas, de fato, a criação da fundação filantrópica familiar servia a interesses econômicos muito claros aos contemporâneos.

Em 1934, um grupo de empresários, banqueiros e oficiais militares estadunidenses patrocinaram uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente Franklin D. Roosevelt, golpe esse que visava à instauração de um regime filofascista nos Estados Unidos.[4]

Malfadada a tentativa de golpe contra Roosevelt e no contexto econômico do New Deal, em 1935, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o Revenue Act, uma espécie de taxação de grandes fortunas que chegava à casa dos 70%. [5]

O maior prejudicado com a nova legislação seria justamente a multimilionária família Ford. Para dissimular do fisco a cobrança dos novos impostos foi, portanto, criada a Fundação Ford, transferindo-se, assim, 90% das ações da Ford Motor Co. pertecentes à família para a nova entidade “filantrópica”.

Desde então, diferentemente do que se pensa, a Fundação Ford tornou-se a proprietária da Ford Motor Company. [6]

Os três únicos diretores da Fundação Ford no período eram Edsel Ford, presidente da Ford Motor Co. e igualmente presidente da Fundação; Bert J. Craig, secretário e tesoureiro da Ford Motor Co; e Clifford Longley, advogado da Ford Motor Co.

Pressionada pelo governo a dar, então, início a qualquer atividade filantrópica de relevo, a Fundação Ford anunciou, em dezembro de 1937, a doação de um terreno em Dearborn, Michigan, EUA, para a construção de quatro mil “moradias modelo” para operários locais. A Ford doou o terreno e o projeto, enquanto a construção ficaria a cargo de outros empresários que tivessem interesse no empreendimento.

Originalmente anunciado como filantropia a operários, pelos baixos custos de aluguel ou venda, logo o projeto foi desconfigurado, tornando-se um empreendimento imobiliário de mais alto padrão, com centro de negócios, escolas, clínicas médicas, lojas, entre outros. De acordo com uma matéria da época, a iniciativa passou a beneficiar trabalhadores de “white collar”, conforme a expressão do jornal [7].

Essa foi a única iniciativa “filantrópica” da entidade que teve ampla repercussão antes de 1945. O real interesse por trás da criação da Fundação, i.e., dissimular a fortuna familiar adquirida ao longo dos anos de exploração da classe trabalhadora pela Ford Motor Co., fez com que ela permanecesse inexpressiva nas suas ações “humanitárias” durante os primeiros dez anos de existência.

Já na Europa, a Ford Motor Co. mantinha fortes investimentos econômicos desde os anos 1920. Em particular, na Inglaterra e na Alemanha. Neste último, encontrou certas dificuldades decorrentes da ascensão do nacionalismo de ultra-direita no país, uma vez que parte da população sabotava a compra de produtos de empresas estrangeiras. Mesmo assim, a relação com o governo nazista que ascendeu em 1933 era mais amena e a Ford fabricou um terço dos caminhões do exército nazista, por exemplo, e dobrou de tamanho na Alemanha entre 1939 e 1945 [8].

Entre 1941 e 1945, a subsidiária da Ford Motor Co. em Colônia, na Alemanha, a FordWerke, utilizou, inclusive, trabalho escravo de presos estrangeiros e judeus, oriundos da Europa Oriental, da União Soviética, da Itália e da França [9].

Esses são alguns poucos e relevantes fatos do período de origem da Fundação Ford. Frente à oposição política que a família Ford mantinha ao governo de Franklin D. Roosevelt, até o final da II Guerra, a Fundação não atuou em parceria com o governo dos Estados Unidos. E suas atividades de caridade restringiam-se a poucas iniciativas em Michigan. A relação estreita com o Departamento de Estado e os órgãos de inteligência estadunidenses passaria a ocorrer a partir do início da chamada Guerra Fria, objeto da próxima parte desse artigo.

Leia aqui a Parte 2

 

NOTAS:

1 – BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Desordem Mundial: o espectro da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 44-46
2 – SAGER, Geshe. Henry Ford und die Nazis – Der Diktator von Detroit. Spiegel Online, 29, jul. 2008. 
3 – Idem.
4 – BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit. p. 44-46
5 – CHAVES, Wanderson da Silva. O Brasil e a recriação da questão racial no pós-guerra: um percurso através da história da Fundação Ford. Tese (Doutorado). Programa de Pós Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. p. 26-27
6 – Idem. p. 26-27
7 – De La Crosse Tribune, La Crosse, Winconsin, EUA, 6 jul. 1939.
8 – LIMA, Cláudia de Castro. Os aliados ocultos de Hitler. Revista Super Interessante.
9- REICH, Simon. Tha Nazi Party: Ford Motor Company and the Third Reich. Jewish Virtual Library. A própria Ford Motor Co. em 1998 abriu um amplo processo de investigação interna sobre a conduta da sua subsidiária na Alemanha, provocada por processos legais de sobreviventes do Holocausto que foram movidos contra a empresa por haverem trabalhado como escravos na FordWerke.

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