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Especiais
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Nossos terreiros também são quilombos

Por: Cássia Clovié*, de São Luis, MA

No mês de novembro é lembrada a morte de Zumbi dos Palmares, que ao lado de sua companheira Dandara construiu e liderou o maior Quilombo já existente no Brasil Colônia, o Quilombo dos Palmares, que chegou a abrigar mais de vinte mil pessoas, entre negras/os escravizadas/os, indígenas e brancas/os pobres, se tornando o local mais significativo da resistência negra. A morte de Zumbi é homenageada no Dia Nacional da Consciência Negra, uma data muito importante para o movimento negro, resultante de muita luta.

Para nós, essa data precisa ser reconhecida não só para comemorar, mas para resgatar nossa história e lembrar que ainda temos muito por fazer, todos os dias, não só no dia 20 de movembro. Somos o legado de Dandara e Zumbi, resistimos e lutamos diariamente pelo direito de viver, contra o genocídio do nosso povo nas periferias, contra o mito da democracia racial, por políticas afirmativas. Mas, também resistimos e lutamos com nossa identidade e ancestralidade. Esta, por vezes esquecida, precisa ser exaltada também. Nossas religiões também são expressão máxima disso. Precisamos falar do candomblé e de nossos terreiros.

O candomblé se construiu da necessidade que as diferentes tribos de negras/os trazidas/os de África para serem escravizadas no Brasil tiveram de se comunicar, já que falavam dialetos diferentes entre si. A oralidade é a principal forma de comunicação e transmissão de conhecimento, sendo utilizada até hoje. No Candomblé, as/os Orixás são ancestrais divinizados, representantes das forças da natureza com as/os quais se mantém uma forte ligação familiar. As gerações passadas e os seus conhecimentos trazem consigo enorme importância, refletindo a preocupação com a conexão entre o passado, presente e futuro. Nesse sentido, expressam um respeito à ancestralidade e ao equilíbrio da natureza.

No Brasil, que é o terceiro país mais negro fora da África, com cerca de 50,7% de autodeclarações de pretos e pardos segundo dados do IBGE de 2010, apontam que 0,3% de negras/os e pardas/os são praticantes do candomblé e/ou umbanda. É preciso lembrar que a umbanda não é de matriz africana, mas o IBGE aponta as duas religiões como iguais. A presença de mulheres nos terreiros é expressiva, no entanto, os dados colhidos apresentam um resultado bastante diferente da realidade, apontando que de um universo de 335.135 homens, 293 são adeptos do candomblé e umbanda, ao passo que de 334.391 mulheres 262 assumiram seguir as duas religiões.

Quando fazemos o recorte de raça no que tange a religião, os dados do IBGE são desconcertantes. Entre brancas e brancos o número que se assumiu enquanto praticantes do candomblé e, ou umbanda foi de 149 pessoas de um total de 159.161. Já entre negras e negros esses dados foram de 128 pessoas de 56.205.

Ainda que o número de praticantes de candomblé entre pessoas negras seja bem mais expressivo, a banalização dos rituais, vestimentas e paramentos é impactante e parte de uma apropriação religiosa por parte de não-negras/os e do racismo religioso que tem nos silenciado cotidianamente em nossos terreiros e fora deles.

Em 2015, foi lançado o pré-relatório da intolerância religiosa organizado pela parceria de pesquisas entre os interlocutores e pesquisadores da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e o Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Visa apresentar dados do racismo religioso, velado ou não.

Os dados do Disque 100, criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011 e dezembro de 2015, a maioria registrada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. No Estado do Rio, o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), criado em 2012, registrou 1.014 casos entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de religiões de matrizes africanas, 7,7% contra evangélicos, 3,8% contra católicos, 3,8% contra judeus e sem religião e 3,8% de ataques contra a liberdade religiosa de forma geral.

Dentre as pesquisas citadas, um estudo da PUC Rio sugere que há subnotificação no tema. Foram ouvidas lideranças de 847 terreiros, que revelaram 430 relatos de intolerância, sendo que apenas 160 foram legalizados com notificação. Do total, somente 58 levaram a algum tipo de ação judicial.

O trabalho também aponta que 70% das agressões são verbais e incluem ofensas como “macumbeiro e filho do demônio”, mas as manifestações também incluem pichações em muros, postagens na internet e redes sociais, além das mais graves que chegam a invasões de terreiros, furtos, quebra de símbolos sagrados, incêndios e agressões físicas.

Com base nestes dados é possível constatar que não se trata de casos de intolerância religiosa, mas de racismo religioso, tendo em vista que a grande maioria dos casos é relacionada às religiões de matriz africana. Para minimizar os efeitos danosos deste é preciso que nos apropriemos da história religiosa através de cursos, palestras e debates e nos aprofundemos nos reflexos dessas práticas na perpetuação dos nossos rituais, na nossa auto estima e reconhecimento dos nossos terreiros como locais de professar a fé como todos os outros.

O combate ao preconceito contra as religiões de matriz africana perpassa por compreendê-lo sob a perspectiva do racismo. É preciso discutir estas religiões transversalizadas pelo debate de raça e classe e da organização do povo de Ashé, para armar nosso povo de terreiro para o enfrentamento diário do que se convencionou chamar de intolerância religiosa. E o combate ao racismo perpassa por combater a violência contra os candomblecistas e os terreiros, e isso significa lutar por leis e políticas concretas de enfrentamento a esta violência.

Para aquilombar de verdade, é preciso passar por dentro do terreiro.

*militante do MAIS e de terreiro

Foto: Terreiro Xambá do Quilombo do Portão do Gelo